Quando José Lins do Rego morou em Maceió
O paraibano José Lins do Rego Cavalcanti, que nasceu no município do Pilar (PB) em 3 de junho de 1901, desembarcou em Maceió em dezembro de 1926. Vinha de uma breve passagem como promotor de Justiça em Manhuaçu, Minas Gerais, para onde foi em 1925 por indicação do sogro, que conseguiu esse cargo com o governador de Minas Gerais (1924/26), Fernando de Melo Viana.
Havia casado, em 21 de setembro de 1924, com a prima Filomena (Naná) Massa Lins do Rego. A primeira filha do casal, Maria Elizabeth, Betinha, nasceu em junho de 1925, ainda na Paraíba. Em 28 de outubro de 1947, Betinha casou-se com Henrique Bastos de Simas Filho.
O casamento de José Lins com Filomena ocorreu no município de Cruz do Espírito Santo.
Naná era filha do também paraibano senador Antônio Massa, proprietário de terras na Paraíba e em Alagoas, e de Júlia Massa, filha de senhor de engenho. Seu pai foi quem proclamou a República na Paraíba. Era politicamente ligado ao também paraibano Epitácio Pessoa, de quem chefiou a campanha nas eleições presidenciais de 1918.
José Lins do Rego era filho único de João do Rego Cavalcanti Sobrinho e de Amélia Lins Cavalcanti de Albuquerque (morreu em 1902). Seu pai, que faleceu em abril de 1920, foi um abastado proprietário rural na Paraíba.
Com o apoio da família e da esposa, José Lins do Rego abandonou o cargo de Promotor. Irrequieto, se envolveu com a política mineira e se atritou com Camilo Pimentel. Não ficou desempregado. Foi trabalhar como Fiscal de Bancos em Maceió — outra indicação do sogro —, função em que permaneceu até 1930. Recebia um senhor salário para a época: 800 mil réis por mês.
Antes de embarcarem para Alagoas, passaram uma temporada no Rio de Janeiro, onde nasceu a segunda filha do casal, Maria da Glória Lins do Rego, que se casou em 28 de dezembro de 1956 com Ilídio Francisco dos Santos, um fazendeiro paranaense.
Após a Revolução de 30, ainda em Alagoas, passou a ser Agente Fiscal do Imposto de Consumo. Quando se transferiu para o Rio de Janeiro em 1935, mesmo ainda oficialmente lotado em Maceió, assumiu a função de Auxiliar do Serviço de Fiscalização do Selo nas Operações Bancárias junto à Delegacia Fiscal daquele Estado (Jornal do Commercio, RJ, de 4 de dezembro de 1935).
Em 14 de novembro de 1935, o presidente Getúlio Vargas, atendendo a seu pedido, assinou a sua transferência “para o interior de Minas Gerais” (Diário de Notícias de 15 de novembro de 1935). Em 26 de março de 1938, o Correio da Manhã publicou na coluna Atos do Presidente da República, que, novamente a pedido do servidor, o transferia para o interior do Rio de Janeiro no cargo de Agente Fiscal do Imposto de Consumo. Foi fiscal toda a vida, mas nunca multou ninguém.
Independente das transferências, a partir de 1935 José Lins do Rego já estava morando no Rio de Janeiro com a família, ampliada com mais uma filha, esta nascida em Maceió em 3 de maio de 1933. Maria Cristina do Rego Cavalcanti casou-se, em 11 de novembro de 1952, com o diplomata Carlos de Campos Veras, filho do deputado Miracles Veras e de Maria Veras.
Surge o escritor
Desde estudante que Lins do Rego exercitava o trato com as letras. Foi colaborador no Jornal do Recife e, em 1922, fundou com Osório Borba o semanário Dom Casmurro, que teve vida curta: a polícia do governador pernambucano Sérgio Loreto empastelou as oficinas do jornal e jogou todos os tipos no Rio Capibaribe.
