Tuberculoso

Barreto Cardoso

*Publicado no Gutenberg de 30 de março de 1910.

Para Virgílio Guedes

Do trípide candieiro barato e colorido de verde, mas a mortiça luz iluminava a parca extensão do quarto de Reinaldo. Aposento desnudo e sombrio de estudante pobre. Punham unicamente um quase tom álacre às paredes caiadas, uns retratos de família, de inestimável valor e outros tantos cartazes, anunciando a supremacia da cerveja Brahma, bebida em largos haustos pela gulosa boca de um rechonchudo franciscano.

Do teto balançavam-se delgados fios de brancura duvidosa, destroços de uma teia de aranha que em tempos lá existira e em cuja extremidade o cadáver mumificado do inteligente inseto emaranhara-se, jazendo ainda com uma coisa inútil, no seu túmulo aéreo, tal se fora o pêndulo de um invisível cronômetro. Marchetavam o assoalho deteriorado pelo cupim em parte mal firme, ameaçando ruir, peganhentas manchas de cuspo, inúmeras, de formas variadas, algumas ainda recentes, onde o arguto olhar de um perito observador encontraria laivos rubros de sangue, purpúreas estrias expelidas por um mórbido pulmão. Um grilo, no seu acanhado esconderijo, perturbava o silêncio, se não fúnebre, ao menos monótono e tristonho do quarto, com o seu repetido e invariável estribilho de cantor noturno. Dois caixões de sabão, em T, formavam a banca de estudo e parte da mobília jobica completada por um extravagante projeto de estante, duas tábuas superpostas, pendentes do teto, apoiadas na parede, e vazias, nuas, inteiramente virgens do contato dos livros e um mocho de pau, estufado de ganga vermelha, adaptado ao mister de assento. Dormia ao longo das paredes, gravemente estirado, seguro a um prego, um surrado frack de casimira preta que, pelo uso habitual, pouco e pouco menos se distanciava do verde lodoso e escuro que reveste a frontaria dos velhos casebres abandonados. Amarfanhadas, no máximo desleixo, sobre o chão, jaziam uma calça de grandes quadros, de cor, um velho par de botas, a mendigar nova sola, outro de meias cruas, de algodão, rotas, engomadas e lustrosas, pelo uso. Era este o patrimônio sórdido e miserável de Reinaldo. De tudo, acabrunhador, tábido, evaporava-se um fluído de tristeza, miséria e sofrimento.

***

Quando entrei, dormia o desgraçado amigo. A um ruído qualquer abriu os olhos, com os cotovelos finques nas tábuas da mesa, e procurou sorrir, franzindo os lábios empalecidos, num quase sorriso contrafeito, expondo à mostra o exangue amarelo das gengivas.

— Então, meu poeta, já ressonas? E tão cedo a lira suprema silencias?

— Mal a meu grado amigo; esta carcaça do meu corpo ameaça ruir… Sinto de instante a instante o quebramento das molas, aqui dentro, onde mineiros invisíveis se esforçam pela derrocada sangrenta dos pulmões.

— E tu a dar-lhe? As tragédias de William, teu predileto, alucinaram-te as ideias. Sorves a largos haustos o ar fecundo da existência e matutas na morte.

— Debalde tentaram iludir-me. São bonitas, as promessas dos teus lábios generosos, irrealizáveis contudo. Sei que a morte me busca.

— Estás hoje quixotesco.

— Será, se assim te apraz. Em verdade te afirmo que não terei mais uma semana de vida. Pode lá ser que eu não saiba o que sinto, não compreenda o mal que me arruína o peito, esse sangue preto a escachoar-me da boca, essa febre contínua, esse aniquilamento inevitável de todo o meu ser? O que me dói, o remorso único de não viver um pouco mais é deixar o meu livro, inacabado, assim…

— Não morrerás, descansa. E mesmo que assim fosse o teu livro ficaria a meu cargo…

— E ela?

— A tua noiva, ora… Hei de beijar-te ainda os filhos, malucão…

— Nunca mais, nunca mais.

Eu dava pernadas pelo quarto, fingindo uma alegria impossível, no íntimo conhecedor de toda a dolorosa verdade, prevendo já o véu de morte que envolvia o corpo do amigo, vingando-me a morder, com fúria de cão danado, a ponta sarrenta e babada de um charuto barato, de estudante, na última quinzena.

