Salviano
Conto de Breno Accioly publicado no Diário Carioca de 18 de agosto de 1957
Breno Accioly
*Conto publicado no Diário Carioca de 18 de agosto de 1957.
Fica vazia a morgue e as rosas que murchavam em coroas, enormes coroas encostadas nas paredes, não deixam mais à mostra aquelas letras que douravam as largas fitas roxas.
Automóveis levaram-nas. Levaram em seguida os castiçais enormes de velas intermináveis e não demorará que também carreguem o esquife, retirem do cadafalso o cadáver que olha para cima sem poder ver o teto.
Esqueceram-se de fechar-lhe os olhos, de passar-lhe um lenço por debaixo do queixo e atá-lo na cabeça também olvidaram. De quando em vez da boca aberta sai uma mosca e pousando sempre e sempre nos dentes que os lábios repuxados não conseguem encobrir, outras moscas, asas de pouso incerto, volteando às cavernas do nariz afilado, adejam e descansam na testa sem cor.
É um cadáver sem dono o corpo de Salviano. Se alguém lhe velou a morte foi por conveniência. Se alguém lhe chorou a desgraça não foi por amor.
De tanto odiarem a morte inesperada de Salviano viram-no de longe, aceitaram o seu enterro como um sacrifício a cumprir e de comum acordo concordaram os parentes fosse o sepultamento no mesmo dia.
Há cinco horas, apenas desde o meio-dia Salviano usa uma gravata que nunca mais será deslaçada. Já mandaram retirar todas as coroas, agora nenhuma vela de chama impassível se encontra acesa.
Querem enterrar Salviano agora mesmo. Querem enterrá-lo antes. Que Adília chegue do engenho, antes de Adília saber que Salviano é um defunto, querem vê-lo no cemitério, à beira da cova aberta às pressas querem o caixão do desgraçado, caixão sem ouropel nem alças douradas.
O coveiro gorjeteado espera e se a petição dirigida ao Chefe de Polícia tiver sido deferida não demorará que o coveiro trabalhe, comece a encher o buraco que ele mesmo abriu.
A tarde avança, nuvens cinzentas da noite que chega embrumam a paisagem e o crepúsculo se denunciando prematuro desfalece o sol que se afoga lá pras bandas da lagoa.
Nada resta a fazer. Quando receberem o deferimento do Chefe de Polícia fecharão o caixão com marteladas sucessivas, e depois de carregarem o esquife com pressa com pressa entregarem ao coveiro o cadáver que será jogado numa sepultura rasa depois de terem feito tudo isso com a morte súbita de Salviano, voltarão para casa, como se houvessem enterrado um condenado; entrarão nos automóveis e, sem nenhuma crispação nos rostos embrutecidos, afastar-se-ão da morgue que não escutou choro nem lamentação.
Maceió pela primeira vez assiste a tamanho despropósito.
Nem os leprosos que morrem em isolamentos, pavilhões distantes de um bairro sem condução, jamais foram enterrados com tanta ânsia. Esperam um dia e uma noite, sempre esperaram vinte e quatro horas para levantar a parede de tijolos do carneiro aberto.
Todavia, na casa da amante o Chefe de Polícia se encontra e quando a amante o afaga nem o Governador tem força para interromper a carícia que se prolonga, interminável enlevo nunca interrompido.
Porta com aldraba, janelas cerradas, quintal policiado por um cão que não teme revólver nem cacete, é a casa da amante do Chefe de Polícia, construção antiga, achalezada. sem platibanda.
De difícil acesso devido ao muro perfurado por ferros pontiagudos, cacos de vidros enterrados na argamassa antiga, o “rendez-vous” do Chefe de Polícia é um reduto de biqueiras. Ai de quem procurar o Chefe de Polícia nessa casa que nunca se tornou suspeita, casa que ninguém ousa identificar, casa desconhecida pela vizinhança, por todo mundo.
Imprevisto esse que não fora conjecturado por ninguém da família de Salviano, entrave esse que forçou o encarregado da morgue a reacender as velas de pavio longo, causa também de vexames porque nenhuma flor das coroas modestas poderia ser recuperada.
Por safadeza venderam as flores, todas as flores das coroas foram vendidas ao agente funerário, com abatimento de vinte e cinco por cento fizeram esse negócio.
E não há mais tempo de enterrar Salviano que continuava de boca aberta, dedos entrelaçados no peito imóvel.
Fechado já foi o portão do cemitério e por entre as grades que se alevantam sobre um alicerce de pedra veem-se apenas vultos de túmulos, criptas escurecidas pela noite que tomba.
Badalou o relógio do hospital a última pancada de seis horas já passam minutos, insuportáveis minutos para os parentes de Salviano, que não vestem preto nem choram.
Num grupo eles confabulam lamentando seu passado apolítico, condenável conduta. Se fossem da situação, se ao Governo pertencessem já poderiam estar em casa, e do Chefe de Polícia não teriam tomado conhecimento.
Embora ricos, os parentes de Salviano não têm topete para abordar o Diretor dos Correios e Telégrafos, exigir-lhe telegrama algum que avise a morte de Salviano não seja expedido para Santana do Ipanema, fique retido, Adília sem poder saber da notícia cruel. Voltam a confabular e um deles que havia ido mentir à direção da radiodifusora, dizer à Seção de Anúncios a última vontade de Salviano deveria ser respeitada, nenhuma notícia sobre o desenlace devia ser divulgada, da esquina mais próxima volta ofegante, escutando a notícia do falecimento de Salviano no rádio de um botequim surge na calçada sombria enxugando da testa um suor grosso.
