Sertanejo
Texto de Graciliano Ramos publicado originalmente no semanário Novidade, nº 1, de 11 de abril de 1931, em Maceió.
Graciliano Ramos*
Para o habitante do litoral o sertanejo é um indivíduo meio selvagem, faminto, esfarrapado, sujo, com um rosário de contas enormes, chapéu de couro e faca de ponta. Falso, preguiçoso, colérico e vingativo. Não tem morada certa, desloca-se do Juazeiro do padre Cícero para o grupo de Lampião, abandona facilmente a mulher e os filhos, bebe cachaça e furta como rato.
É esse, pouco mais ou menos, o sertanejo que a gente da cidade se acostumou a ver em jornais e em livros. Como, porém, livros e jornais de ordinário são feitos por cidadãos que nunca estiveram no interior, o tipo que apresentam é um produto literário. Essa mistura de retirante, beato e cangaceiro, enfeitada com um patuá, duas alpercatas e muitas figuras de retórica, torna-se rara. Os homens da minha terra podem ser por dentro a cartucheira e os molambos, mas exteriormente são criaturas vulgares, sem nenhum pitoresco.
Os sertanejos dos campos estiveram no Amazonas, em São Paulo e no Espírito Santo; tiraram borracha, plantaram café, voltaram com maços de notas e dispostos a esbanjá-las depressa. Alguns, incapazes de exercícios pesados, meteram-se no exército e na marinha, e os que haviam ido à cadeia e levado pancada entraram na polícia e vingaram-se.
Todos esses sujeitos regressaram muito sabidos, estranhando tudo, falando difícil, desconhecendo amigos, ignorando o nome dos objetos mais corriqueiros, confundindo bode com onça. Naturalmente não quiseram mais criar bodes. Tornaram-se negociantes ambulantes ou adquiriram um pedaço de terra e foram explorar o trabalho dos outros.
Os moradores das cidades leram jornais e aprenderam bastante. A literatura e a ciência deles, que antigamente estavam contidas no Carlos Magno e no Lunário Perpétuo, aumentou de modo considerável. Conhecem o José de Alencar, o Júlio Verne, a constituição brasileira e a seleção natural.
Aparecem entre eles alguns doutores que defendem a liberdade, outros que atacam o vigário. E há o rábula, o farmacêutico, o tabelião, o caixeiro que estuda gramática, o redator da folha semanal.
As pessoas notáveis do lugar são comerciantes que passam metade do dia encostados à carteira, cochilando, e a outra metade debaixo das árvores no largo da feira, tesourando a vida alheia, tecendo mexericos. O assunto preferido é a política. Escangalham o prefeito e o delegado de polícia, vão subindo e, com ligeiras paradas nas secretarias e no gabinete do governador, acabam desmantelando o ministério e o presidente da República.
Falam demais, não ganham quase nada e começam a sentir necessidades exorbitantes. Têm rodovias, estradas de ferro, luz elétrica, cinema, praças com jardins, filarmônicas, máquinas de escrever e pianos. Só faltam escolas e hospitais. Por isso os sertanejos andam carregados de muita verminose e muita ignorância.
Trabalham pouco, pensam pouco. Mas querem progresso, o progresso que veem encartados nas fitas americanas. E progridem sem tomar folego. Numa casa velha de taipa arranjam uma sala bonita e metem dentro quadros, cortinas, penduricalhos.
Dançam o Charleston, jogam foot-ball, ouvem o jazz, conhecem o box e o flirt. Até nos jogos de cartas esqueceram o honesto sete e meio e adotaram, sem nenhuma vergonha, as ladroeiras do poker. Daí tiraram o bluff, que invadiu o comércio e a política. Em algumas regiões já existe o turf. E em toda parte a gasolina, o motor U.S.A.
Entretanto os rios estão secos, o gado morre, a lagarta rosada deu no algodão. Tudo tão pobre…
Para que esse bando de coisas de nomes esquisitos? Não era melhor que continuássemos a cultivar o terço, o reisado, o pastoril, a quadrilha, a cavalhada, o bozó pelo Natal, as sortes no S. João? Isso é nosso e é barato. O resto é dos outros e caro.
Dentro em pouco estarão todos no sertão falando inglês. Mas nós não somos ingleses…
* Publicado originalmente no semanário Novidade, nº 1, de 11 de abril de 1931, em Maceió.
Mais uma obra prima. Parabens
Leitura exepcional.
Que texto maravilhoso e tem algo tão atual nele, o que será?
Mestre Graça, texto ferino. Tiro certo sem arrudeio.
Sou do outro Brasil, da fronteira com o Uruguai, e desde muito aprecio Mestre Graça, por isso mesmo é uma riqueza ler publicações como essa. Obrigado.