Zé do Cavaquinho e o Trovador Berrante de Viçosa
José Rodrigues de Moura Ferro nasceu em 10 de dezembro de 1911 na cidade de Viçosa, Zona da Mata alagoana. Era filho de Manoel Rodrigues de Moura e de Benvinda de Souza Ferro. Seus avós paternos foram Egídio José de Moura e Joanna do Espírito Santo Moura. Por parte de sua mãe, seus avós foram Manoel de Souza Ferro, um tenente da guarda nacional, e Maria Querubina de Souza Ferro.
Entre seus irmãos (Olívia, Luiza, Albertina, Josefina, João, Maria d’Anunciação, Edésio, Helena, Josefa e Maria José), somente Edésio também enveredou pela música, seguindo os ensinamentos do pai, um exímio violonista. Edésio, mais conhecido como Dedé, foi morar em Recife, onde faleceu.
Sendo um boêmio militante em Viçosa, Zé do Cavaquinho foi personalidade da vida da cidade por mais de cinco décadas. Além de instrumentista, também compunha e contava causos, contribuindo para transformar o seu bar, o Trovador Berrante, no principal ponto de encontro da boemia da região.
Segundo a excelente reportagem de Esdras Gomes e Flávio Gomes de Barros para a revista Venha Ver de dezembro de 2011, no Trovador Berrante “se viam pobres, ricos, contumazes malandros, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, autoridades, políticos, todos enquadrados às regras impostas por Zé do Cavaquinho a quem ultrapassasse as portas do seu estabelecimento: beber, cantar, tocar e troçar, à vontade; perturbação da ordem, jamais”.
Não gostava dos chatos, a quem se referia como “espírito de cururu”, principalmente os desafinados que teimavam em cantar.
Vivia exclusivamente do bar e, de vez em quando, de uma rifa de queijo do reino, quando os negócios não iam bem. Mesmo com dificuldades, nunca deixou faltar o sustento da família.
Teotônio Vilela, seu grande amigo, dizia que ele era um ser ecológico, que somente tinha vida em Viçosa. Isso se comprovou no início da década de 1940, quando foi para São Paulo em busca de maior projeção da sua música. As saudades da terra logo o fizeram voltar.
Foi em 1940 que Zé do Cavaquinho conheceu sua companheira de toda a vida (casaram-se somente em 11 de abril de 1970), Alice Vieira da Silva, que lhe deu dezesseis filhos: José Clóvis, Cícera, Ariston, José Carlos, Conceição, Bartolomeu, Josefa, Francisca, João, Lourdes, Jânio, José Maria e Bernadete. Três deles faleceram ainda crianças.
Músico virtuoso, Zé do Cavaquinho privilegiava em seu repertório músicas compostas por ele, em sua maioria de choros. “Escorrego do Urubu”, composto em 1929, quando tinha dezoito anos, é o mais famoso deles.
Compôs ainda Urubu, Lagartixa, Jumento com Tudo, Jacaré com Tempero, Caranguejo no Altar, Zogovio, Pajeguara, Sabueiro, Brinquedo das Meninas, Tromba-d’água e vários outros, sempre brincando com os títulos.
Também enveredou pelo romantismo e em parceria com o poeta José Aragão e a maestrina Nazareth Baptista criou valsas que são lembradas até os nossos dias pelos seresteiros viçosenses, entre elas Minha Cabocla, Vibrações d’Alma, Sonhos Mágicos e a famosa Sertaneja.
“Dono de uma saúde de ferro, só adoecera, segundo ele, três vezes na vida: nos três desastres automobilísticos que sofrera. A enfermidade que o vitimaria chegou para levá-lo em pouco tempo, menos de um ano”, lembram Esdras Gomes e Flávio Gomes.
Faleceu no dia 10 de abril de 1981, quando tinha 69 anos de idade. Segundo Teotônio Vilela, naquele dia tinha morrido “o último boêmio do século vinte”.
