A Semana Santa na antiga Maceió
Publicado no Diário de Pernambuco de 11 de abril de 1952
Félix Lima Júnior
Como era diferente a Semana Santa nos primeiros anos do século XX, na grande aldeia que era a capital alagoana! Fecho os olhos e fico relembrando.
No domingo, às 9 horas, a solene missa de Ramos. Depois a distribuição, na Catedral, das palmas verdes retiradas, na véspera, dos ouricuris e outras palmeiras, no Reginaldo, No Pau d’Arco, na Cruz Negra, no Cavalo Morto, na Pitanguinha, no Tabuleiro do Martins.
E apesar de serem todos muito bons católicos, bons crentes, gente de educação aprimorada, registrava-se, vez por outra, cenas indignas de uma igreja…
Às 11, quem estava nas ruas ou chegava às janelas, assistia a passagem dos fiéis, compenetrados, conduzindo um ramo bento, que terminava adornando o santuário familiar.
À tarde realizava-se a procissão do Encontro. Saiam dos cortejos: o de Nossa Senhora das Dores deixava a igreja do Rosário, com a irmandade do mesmo nome mais a de S. Benedito; da Catedral a outra procissão, do Senhor dos Passos, conduzindo um andor, acompanhado das confrarias do SS. Sacramento, Nossa Senhora do Livramento e Bom Jesus dos Martírios.
Verificava-se o encontro, quase sempre, numa praça, Deodoro ou D. Pedro 2º, onde o cônego João Machado de Melo pronunciava sermão alusivo. Estava iniciada a Semana Santa.
Na segunda-feira já não se realizava, como antigamente, a procissão do Triunfo, na qual apareciam Sansão, Rebeca, Judas e outras figuras bíblicas.
Na terça-feira assistia-se a procissão dos Enfermos. O cortejo deixava a Catedral, o sacerdote conduzindo o S. S. Sacramento. Parava à porta das casas onde havia pessoa doente, cuja família se entendera previamente, fornecendo o endereço.
O padre entrava, dava a comunhão. Retirava-se e o cortejo retomava a marcha até outra casa já avisada. Depois de visitar o último enfermo, recolhia-se ao templo de onde saíra.
Quarta-feira de trevas, como é chamada. Rezava-se, na Catedral, à noite, o ofício de trevas. Quando, terminadas as orações do ritual, apagava-se a última vela e a luz elétrica, ficando todo o templo no escuro, a algazarra era enorme. A rapaziada do Liceu, a meninada das escolas, dos colégios, lá estava, pelos corredores, cada um de olho numa cadeira para o barulho, que não era deste mundo!
Na quinta-feira, santa ou maior, como é chamada, o comércio, mal abria as portas, às 7 horas, enchia-se de pedintes solicitando o “jejum”… Em algumas mercearias punham uma barrica de bacalhau à porta e cada mendigo recebia um pedaço de peixe; noutras casas colocavam um saco de farinha de mandioca, distribuída em quartos de litro; nas padarias davam um pão ou bolacha; o resto do comércio distribuía moedas de cobre, um vintém ou dois.
Ao meio-dia o comércio fechava as portas. Desde 10 horas, porém, meninos e domésticas atravessavam as ruas, correndo. — Sinhá Maria, vá comprar o vinagre! — Edwiges, depressa, minha negra, vá comprar manteiga antes que “seu” Alexandre Freitas feche a padaria! — Juca, compre logo o bacalhau na Despensa Familiar! — Maroca, minha filha, o mercado já está quase fechando! Corra, compre feijão e azeite doce. Não esqueça o bredo para o ensopado amanhã!
Depois da última pancada dos relógios. Ao meio-dia, silenciavam os sinos das igrejas. Só se ouvia o som estridente das matracas agitadas furiosamente à porta das igrejas.
À noite já não percorria as rus a procissão de fogaréu. Entretanto, Maceió já assistira o desfile desse préstito, entre 7 e 9 horas da noite. Saía da Catedral, conduzindo a imagem de Cristo, às carreiras.
Uma porção de irmãos das confrarias, com suas opas, saíam correndo, uns, outros com passos apressados, à procura do andor, que era também conduzido às pressas. Eram os fariseus, eram os soldados de César, tentando aprisionar o santo filho de Maria.