Mantinha-se em contato com o meio literário, frequentando as rodas de conversa com José Américo de Almeida, Osório Borba, Luís Delgado e Aníbal Fernandes. Foi ainda em Recife, quando estudante, que conheceu os estudos de Gilberto Freire, que em 1923 regressou dos EUA expondo novas concepções sobre a formação social brasileira, influenciando toda aquela geração.
Nos seus últimos anos em capital pernambucana, representava a recém-lançada revista “Terra do Sol”, editada no Rio de Janeiro e dirigida por Tasso da Silveira e Álvaro Pinto. Divulgava também o “Anuário do Brasil”, editado pelo mesmo Álvaro Pinto.
Em outubro de 1924, no Diário de Pernambuco, Gilberto Freyre comentou um artigo de José Lins publicado na revista “Nova Era”, da Paraíba, informando que ele, já diplomado, vivia “muito só num seu engenho”. Ele escrevera sobre o levante militar das forças paulistas daquele ano e constatara que “felizmente uma forte reação dentro das classes armadas procura reintegrar o exército brasileiro no que ele deve ser”.
Com pai e avôs senhores de engenho, José Lins do Rego, ainda jovem demonstrava que não perseguia a fortuna, mas era identificado como alguém que tinha posses, como fez, em 10 de agosto de 1927, o Diário de Pernambuco ao publicar nota informando que o “Dr. José Lins do Rego” visitava parentes e amigos em Recife e que estava “atualmente exercendo a advocacia no vizinho estado nortista, onde é também abastado proprietário rural”.
Segundo depoimento de sua esposa Naná ao repórter Gilberto Trompowsky (O Cruzeiro) em 16 de março de 1957, era ela quem administrava as finanças da casa. Assumiu essa função ao perceber que o marido era um sonhador, inteiramente dedicado às letras. Foi ela quem economizou nos gastos para viabilizar a edição do seu primeiro livro, “Menino de Engenho”, em 1932. Não precisou usar o dinheiro. A Andersen Editores assumiu a publicação de 2.000 exemplares, pagando os direitos autorais.
Quando faleceu, em 12 de setembro de 1957, aos 56 anos de idade, estava lotado no Gabinete do Ministro da Agricultura, no governo de Juscelino Kubistchek, para onde foi designado em maio de 1956. Ainda era Agente Fiscal do Imposto de Consumo.
Suas últimas horas foram no Hospital dos Servidores do Estado. Faleceu à 1h15. Tinha cirrose e síndrome hepatorenal.
De direita
Identificado como politicamente de direita, José Lins do Rego chegou a estabelecer, em Maceió, vínculos com os integralistas entre 1932 e 1934. Sua militância política não era secundária. Em entrevista ao professor e historiador Sávio de Almeida, Moacir Pereira, um expoente dos integralistas em Alagoas, revelou que foi o escritor paraibano que o levou para os “verdes”. Foi apontado, também, como o articulador da visita de Plínio Salgado — líder nacional desse agrupamento — a Alagoas em 1932. No ato de instalação do Núcleo Integralista em Maceió no dia 20 de agosto de 1933, lá estava o Lins do Rego discursando.
O baiano Jorge Amado também o via como de direita. No Boletim do Ariel, de janeiro de 1934, ao elogiar a escritora Lucia Miguel Pereira, autora de “Maria Luiza”, comentou que, “com Octávio de Faria e José Lins do Rego, Lucia Miguel Pereira forma o grande trio dos moços intelectuais da direita no Brasil”.
O rompimento com o fascismo se deu quando ridicularizou o livro “O Esperado”, de Plínio Salgado. Passou, então, a ser agredido duramente pela imprensa “verde”. O Povo (RJ) chegou a publicar que ele levara uma surra do Lúcio Cardoso. Negou, mas reconheceu que apanhou nas manifestações estudantis em Recife e depois, já no Rio de Janeiro, nas confusões do futebol (era torcedor fanático do Flamengo, clube que chegou a dirigir).