Denis de Melo
Denis de Melo, que quando criança em Viçosa ouvia as serenatas com a presença de Zé do Cavaquinho e sonhava em tocar com ele, lembrou em depoimento para a revista Venha Ver que “menino já taludo” continuou ouvindo-o quando “se apresentava no Teatro Carlos Gomes, durante os intervalos das peças ali encenadas; nas sessões domingueiras dos circos que, vez por outra, apareciam em Viçosa; nos pastoris das festas natalinas; nas reuniões lá em casa ou em casa de amigos do meu pai; através dos alto-falantes do Centro Regional de Propaganda, do também saudoso Zé Aragão, e em festinhas de aniversário de gente do meu tope, quando timidamente, ao compasso do seu conjunto musical, ensaiava os meus primeiros passos de dança”.
Após aprender a tocar violão, Denis de Melo foi um dos parceiros mais presentes na vida boemia de Zé do Cavaquinho, cumprindo o seu desejo de criança:
“Em todos esses anos de vivência com Zé do Cavaquinho, o que nele apreciava não era somente a sua destreza no cavaquinho e violão. Mas também o inspirado compositor, o dono de uma aguda presença de espírito; o emérito contador de causos; o semeador de alegria (jamais o vi triste); o sujeito carismático que logo cativava quem dele se aproximasse, fosse de que classe fosse.”
Continua Denis de Melo: “O boêmio empedernido, mas que conseguia a proeza de sustentar a família de treze filhos e de manter suas contas rigorosamente em dia à custa da própria boemia; o cidadão que jamais cometeu qualquer ato que desabonasse sua conduta; o formulador de pitorescas teorias filosóficas”.
Seu bar não tinha uma única garrafa de bebida nas prateleiras. Quando alguém queria beber, mandava buscar em consignação na concorrência, que atendia com presteza ao pedido. Na hora de pagar a conta, não precisava de lápis ou papel: apresentava um valor qualquer, que nunca era contestado. Se perguntado sobre como sobrevivia dessa forma, respondia “Vivo de olhares e sorrisos”.
Mário Lago
O ator e escritor Mário Lago, que conheceu Zé do Cavaquinho em 1971 quando esteve em Viçosa durante as filmagens de São Bernardo, conversou muito com ele em busca de informação sobre o poeta Chico Nunes, foi neste contato que colheu material para o livro Chico Nunes das Alagoas, lançado comercialmente em 1975 pela Editora Civilização Brasileira.
Nesse livro, Lago revela que não sabia o verdadeiro nome do Zé do Cavaquinho: “Só vim a sabê-lo quando, já no Rio, recebi carta sua que terminava com a seguinte loa:
Tudo na vida passa.
Passa samba, passa valsa,
Passa passa por ameixa,
Só não passa moeda falsa
Porque a polícia não deixa.
Sou o Zé do Cavaquinho
De uma lira instrutora.
Mas o meu nome certo mesmo
É Jose Rodrigues de Moura”.
Mário Lago, quando em Viçosa, encontrou o Trovador Berrante em estado lastimável. “Já não tem pelo negócio o entusiasmo de outros tempos, quando, ao reparar que os móveis estavam caindo pelas tabelas, usava um truque infalível para renová-los. Convidava todos os filhinhos-de-papai da cidade para uma festa no boteco. E tome cachaça! No que a coisa começava a ferver, o porre triplicando as imagens, improvisava um coco à velha maneira, lançando o grito de guerra ainda às vezes usado nessa dança-canto: “Quebra! Quebra o coco!”.
A turma a essa altura já estava muito doida, cachaça escorrendo pelo ladrão, e só escutava mesmo era o “quebra”. Não sobrava nada do pobre “Trovador Berrante“. No dia seguinte bastava ir de casa em casa para receber o prejuízo Todos os filhinhos-de-papai, bem-conceituados, nem ficava bem estarem discutindo, ainda mais com o Zé do Cavaquinho, tão do peito. E o boteco reabria novinho em folha”.
Teotônio Vilela
O falecido senador alagoano Teotônio Vilela foi outro que privou da amizade do Zé do Cavaquinho e quando soube da sua morte escreveu o texto “O último boêmio” para a Tribuna de Alagoas, edição de 19 de abril de 1981.
