Recordações de Natal

O texto abaixo foi publicado originalmente na revista O Cruzeiro de 20 de dezembro de 1947 pela escritora Maria Luíza de Queiroz, irmã caçula da consagrada cearense Rachel de Queiroz, que morou em Maceió entre 1935 e 1937.

Isinha, como era tratada entre os mais íntimos, foi autora com a irmã famosa do livro autobiográfico “Tantos Anos” e era jornalista. Trabalhou por muitos anos na extinta Rede Manchete de Televisão.

Isinha Queiroz, junto com Rachel de Queiroz, na capa do livro Tantos Anos, escrito pelas duas

Recordações de Natal

Por Maria Luíza de Queiroz

“Sino de Belém, pelos que inda vêm!
Sino de Belém, bate bem, bem, bem.”

Isso mesmo, poeta [faz referências ao poeta Manuel Bandeira, autor dos versos acima], o sino da capela batia, batia, chamando os que ainda vinham longe descendo a curva do caminho. No meio da praça de capim seco, desde cedo, com o sol ainda claro, o carrossel de dragões alados e cavalos vermelhos rodava e gemia sob o peso da meninada.

Nas barracas, cobertas com palmas de coqueiro da praia, os moços compravam vidro de loção e anel com pedra de cor para dar à namorada como presente de festas.

As mulheres ficavam no terreiro no meio da fumaça das lamparinas de querosene, enquanto os meninos mais pequenos dormiam nas redes armadas à sombra discreta dos “flamboyants“.

Só tarde da noite começava o pastoril, que havia tempo de sobra até à hora da missa.

O grande galpão da casa de farinha, com as paredes em preto cobertas de ramos de “risos do prado” e tranças de papel crepom, ficava cheio de gente enquanto a orquestra tocava hesitante as partes mal decoradas, interrompida pelos moleques inquietos que, sentados nas traves, trepados pelas prensas e beirais acenavam aos gritos para os que tinham ficado de fora.

No palco, separado da plateia por uma corda amarrada em tornos de marmeleiro, a gruta do Presepe iluminado surgia mística, sob a admiração geral, no meio de Outeiros de pedra musgosa e colinas de areia por onde subiam carros e carneirinhos de celuloide.

Por trás entre nuvens de tule azulado, salpicados de estrelas e crescentes recortados em papel de prata, dois anjos sonolentos, trêmulos de cansaço – ai, bem o sei! – ficavam de mãos postas e olhos no alto, o diadema de pedrarias oscilando no meio dos cachos louros feitos de véspera, a comprida camisolas com debrum, de arminho se arrastando no pó encarnado do tijolo.

Um silêncio comovido caia sobre a sala quando a Estrela d’Alva surgia radiosa, vestida nas pregas fartas do cetim branco, uma estrela dourada prendendo as tranças do cabelo, cantando com voz magoada a sua estrofe e saindo de manso, como se voasse no céu, as grandes asas ondulando a cada movimento do corpo.

Depois da peregrinação dos pastores vinham os Reis Magos, assustados e erradios, enrolados em capas e turbantes de laquê escarlate, entregando apressados suas oferendas de latão, tropeçando confusos nas folgadas roupagens de belbutina furta-cor.

Chegava então a cigana bailarina, varrendo o encerado com a saia rodada de tafetá chamalote, o corpete justo bordado a missangas de cor, o pé calçado na alpercata de tirinhas, mal tocando o chão, acompanhando o ritmo desigual da orquestra no voltear da sua dança pagã.

Era um ruge-ruge, um arrastar de bancos, um bater de palmas marcando o compasso e só o respeito pelo inocente Menino-Jesus deitado em Sua Glória no abençoado berço de capim, evitava que mais calor houvesse nas manifestações de agrado.

Por último, vinha o bando alegre das pastoras, num ondeado chamejante de lantejoulas, vidrilhos e ouropéis, sacudindo os pandeiros enfeitados de fita, rodopiando e cantando a despedida queixosa, atirando beijos para entusiasmo da assistência, jogando ao acaso, já murchas e empoeiradas, as flores dos chapéus de palha, saindo às carreiras, pois faltava pouco para meia-noite e o sino já há que tempo que tocava a chamada da missa.

______

Dos dois anjos louros, o de manto azul, coitadinho, — cansou de ser anjo na terra, bateu as asas e foi ser anjo no céu. O outro, o cor de rosa, cumpre a sina que Deus lhe deu e medroso faz sua estreia, com uma vênia perante o respeitável público, tão grande e tão vário agora.

A Estrela d’Alva, de olhos meigos, tão linda que era, deu um mau passo, sumiu de casa e anda penando por ai.

Um dos três Reis Magos cometeu crime de morte e tira sentença na cadeia da Capital. O segundo botou negócio de bebidas, usa roupa de gabardine gris e anel de brilhante no dedo. O terceiro, o Melchior sempre desgarrado e tristonho, ficou longe, enterrado nos campos de Pistoia [na Itália: 2ª Guerra].

Das pastoras, uma entrou para o convento, outras casaram, as outras choram a sua solidão melancólica na secura do sertão.

Minha Nossa Senhora, o que vai ser do rosado Menino-Deus, erguendo em desamparo os bracinhos de louça, sozinho naquela gruta escura e fria, sem proteção dos anjos, sem a cantiga das pastoras, sem os presentes dos reis?

Quem irá — quem? — render homenagem ao Seu Nascimento?

A vila é tão pequena, sua gente tão pouca, tão pouca a sua alegria.

Onde irão encontrar a cigana bailarina, o grupo risonho das pastorinhas, a Estrela d’Alva perdida?

1 Comentário on Recordações de Natal

  1. André José Soares Silva // 25 de dezembro de 2020 em 06:01 //

    Como era bonito de se ver os folguedos e danças se apresentando na Praça da Faculdade. Recordação da minha infância…

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