Depois desses episódios, quando os críticos perceberam que a sua obra tinha forte conteúdo sociopolítico, passou a ser identificado como comunista. Essa imputação lhe trouxe problemas em 1953 ao tentar visitar sua filha, então morando nos Estados Unidos. Foi impedido pelos delírios macartistas que contaminava a sociedade norte-americana. Era considerado simpatizante do comunismo.
O Regionalismo de José Lins do Rego e de Jorge de Lima
O autor de Menino de Engenho, na primeira fase dos seus escritos, não poupava críticas ao modernismo, principalmente em sua vertente paulista. Evitava ser identificado com aquela “meia dúzia de rapazes inteligentes e lidos em francês”. Ressaltava que a agitação modernista era “uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário”.
E desancava os “paulistas”: “A língua de Mário de Andrade nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito”.
Foi ainda na crítica aos “paulistas” que José Lins do Rego começou a destacar o Regionalismo, principalmente identificando-o na poesia de Jorge de Lima, como fez no Jornal de Alagoas de 15 de dezembro de 1927 ao avaliar O mundo do menino impossível, obra do amigo: “Vemos todo o dia um novo gritando: eu vou fazer a poesia nova do meu país. A gente vai atrás do ruído, e não encontra nada”. Em seguida, batia nos “paulistas” afirmando que não se podia esperar muito dos “discursos às estrelas do Sr. Plínio Salgado, nem tampouco dos saltinhos à Piolim do muito talentoso Oswald de Andrade”. Assinalava que a modernização deles era de superfície e se contrapunha a esse movimento com as obras de caráter puramente regionalistas, como as de Jorge de Lima, “porque o seu regionalismo não é um limite à sua emoção e não tem por outra parte o caráter de partido político daquele que rapazes de São Paulo oferecem ao país com as insistências de anúncios de remédio”. Concluiu dizendo que a poesia nordestina não era um tema ou imposição doutrinária, mas a expressão lírica de um nordestino a evocar a sua terra.
A sua boa relação com Jorge de Lima permitiu que indicasse ao amigo alguns caminhos, um deles possibilitou o surgimento do famoso poema “Negra Fulô”, como registrado no livro de Ledo Ivo “Anos de aprendizagem de José Lins do Rego — A história de sua criação artística”. “O tema do ‘Negra Fulô’ foi dado por mim que, tendo lido o ‘Coco do Major’, de Mário de Andrade (a quem conheci de passagem por Maceió), lhe sugeri produzisse um poema baseado no coco alagoano”, lembra José Lins do Rego.
Em 1º de fevereiro de 1928, Jorge de Lima escreveu para o Jornal de Alagoas umas “Notinhas” sobre José Lins do Rego. Disse não ser verdade que o paraibano tenha descoberto o poeta Aloísio Branco:
“O poeta é que conhecendo o escritor o procurou em sua residência e descobriu-se como se uma nova terra atravessando o mar entrasse em casa do navegador carregadinha de suas virgindades. O que o descobridor (descobridor involuntário) fez foi o ouvi-la encantado e mostrar que ainda havia terra desconhecida no mundo. Terra ainda em formação, inculta, com muito ouro escondido dentro dela e com muita aresta literária pelo dorso.
Uma ou outra destas arestas o escritor José Lins do Rego derrubou para ver dentro e viu que havia muita coisa se cristalizando e se erigindo.
É inegável que há influência do escritor sobre o poeta e se diga de passagem que o sr. José Lins do Rego está votado se ficar em Alagoas (que Deus o livre) a renovar ou a orientar muita adolescência sinuosa como a desse menino poeta. Diga-se também de passagem, que atualmente muita gente não leva a sério o sr. José Lins, ninguém quer saber se ele é capaz disso ou daquilo, o que ele pensa, o que ele sabe… O sr. José Lins não existe para alguns. Negam-lhe até talento, até mesmo as suas costeletas.
