Recordações do Natal de 1894 em Bebedouro
Eta e Alpha (pseudônimos)
*Publicado no Gutenberg de 10 de abril de 1895 com o título “Pelo Bebedouro”.
Eu e minha querida irmã deliberamos escrever as impressões que tivemos durante as festas do Natal de 1894 a 1895 no aprazível arrabalde desta capital denominado Bebedouro.
A princípio cada uma de nós fez e reduziu a escrito o que viu e sentiu naqueles dias festivos; depois entendemos ambas refundir tudo quanto havíamos feito no presente artigo, que, se tanto merecer, desejamos ver publicado.
Não dispomos, é verdade, do necessário preparo mental para darmos realce a esta nossa despretensiosa narrativa. A veemência, porém, do desejo de tornarmos público isso que aí vai, sobrepujou-nos por demais; relevem essa ousadia.
…
O Natal
O Bebedouro que nos tem sido por vezes o refúgio benéfico, onde, correndo da temperatura abafadiça da capital, encontramos uma certa amenidade, desta ocasião nos proporcionou, sobretudo, muitas distrações.
Fomos lá na antevéspera do dia de Natal. Tomamos a casa de nossos parentes, que se achavam ali provisoriamente.
Passamos esse dia sem interesse, a não ser o bom banho da manhã.
Notava-se um certo movimento dos habitantes daquele povoado, acrescido o número deles com muitas pessoas de fora.
É que todos se preparavam para a festa.
Homens, mulheres e crianças viam-se à tarde passeando alegres pelo longo das principais ruas.
Em algumas casas cantava-se e tocava-se. Assim se escoou uma parte da noite.
À véspera do Natal é que foi o great attration, como diz o inglês, de toda gente.
Os bonds que iam desta capital para ali conduziam e traziam sempre número superior à lotação.
Despejavam-se de hora em hora na rua da frente, onde se acham assentados os trilhos.
Ao cair do dia mais e mais se acentuava a frequência do povo, até que escurecendo de todo, por toda a parte via-se e ouvia-se a dança cantada, que é o característico do Natal entre nós, o afamado Coco.
Fomos, a convite da família Abreu, para sua residência, onde se organizaram diversos pares para quadrilhas e outras danças francesas.
Também cantaram diversos trechos de música italiana e brasileira, sem esquecer o recitativo.
Prolongaram-se as danças até que os sinos deram o sinal da Missa comemorativa do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Essa Missa chamada do galo, teve ali o começo exatamente à meia-noite, hora do primeiro cantar daquela ave.
Todos nós nos encaminhamos à capelinha de Santo Antônio, em que assistimos ao santo sacrifício, e, acabado ele, voltamos a continuar os nossos folgares até às 3 horas da madrugada, quando regressamos à casa, acompanhadas nós e demais parentes por tão distinta família e muitos cavalheiros ao som da excelente orquestra que havia tocado durante a noite ali.
Ficamos gratas pela delicadeza e fino trato da ilustre família Abreu.
Não podemos esquecer a perspectiva da praça da igreja; estava enfestonada e iluminada a giorno inclusive a capelinha e muitas casas adjacentes.
Durante o tempo que se esperou pela Missa, desde as 8 horas às 12 da noite, animou aquelas paragens a banda de música do 26º batalhão com suas harmoniosas peças.
O ilustre dr. Lopes se desempenhou perfeitamente bem do encargo de promover os festejos da indicada noite.
Correu o dia 25 de dezembro sem coisa notável até a tarde quando fomos chamadas para fazer parte do grupo que se ia retratar.
Moças e moços tomaram lugar na calçada da casa da família Abreu e o hábil sr. Gabriel Jatobá fotografou com bom êxito o mesmo grupo e mais a casaria que vai até à capelinha de N. Senhora, ereta na montanha, princípio do tabuleiro.
Depois entramos e fomos executar ao piano alguns trechos de música; outros cantaram e alguns recitaram belas poesias, reinando sempre a maior cordialidade.
Ano Bom
Os dias que se seguiram ao 25 foram destinados aos banhos, passeios e visitas, ouvindo ora na residência do ilustre sr. Moeda, ora na do dr. Lopes lindas canções italianas e brasileiras cantadas com muito sentimento e pedaços de música ao piano e rabeca, tocadas com maestria, além de palmas e toadas coquistas que de quando em vez chamavam a nossa atenção.