E conseguiam detê-lo à porta da Catedral, conservada no escuro, simbolizando o Horto, onde ele orara. Em todas as igrejas por onde passava a procissão, ingressava pela porta principal, saindo por outra: no Rosário, pelo portão de ferro do lado esquerdo; nos Martírios, pela porta do lado esquerdo, que dá para a ladeira; no Livramento, pelo portão da rua João Severiano.
Sexta-feira santa, o maior dia, o mais triste da Cristandade. A cidade inteira se recolhia. Registrava-se silêncio fora do comum. Falava-se baixo. Ambiente pesado que a todos atingia.
Pela manhã, uma única missa, na Catedral. Não se varria casa, não se tomava banho, não se fumava, não se vestia roupa clara ou de cores berrantes… Mulher, na igreja ou na rua, de vestido encarnado, era por não possuir outro…
O comércio de portas cerradas, inclusive bares, sorveterias, cafés e bilhares. Os cinemas só exibiam a fita “Vida, paixão e morte de N. S. Jesus Cristo”. Circulavam os bondes de burros, mas os cocheiros, Bernardino e Catuaba à frente, guiavam sem chicote. Os pobres animais, nesse dia em que a humanidade comemorava a morte de Cristo, não apanhavam. Nesse dia somente…
Às 12 horas punha-se o almoço à mesa. Almoço “de jejum”, que mais parecia um banquete: arroz de coco, feijão, farofa, ensopado de maxixe e jerimum, bacalhau, caruru, vatapá, sururu de capote, bagre do Pilar, fritada de massunim, carapeba, camorim e cavala.
Depois doce de coco verde ou goiabada, rematada com um cafezinho quente, coado na hora… Era assim o jejum… Todos deixavam a mesa fartos, com estomago cheio, pesado…
Que diria desse “jejum” aquele cabra atrevido e irônico que, em Canudos, no mês de maio de 1895, segundo conta Euclides da Cunha, ouvindo o missionário frei Monte-Marciano pregar a santa missão e dizer que “podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando pela manhã uma chávena de café”, interrompera, grosseiramente e irreverente:
— Ora, isso não é jejum, não é nada! É comer e fartar!
Às 18 horas, depois da descida da cruz, expunha-se, na Catedral, a imagem do Senhor Morto, nos braços dos Apóstolos, que depois carregavam o féretro. Um deles conduzia a cruz com as iniciais: S. P. Q. R., que alguns traduziam irreverentemente: sabão, pão, queijo, rapadura…
As hastes do pálio eram dadas aos figurões do comércio e da indústria, cônsules e altas autoridades civis, de casaca, ou militares, com farda de gala. Atrás do féretro a imagem de Nossa Senhora das Dores, conduzida pela irmandade do Rosário.
Depois o governador, o intendente municipal, o presidente do Tribunal de Justiça, o Inspetor da Alfandega e mais “homens bons da terra”, de fraque, croisé ou de roupas cerimoniosas, de cores escuras, cortadas em legítimas casemiras inglesas pelo Manoel Coqueiro ou pelo Antônio dos Santos.
As senhoras, ricas ou remediadas, compareciam com suas roupas de seda preta, sem decotes, com mangas e saias compridas, sem enfeites. Um pelotão da Polícia Militar, de baioneta calada, com banda de música, dava guarda de honra.
Pelas ruas onde devia passar a procissão, muitas casas tinham tapetes e cortinas às janelas, castiçais de vidro com velas acesas, palmeiras em latas pintadas ou enfeitadas com papel seda. Na frente desses prédios espalhavam folhas de pitangueiras e de canela ou pétalas de rosas.
À noite, depois de percorrer as igrejas, beijando a imagem do Senhor Morto, fazendo algazarra, desrespeitando a casa de Deus, muitas vezes trocando uma moedinha de 200 réis por outra de 2$000, na bandeja das esportulas, ceiava-se o que sobrara do almoço, com reforço de macaxeira cozinhada, grude de goma, tapioca, angu, bolo de milho, pé de moleque, queijo do sertão. Era outro banquete capaz de fazer inveja a Pantagruel…
Surgia o sábado de Aleluia. A meninada não pensava em ir à igreja. Havia outro negócio a resolver: a cidade amanhecera cheia de Judas e era necessário liquidá-los. Não ficava em casa, calça velha, paletó rasgado, meia estragada, chapéu velho e furado!