Mas José Lins existe com costeletas, talento, força e tudo mais quer queiram ou não queiram. Desejaria que esse escritor paraibano não tivesse porém aqueles imitadores que ganhou o sr. Gilberto Freyre os quais a força de copiar o celebrado pensador brasileiro pensam com suas canetas, rezam com seus padres-nossos, degustam com seu paladar culinário. Zé Lins desempenou o nosso poeta caçula e vai por certo disciplinar muita coisa de seu talento que é talento verdadeiro, que já não é mais esperança de asas, porém asas de alumínio forradas de seda. Ele já sobe alto como um avião. Ele subirá muito mais ainda. Conheço todos os seus poemas, toda a sua poesia que absolutamente não tem gosto de muito caldo insosso que as bodegas do modernismo andam a nos dar a beber aí por todos os recantos do país. Eu tenho lido tanta coisa, tanta coisa… Tanto verso velho, tanta poesia nova… No outro dia verso velho, poesia nova apagam-se. Esqueço. Mas por que será que não esqueço o Aloísio?“.
A aproximação entre Jorge de Lima e José Lins do Rego também fica evidente quando da passagem por Maceió, em 9 de dezembro de 1928, do escritor paulista Mário de Andrade, autor de Macunaíma e Pauliceia Desvairada, considerado como um dos fundadores do modernismo no país. Foi recebido pelos dois em um almoço.
Outro indicativo desta amizade está no texto de José Lins do Rego “Sobre umas críticas a um poeta“, publicado no Jornal de Alagoas de 10 de fevereiro de 1929. Nele, o escritor paraibano revela que “Jorge de Lima deu-me a ler uma miscelânia que um amigo arranjou de críticas aos seus poemas [de Jorge de Lima]. E me foi uma leitura cheia de graça a destes relatos de jornal. Uma verdadeira literatura se movimentou em torno do livro do meu amigo. De todos os cantos do país saiu uma voz para dar uma opinião. A maioria encantada com o poeta”.
José Lins do Rego e Valdemar Cavalcanti
Em entrevista para a revista Leitura (RJ), de agosto/setembro de 1964, o jornalista alagoano Valdemar Cavalcanti revelou informações importantes da passagem do amigo e autor de Menino de Engenho por Maceió.
“Conheci Zé Lins em Maceió, o ano não lembro, mas foi antes de 30. Havia ele chegado recentemente da Paraíba, seu Estado, como fiscal de banco, e logo começara a escrever artigos literários no Jornal de Alagoas e a agitar com seu espírito de combate, os meios intelectuais, com ideias de inovação. Escrevia eu nessa ocasião, em O Semeador, jornal católico que ainda hoje existe [1964]. Um dia eu fui me avistar com ele na redação do Jornal de Alagoas, para comunicar-lhe que íamos realizar um ato público de participação do movimento modernista. Foi nessa oportunidade que o vi pela primeira vez, e o achei um homem tremendamente antipático, com suas costeletas, bengala e monóculo. Impressão que logo se desfez, pois ali estava não só um escritor de extraordinária personalidade, mas também um ser humano extremamente sensível. O agressivo escrevendo era um cordeiro falando. Cruzaram-se, desde então, os fios de nossas vidas”.
“Apresentado à turma de jovens beletristas, da qual eu fazia parte — Aluísio Branco, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Paurílio, Raul Lima — de imediato Zé Lins identificou-se com ela. Nessa época, contava Maceió com um dos grupos mais atuantes das letras do Nordeste. Lá estavam, de fogos aceso: Zé Lins, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz”.
Exaltando o poder de criação do autor e “a capacidade de ser amigo”, Valdemar Cavalcanti foi desafiado a descrever como era o amigo na intimidade: “Um moleque, um moleque. Nunca vi ninguém gostar mais de uma pilhéria, de um apelido, de um trote de telefone. Como ele, só Jorge Amado. Zé Lins, uma das coisas de que mais gostava, era mexer com o Aurélio (Aurélio Buarque de Holanda) em plena rua, dando-lhe tropeções e petelecos na orelha… Outro que sofria muito também em sua unha era Luís Jardim”.
