Rua da Lama

Rua da Lama no Centro de Maceió, atual Rua Dr. Luís Pontes de Miranda

Carlos Paurílio

Publicado no Alagoas: Mensário Ilustrado, de 1938, e apresentado como “trecho de um romance inédito”.

A rua da Lama tiritava de frio, sujava-se em poças imundas, em sarjetas estagnadas. A água caída do céu não a laνaνa, porque a razão de seu nome vinha menos da rua que de seus moradores.

Era madrugada já, e ela ainda não dormia. Espiava pelos olhos velados de suas janelas os retardatários que passavam. Escutava os apitos dos guardas-civis, cuja distração no momento era justamente apitar.

Noêmia recolhera-se cedo. Sua janela era a única que não estava aberta. Rodrigo, debruçado sob a lâmpada, lia ainda. Estudava e refletia nos seus projetos. Apesar de toda sua coragem, de todo seu orgulho, de todo seu sacrifício, o futuro lhe surgia incerto, obscuro. Haveria de ser o único e insubstituível arrimo de sua mãe. Assim, não sentia cansaço aprendendo até alta noite nos livros de escrituração. Não sabia ele que, ao mesmo tempo, velava como uma sentinela.

A Rua da Lama ou Beco da Lama hospedou o meretrício de Maceió por décadas

Vozes roucas, lá fora, gritavam palavras obscenas alternando com gargalhadas canalhas. Às vezes se intercalavam soluços. Era a existência ignóbil do meretrício, de que se defendia apenasmente com a madeira de uma porta fechada.

Quando saía, surpreendia faces macilentas, não refeitas das noites de prazer barato e ainda sorrindo insaciáveis. O vicio atraía a inocência como a cobra o passarinho. Algumas eram de uma beleza fanada. Outras tinham no olhar um jeito de pedir de mendigas. Nenhuma delas, todavia, o amedrontava. Sua proximidade só era perigosa para os que vinham de longe procurá-las.

Essa madrugada era como todas as outras na rua da Lama. Nada diminuía o mercado fácil de carnes famintas, parecia mesmo aumentar com o frio, a chuva, a lama.

Rodrigo não sabia do navio de guerra estrangeiro fundeado no porto. Homens desconhecidos, vindos de terras longínquas, descontavam-se das longas viagens, dos dias perdidos na vasta solidão dos mares. Marinheiros bêbedos procuravam mulheres, que não tornariam a ver mais nunca.

Súbito, alguém bateu à porta. O rapaz teve um sobressalto. E, à medida que as pancadas continuavam, o pânico tomava seu coração. Agora eram murros formidáveis que abalavam os postigos. Noêmia levantou-se chorando, gritando.

— Não abra, não abra!

Como ele achou bela, nesse instante, sua mãe! Tinha os cabelos soltos, derramados sobre os ombros. Um perfume intenso, inebriante, se desprendia desses cabelos e inundava a sala toda. Jamais a vira assim na sua vida.

— Não abra!, não abra!

O pavor deixava-o sem fala, sem um gesto, pregado numa cadeira de chumbo. Se os brutos rebentassem a porta e invadissem a casa, ambos seriam sacrificados. Ele era fraco, sua mãe era bela.

O barulho prosseguia tão perto deles que não sabiam o que fazer. Haviam errado a casa, com certeza. Eram os marinheiros embriagados.

Com uma força superior a ele, Rodrigo foi escorar-se à porta, como se seu corpo pudesse ser outra barreira. Ouviu correrias, apitos. As pancadas cessaram. Viu uma claridade indecisa filtrando-se através as frinchas da janela. Felizmente já era dia. Estavam salvos.

3 Comments on Rua da Lama

  1. Alaim Paurilio de Lucena // 1 de março de 2021 em 20:02 //

    Belissimo trecho deste mensario do meu Tio Carlos Paurilio

  2. Telmo Monteiro // 2 de março de 2021 em 08:29 //

    Será que foi daí que surgiram as “meninas” da praça do montepio?

  3. MARILIA BARBOSA DE MELO // 23 de abril de 2021 em 20:59 //

    Parece-me que essa Rua da Lama é a mesma que “aparece” no romance Angústia, de Graciliano Ramos.

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