“Quando alguém reclamava do excesso de bebida que consumia diariamente, Zé do Cavaquinho retrucava risonho e afável, olhos bem abertos como para dar mais visibilidade às palavras: — se beber morre, se não beber morre. E morreu Zé do Cavaquinho, o mais cavalheiresco e fascinante boêmio que já conheci ao longo das noites de muitos anos que vivi na intima convivência com os ingredientes objetivos e subjetivos da alma boêmia. Morreu Zé do Cavaquinho, expressão que soa falso aos meus ouvidos, porque ele, Zé do Cavaquinho, é que sempre me comunicava a despedida eterna de um companheiro da noite que não conseguira acompanhá-lo na louvação cotidiana aos encantos fortes e fatais da madrugada”.
Teotônio tratava Zé do Cavaquinho como um boêmio especial, “um boêmio de Deus ou da Mãe de Deus” que tinha a alma comprometida com o que era belo: “Puro de coração, jamais teve um deslize, o mais leve, que comprometesse a sua honra. Sofrido de necessidades várias, com uma família enorme de filhos pequenos, e vivendo apenas de biscates e de sua música honradamente gratificada pelos que a amavam e entendiam, nunca se baixou ou rebaixou, nunca gritou revoltas, nunca pensou mal, nunca deixou de amar as pessoas de sua confiança por qualquer motivo político, econômico, religioso ou familiar. O amigo do Zé do Cavaquinho era ele sempre o mesmo. E terminou fazendo da amizade um pacto hereditário, além de social, pois nenhum filho dos companheiros da velha geração deixaria de ser seu amigo também. Cultivava o sentimento da fraternidade social como ninguém. E entre montanhas de queixas que sempre surgem na cidade, Cavaquinho não tinha queixa a formular. Só contra quem não sabia beber ou tocar bem. Ou ouvir bem”.
Sidney Wanderley
Também viçosense e poeta, Sydney conviveu com Zé do Cavaquinho e dele e dos amigos retirou dez histórias envolvendo o famoso boêmio.
- A BUCHADA
Na década de 30, convidado para uma buchada na cidade de Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, Zé do Cavaquinho para lá migrou com intenção de voltar no trem do dia seguinte. Gostou tanto da comilança e da amizade que travou com o glosador Chico Nunes, que permaneceu na terra dos Xucurus por quase oito anos.
Quando retornou a Viçosa, os amigos de copo arguiram-no acerca do motivo de tão longa ausência:
— Que diabo você andou fazendo todo esse tempo em Palmeira, ô Zé?
O boêmio alisou mansamente o ventre, pôs seu olhar melancólico sobre os companheiros e, após um sonoroso arroto, rematou:
— Buchada mais da pesada, meninos. Tava era digerindo a danada.
- O QUEIJO
Sempre que se via em situação de aperto financeiro, o Zé invariavelmente promovia a rifa de um queijo. Gastava, no mínimo, com sua proverbial morosidade, um mês para vender os bilhetes — sempre no intervalo entre uma farra e outra. Quando finalmente o vencedor se apresentava, Cavaquinho explicava-se num tom entre cínico e irônico:
— Depois de um mês, você queria o quê? É claro que o queijo apodreceu.
- O “PAPAGAIO”
Certa feita, pleiteando um empréstimo no Banco do Brasil, viu-se interpelado pelo gerente acerca de suas fontes de renda:
— Seu Zé, de que o senhor vive?
E Cavaquinho não titubeou:
— Vivo de olhares e sorrisos.
O gerente, dotado de espírito bem mais prático que poético, negou-lhe prontamente o empréstimo.
- O TOMBO
Tendo levado um respeitável tombo ao dirigir-se para o seu bar, o Trovador Berrante, o Zé — que se gabava de ter adoecido apenas uma vez, e assim mesmo, de desastre de automóvel — viu-se internado às pressas no Hospital Nossa Senhora da Conceição, para reparo de um osso do braço esquerdo fraturado.
O médico de plantão arguiu-o com curiosidade:
— Que queda da peste foi essa, ô Zé?
Ao que o boêmio respondeu:
— Sabe, doutor, a queda até que não foi nada. O diabo foi a má vontade e a estupidez com que o chão me recebeu.
- OS PÊSAMES
Noutra ocasião, já um pouco “alterado“, foi apresentar condolências à viúva de um suicida.
— Meus pêsames, minha senhora. O suicídio foi com veneno?
— Não, seu Zé, foi com revólver.
— Também é muito bom — retrucou o boêmio, em tom de consolo e aprovação.