Na véspera do dia de ano bom, tendo sido convidadas para a casa do dr. Lopes, lá fomos.
Quem não sabe o que é a festa do ano bom?!
Todo o povo gosta imenso de estar acordado para esperar a aurora do novo ano.
Procura se ter alegria no 1º dia do ano, porque se crê que deste modo se torna o ano inteiro alegre e feliz. Já é uma felicidade acreditar nisso.
Dançou-se muito até que ao aproximar-se a hora do ocaso do ano de 1894 e a do surgimento de 1895, organizou-se uma quadrilha, que foi calorosa e entusiasticamente dançada no meio da qual deram muitos vivas ao ano novo de 1895.
Ainda por muito tempo continuaram as danças, desde a fascinadora valsa até o estrepitoso Coco, nos retiramos às 4 horas da madrugada para tomar o bonds expresso que nos conduziu à capital a fim de ouvirmos missa, como ouvimos na igreja do Livramento. Em seguida voltamos para Bebedouro e, enfadadas, levamos quase o dia inteiro a dormir.
À tardinha empregamo-la em passeio e à noite ficamos em casa a comentar as ocorrências do dia anterior.
Dia de Reis
Do dia 1º de janeiro à véspera de Reis tivemos a mesma vidinha dos dias intermediários do Natal e Ano.
Bem, apenas houve demais os “reisados” que divertiram com suas trovas e passos as famílias reunidas no aludido bairro.
Vimo-los na residência do dr. Lopes por duas vezes.
O povo apinhava-se nas janelas e reinava em todos o maior contentamento.
Também assistimos às exibições do interessante Grupo Bahiano em casa do ilustre dr. Euzébio de Andrade.
Simplesmente bom; agradou em geral, pelo belo das toilettes e pelo “aplomb” com que executava ao som de uma excelente orquestra os seus cantares e danças.
Mas voltemos à véspera do dia de Reis.
Convidadas pela família Abreu, lá comparecemos.
Ali, como sempre dominavam a satisfação e o prazer.
Houve um pequeno concerto, arrancando aplausos constantes dos espectadores, quer dos que estavam dentro do salão, quer dos que se achavam do lado de fora.
Foi uma das melhores notas da festa.
Depois deu-se princípio às danças com muita animação até às 4 horas da madrugada quando saímos todos em direção à Capelinha de S. Antônio, onde havia missa.
Terminado esse ato religioso, voltamos à casa dos distintos Abreus, dançando-se ainda até às 5 horas da manhã, e logo após a última quadrilha formou-se uma elegante passeata, cada cavalheiro dando o braço à sua dama, com os músicos na vanguarda a tocarem uma lindíssima valsa e assim fomos todos às casas de alguns conhecidos à frente dos quais cantou-se fazendo-os despertar.
Para ultimar dançou-se uma valsa na dita casa Abreu, vindo o bond das 6 horas roubar-nos algumas famílias e outras convivas residentes na capital.
Retiramo-nos também, e assim findou essa nunca esquecida reunião, deixando impressa em nossos corações uma terna e sempre viva saudade.
No dia de Reis à noite houve ainda divertimento na residência dos Abreus a que assistimos, fora outros que viam-se em diversas habitações.
Sempre a alegria por toda parte, muito povo pelas ruas; mas sentia-se que era o último dia de festa, porquanto a alegria era mesclada como que de um sentimento de tristeza.
Além disso o enfado já invadia naturalmente aos que tomaram parte ativa nos folguedos populares e era forçoso fazerem-se as despedidas.
À noite do dia 9 viemos para a capital em bond expresso, cheias das mais sentidas recordações das festas que passamos em Bebedouro, talvez a melhor ou uma das melhores que havemos tido no correr de nossa existência.
…
Os amigos dos distintos oficiais Abreus, que se retiravam para a capital federal, querendo dar-lhes uma prova de apreço e estima por uma última despedida, ofereceram-lhe na própria residência da família dos mesmos Abreus uma partida, a que nos foi gratíssimo concorrermos.
Pareceu-nos uma espécie de enterro de ossos, que, entretanto, correu animadamente até alta madrugada.
Houve de tudo.
Foi a súmula do que se tinha feito nos bons dias passados.
…
Que todos tenhamos por muitos e dilatados anos festivos dias como os de que acima falamos são os votos sinceros de
Eta e Alpha.
Que maravilha! Mas, foram tempos idos e vividos…