Por último, enternecido e sofrendo a pungitiva arrancada de uma piedade enorme, que me subia da alma aos olhos, ameaçando correr, em pranto, pela barba, atirei bruscamente ao chão a ponta do charuto, tossi, afoguei as mãos nos largos bolsos das calças e comecei a gritar:

— Besta, besta, besta… Tu não passas de um besta, homem. És noivo e poeta. Cupido e as musas se protegem. Vives feliz e entanto chora males imaginários, tal qual um Jeremias bestalhão e doente.

— Ah! que valor têm para mim coisas que tais, se a morte em breve varrerá a poeira do meu corpo. Olha, vê bem, se ainda me é dado esperar, diante disto, alguma coisa, a não ser os sete palmos do beliche da tumba. E a um acesso mais violento de tosse, colheu, da boca, nas dobras de um lenço, um peganhento escarro estriado de rubro, escuro, de tuberculoso nas últimas; e riu, riso careta, hediondo e tábido, de moribundo, desnudando a dentadura estragada, e limpando ainda com lenço um fio gomoso de sangue que lhe ficara dependurado do beiço.

Sucumbido afinal diante de tão lúgubre quadro, rompi em pranto, angustiado, de mistura com anátemas.

E vá de chorarmos os dois, angustiosamente, na impotência de uma nova ilusão, petrificados, de joelhos em face da realidade aterradora.

— Bem vês, bem vês, é inútil…… Já nada valho……

— Meu pobre amigo!

E deixamo-nos ficar ali por muito tempo, abraçados, numa fúnebre despedida de morte. De repente Reinaldo afastou-me os braços do pescoço, passou a manga da camisa pelos olhos e exclamou, procurando dar um tom de energia a voz sibilante e rouquenha:

— Diabo! Afinal de contas quando um homem nasce é para isso mesmo. Eu não havia de ficar para semente, meu velho.

Mais tarde, ao sair, ouvi que pronunciava ainda essas palavras:

— Estúpida coisa, afinal, essa porcaria de vida!

***

Reinaldo matou-se no dia seguinte, sem esperar que a doença terminasse a obra de assassínio.

Ao clarear, depois de alguns minutos convulsivos de tosse, vestindo-se às pressas, negligentemente, num desprezo profundo pela sua atravancada pessoa, saiu para a rua, onde palpitava a natureza num frêmito estrondoso de vida. Solitário, tristonho, buscou a sombra de uma árvore, sobre a pedra fria de um banco. O sol, há pouco surto a vida, não esquentara ainda. E o mármore frio sobre o qual repousava, tinha para o mísero tuberculoso o lúgubre valor de uma lápide funerária. E o que era ele a final mais que um espectro, sobre a própria sepultura aguardando que ela se abrisse para receber a matéria morta do seu corpo?

Ali ficou, uma hora, duas horas, absorto, ansiando, a intervalos sacudido todo pela tosse convulsa.

De repente a voz de um automóvel chegou-lhe aos ouvidos. Fon-fon! Rápida e Infernal ideia atravessou-lhe o cérebro…

***

Fui ver o seu corpo no hospital, partido ao meio, afogado em sangue, numa ruinaria horrível e dolorosa.

Pobre amigo!

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O poeta e jornalista Domingos Paes Barreto Cardoso foi um dos fundadores da Academia Alagoana de Letras – AAL.

Nasceu no dia 8 de setembro de 1888 em São Miguel dos Campos. Estudou Humanidades em Maceió e concluiu o curso de Direito em Recife no ano de 1910. Foi redator do Gutenberg, Dia, Extra — revista literária mensal, Renascença, além de publicar várias prosas e versos avulso.

Seguiu a carreira jurídica, sendo indicado Juiz de Direito e Desembargador, cargo que ocupava quando foi eleito para presidir a AAL em 1931. Foi também diretor de Instrução Pública de Alagoas. Utilizava o pseudônimo de Falstaff e teve destacada atuação jornalística, mas nunca escreveu um livro. Faleceu em 26 de fevereiro de 1960, em Maceió.

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