- O CENSO
Quando perguntavam ao Zé quantos filhos ele tinha — quase todos, exímios tocadores de violão e cavaquinho —, o Zé titubeava:
— Ih, rapaz, agora você me pegou. Acho que uns doze ou catorze.
— Doze ou catorze?
— Assim, de supetão, não me lembro. Só sei o número certinho quando chove, e chove grosso. Aí correm todos pra casa e eu posso fazer a contagem exata.
- O BOTA-FORA
Após o jogo entre o Comercial de Viçosa e o Muriciense, a festança da despedida transcorreu no Trovador Berrante. Muitas canções e cervejas depois, um atleta da equipe visitante, com veleidades literárias, pediu a palavra para declamar um poema em louvor de sua cidade natal.
Muito a contragosto, os tocadores concederam o aparte. Dez ou doze intermináveis estrofes mais adiante, com a louvação desbragada da fauna e flora de Murici, o Zé impacientou-se e cassou a palavra e o poeta:
— Chega de discurso, meu caro. Vamos voltar à cantoria.
O vate, rubro e ofendido, ponderou:
— Qual discurso? Você interrompeu sem piedade foi um belo de um poema.
Dedilhando o cavaquinho e retomando a serenata, o boêmio fulminou:
— Pra mim, foi ruim e comprido, é discurso.
- O CONSOLO
A farra já ia alta quando um dos presentes desabou num choro sem freio. Sabendo tratar-se de um recém-corneado ainda perdidamente apaixonado pela ingrata, o Zé abraçou-o e tentou confortá-lo com a seguinte observação:
— Meu amigo, não dá para confiar num bicho que passa uma semana sangrando e não morre.
- O CONSELHO
Certo sábado, após a feira, uma matuta resolveu se aconselhar com o autor do impagável chorinho Escorrego do Urubu:
— Seu Zé, eu ando com uma dúvida a me comer o juízo. Adoro nomes com u e não sei se batize meu filho como Uóshito ou Uélito (Washington e Wellington era o que pretendia dizer a indecisa mãe).
O conselho veio na bucha:
— Ora, minha filha, se você gosta tanto assim de u, por que não batiza seu menino com o nome de Urubu?
- A MÁXIMA
“Beber, só com método. Sem método, até água de pote faz mal.”
*Fonte: revista Venha Ver de dezembro de 2011.
Já não existe mais artista dêste nível ! O Mundo ficou pior! Acabou-se o que era Doce. Zé do Cavaquinho, Chico Nunes e Mario Lago, agora animam o Céu
Formidável
Cheguei a conhece-lo na infância. Era um filósofo é vivedor.
Verdadeira relíquia obrigado!
Zé e muitos outros, os connheci na minha juventude.
Existia em seu Bar, fotos em que estávamos com o mesmo e uma de suas filhas, farreando com meu pai Bertrand Sampaio, o amigo Itamar e meu irmao José Maria quem tirou a foto e a qual espero esteja com algum dos filhos. SAUDADES!!!
Velho Zé do Cavaquinho/Sancho Pança viandante/ Guerreiro de muitas luas/ viajor de rumo errante /Viçosa inda te espera/ pra começar nova era/ la no Trovador Berrante.
O escorrego do urubu/ foi tua obra eloquente/ quantos Choros tu fizeste/ embalado na aguardente/ dedilhando o cavaquinho/ ora lesto, ora mansinho/ pra alegria da tua gente ?/
Pouco sei da tua vida/ Sei mais por ouvir dizer/ pelo Denis, pelo Jader/ estórias Mundo a correr/ digo a verdade, não minto/ quanta inveja que eu sinto/ Não muito te conhecer…
Quem escreveu estes versos / é um nordestino sem medo/José Ivan é meu nome /O resto não tem segredo / Sobrenome em complemento/ do materno sou Sarmento, / do paterno, Azevedo…
Coloquei um comentário precioso, com um poema a Zé do Cavaquinho. Lamentavelmente foi retirado e eu não sei o por quê…
Tive o prazer de conhecê-lo na minha infancia e convivi com seus filhos Conceiçao, Francisca, jose Clovis, Joao, na rua 21 de abril no bairro do prado, onde eles moravam na casa da dona Olivia, tia deles e minha vizinha. Fizemos muitas serestas, saudade !!!!’
Que saudade muitos já se foram