Aproveitavam tudo e ao clarear do dia os Judas já estavam amarrados nos postes de iluminação ou nos portões e grades das residências. Uns traziam pregados à roupa bilhetes irônicos, perversos e ofensivos. Noutros liam-se testamentos, com doações nem sempre bem recebidas…
No Pontal da Barra, na Chã de Bebedouro, em Ipioca, ainda cerravam velhos, gerando-se barulhos e pedidos de intervenção da polícia…
Contam que o professor Agnelo Barbosa, certo ano, deixou-se amarrar, de madrugada, num poste que havia na esquina da antiga rua do Açougue, com a da Alegria, como se fosse um Judas, rosto coberto com uma máscara, roupa velha, estragada, um chicote à mão. Quando os moleques avançaram para rasgar o Judas, ele meteu o chicote sem dó, nem piedade…
Quando o sacerdote rezava na Catedral, o Glória in excelsis Deo, os sinos tocavam, descobriam-se as imagens e altares, subiam foguetes no Sobral, no Bom Parto, em Ponta Verde, no Feliz Deserto, no Félix Bandeira, na Bomba, no Trapiche da Barra.
Domingo, 5 horas da manhã. Saía a procissão da Ressurreição, acompanhada pela banda de música da Polícia. Itinerário quase invariável até hoje: ruas do Imperador, da Praia, Barão de Anadia, Nova, Praça Deodoro, Livramento, Comércio e recolher.
À noite realizava-se a coroação de Nossa Senhora, na Catedral, bem iluminada, com altares floridos e imensa multidão. Um grupo de gentis meninas, vestidas de branco, coroavam a imagem da Santa Mãe de Deus.
Estava finda a Semana Santa, e com ela o período triste do ano. Pensava-se então nas festas de São João, nas danças, nos busca-pés, nas fogueiras, nas adivinhações, nas grandes folias das noites de inverno em que eram homenageados os três santos, principalmente Santo Antônio, casamenteiro, amigo das moças…
*Publicado no Diário de Pernambuco de 11 de abril de 1952
Quase no fim da Quaresma, esse texto é formidável.
Parabéns Edberto, pelo resgate
e divulgação da história de Alagoas, especialmente de Maceió.Afranio
LEMBRO DE ALGUNS FATOS CITADOS E OUTROS MAIS ANTIGOS NÃO. NÃO RODAVAM OS ONIBUS NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO E AS RÁDIOS AM REPETIAM SEM PARA AS MARCHAS FÚNEBRES COM O DEVIDO DESTAQUE PARA ”MARCHA FÚNEBRE DE CHOPPIN”. O ALMOÇO DA SEXTA-FERIA ERA UM
VERDADEIRO BANQUETE.
muito bom. prossiga.
Caro Ticianeli, Lembro que na Catedral tinha uma belíssima missa cantada, na qual os padres ficavam nos púlpitos cantando os últimos sofrimentos de Cristo. Os Santos cobertos de Roxo e o barulho das matracas quando os panos roxos caiam e voltávamos a ve-los. Principalmente a mais linda, Nossa Sra. das Dores, num altar à direita, com cabelos naturais e as espadas no coração.
Mas eu gostava mesmo era na volta pois os oitis da Praça Deodoro estavam cheios e os maduros caiam no chão. Mamãe deixava eu apanhar o máximo que conseguisse.
Até hoje minha irmã a Profa. Luitgarde mantém a tradição do almoço de sexta feira com feijão, arroz e legumes, tudo no coco. Peixes, bacalhau e o camarão do Bar da Ostra. Mas o melhor de tudo é a divina ambrosia (doce de leite em calda), uma sobremesa totêmica, que ela consegue fazer igual a de Mamãe e nossa avó. Suas pesquisas me trazem lembranças felizes. Muito obrigada.