Dispersam-se mas reconhecendo o erro da tocaia numa rua sem árvores, rua iluminada por postes de luzes descobertas, luzes sem globos nem protetores, voltam os parentes de Salviano à calçada e na porta da morgue se postam, à maneira de investigadores perscrutam o longínquo da rua deserta.
Não estão armados. Revólveres não esfriam coldres tampouco nenhum punhal se esconde em bainha que paletó fechado não deixa ver. Todavia, punhos não faltam para impedir a entrada de Adília na morgue, agora sem ninguém, sala acimentada onde Salviano esfria, apodrece.
Supõem chegue Adília no noturno, e acreditando Adília venha a despistar, apareça somente horas depois, madrugada adentro, em vez de descer do trem se dirigindo à morgue só apareça no fim da noite, são todos eles homens alertas.
E esses homens que não praguejam, apenas mordem os beiços, nem soltam palavrões, também não se entendiam; esses homens implacáveis não querem ser surpreendidos, de modo algum iludidos.
Decidiram-se a defender os seus caprichos e por isso vigiam a rua, guardam a porta escancarada da morgue sem velório. Serão eles a noite inteira vultos sem capote que Adília vislumbrará se de longe enxergar bem. Vultos que chegaram a ficar sobressaltados quando o leiteiro da madrugada morna foi vislumbrado no princípio da rua sem cães.
E todos eles, ansiosos vultos de calma aparente, também outra vez se enganaram quando em vez de Adília viram um moroso guarda-noturno esgueirar-se pelas paredes, casas sem batente nem mendigos no meio-fio empenumbrado.
Outrora sadios, dantes equilibrados, os quatro irmãos de Salviano não se intimidavam, mas agora o menor ruído lhes sobressalta, aniquila-os depois de crispar-lhes as faces silenciosas.
Transtornou-lhes a morte de Salviano, a certeza de que Adília virá ao enterro os deprime, aniquila-os, embora a resistência de todos eles não tenha sido atingida, intacta ainda se conserve a fibra dos sertanejos resolutos.
Vem correndo um carro, faróis acesos encadeando gatos da areia da rua sem árvores, mas foi apenas um susto porque os passageiros são prostitutas que cantam e cantando chegarão à peixada noturna da Lagoa Manguaba.
As mulheres nem olharam os quatro homens que avançam até ao meio-fio, sempre perscrutadores, sombrios, continuando elas a cantar, como se não tivessem visto a morgue acesa insistem as decaídas em repetir estribilhos de música regional, samba de breque dengoso.
Depois, o silêncio pesado de uma noite sem vento, solidão intensa que nenhum canto de galo chega a romper. Do outro lado o muro branco do cemitério plano, retângulos de argamassa se enterrando na areia suja, sepulturas que o vento não varre, cruzes e estraçalhadas coroas dominadas pela noite indomável.
Todo plúmbeo, o céu sufoca as estrelas e o calor aumenta quanto mais fraco se escuta o marulho da lagoa lambendo as baronesas das margens.
Em Santana do Ipanema também a solidão recobre os lajedos e na casa-grande do banguê sem canavial Adília se abana, leque catando vento para o seu peito arfante. Sabe da morte de Salviano e nem por um instante sentiu vontade de ver o morto que ela empobreceu, bacharel de anel no dedo que ela ensinou a jogar; sujeito desfibrado que ela viciou na bebida, uísque encharcando-lhe as vísceras preguiçosas, sem vontade.
Se quisesse lembrar-se-ia do primeiro encontro, mas Adília prefere continuar se abanando, sempre sem pensar em nada que a prenda a recordações de desfecho lamentável.
As pulseiras, os brincos, o colar com que Salviano lhe enfeitou o pescoço, todos os presentes de há muito esquecidos no escrínio marchetado, as cartas, os telegramas, as rosas que o calor murchou nas cantoneiras — nada disso perturba Adília, agora solitária e imersa na escuridão da varanda deserta. Dir-se-ia jamais houvesse conhecido Salviano, nunca tivesse escutado a sua voz doce que lhe prometia viagem e amor em clima de neve eterna. Chile, Paris depois Suíça, pouco se importando de terminar a vida na casa-grande do banguê, terminar falido depois do dinheiro ter sido gasto em cheques sem conta. De limitado horizonte Adílla seria o seu mundo.
E Adília também não faz questão de rememorar a noite do rompimento, noite em que Salviano não a viu, noite de bêbado caindo nas valas da estrada enlameada. Noite em que o corrompido não pôde ver Adília jogando paciência, a insensível Adília os apelos do Salviano que não batia à porta, mas a arranhava, com unhas de gato riscava o verniz das tábuas cerradas do quarto silencioso.
Arrasou-o e não sentindo remorsos, Adília abandonou Salviano numa noite de chuva pesada, de propósito, ao escutar o automóvel do amante transpor a porteira, foi se trancar na camarinha. E nunca mais quis vê-lo.
Repete o rádio a transmissão da morte súbita do advogado Salviano e Adílla, trocando o leque de mão, continua a se abanar, a abanar-se com a mesma cadência, com o mesmo ritmo que de leve lhe agita as carnes dos seios fartos. E não demorará que Adília vá dormir um sono inteiro de tranquilidade incomum.
Dormir pensando na venda dos bois de suas terras, antigas léguas de engenho, agora de fazenda onde o capim viceja e a irrigação torna fofos os alqueires.
Dormir pensando em qualquer coisa, menos no amortalhado Salviano que o rádio de vez em quando enluta.
Um conto muito bem estruturado. Escrito num português impecável para aquele tempo. Uma descrição de um sepultamento de um cidadão totalmente abandonado por todos aqueles que compareceram ao velório de Salviano, abondonado que fora também pelz belíssima amante. Exuberante descrição da situação de um morto bem abandonado!