Disse ainda que a alegria maior na relação com José Lins do Rego foi a de “sabê-lo realmente, amigo, sem a menor restrição na intimidade. Desde Maceió, a família ia passar férias na Paraíba e Zé Lins me recrutava a lhe fazer companhia dia e noite”.
Intimado a descrever um gesto de José Lins do Rego que comprovasse a amizade entre eles, lembrou: “Creio que foi a de ter me contado os planos de seus primeiros livros. A de ter lido ainda em borrão, mal acabara de escrever, os originais de um longo estudo sobre Gilberto Freyre (originais que se perderam); a de ler dia a dia as páginas que escrevia do Menino de Engenho, que depois datilografei, o mesmo acontecendo com Doidinho e Banguê”.
E continuou: “Zé Lins era um homem entregue à criação, qualquer coisa de um demiurgo. Sonhava com o andamento dos livros. Sonâmbulo que era, acordava muitas vezes em conversas intermináveis, em alguns casos, discussões azedas com figuras que criava, misturando restos de memória com pedaços de fantasia. Madrugador, logo se punha de pé, corria à mesa para dar conta de sua tarefa. E eram duas páginas de bloco escolar de papel pautado, em garranchos, que poucos decifravam. Duas páginas que em livro davam cinco ou seis”.
Após uma pausa, prosseguiu: “Zé Lins veio para o Rio como fiscal do imposto de consumo. Não descansou enquanto não me convenceu a cortar raízes com Maceió e vir embora também. Fez parte, aliás, de uma conspiração neste sentido. Um amigo apontou meu nome para um cargo razoável. E fui convidado. Enquanto isso, ele mobilizava Deus e o mundo para me escreverem em cartas e passar telegramas que eram verdadeiras intimações. Foi assim que tomei ânimo, arrumei malas junto com Jeruza e toquei pra cá.
E concluiu: “Considero-o um dos maiores de todos os tempos, quem escreveu um Fogo Morto está nessa categoria. Foi um grande narrador, um criador de gente viva, um poderoso fixador de paisagens”.
Em outro escrito, “O preconceito da Originalidade” (Semeador de 30 de novembro de 1928), Valdemar Cavalcanti expõe suas críticas à busca obsessiva por originalidade entre “certos rapazes aliteratados que andam fazendo ‘modernismo‘. Mas ‘modernismo’ pela receita, por umas regras determinadas, com tanto daquilo, como bolo. É esse o tal ‘modernismo de superfície‘ de já nos falou esse senhor de aguda sensibilidade de crítico que é o meu amigo José Lins do Rego“.
E prosseguiu: “Inventaram os modernos uma história de originalidade que ficou nas frases. O que é certo é que pegou. Com a seca de pensamento, todo mundo se aproveitou da moda posta em uso pelos senhores Menotti del Picchia e Álvaro Moreyra“.
José Lins do Rego e Aurélio Buarque de Holanda
Em vários trechos das Revelações sobre José Lins do Rego, (Revista da Academia Alagoana de Letras, nº 15, 1989), Aurélio Buarque de Holanda recorda da convivência com José Lins do Rego em Maceió. Descreve a casa de porta e duas janelas à beira-mar, na Avenida da Paz, antigo Aterro de Jaraguá, e os caracteres físicos do amigo, sobressaindo deles as costeletas longas e largas, que lhes dava “um jeito pedante, agravado pela eterna presença de um monóculo”.
Recorda que passou a conhecer Gilberto Freyre e Manuel Bandeira pelos escritos do paraibano no Jornal de Alagoas: “Aos poucos lançaram por terra o nosso culto dos antigos valores. Graças a eles principiamos a aceitar a poesia moderna, a enxergar outras zonas poéticas acima do parnasianismo, cuja superioridade era para todos nós ponto pacífico”. Eram escritos “em linguagem quase oral, transbordantes de pitoresco…”.
“Um domingo (lembro-me bem), José Lins desancou um poeta semiparnasiano da terra, apontando-lhe à inspiração novos caminhos. Aquilo deu-me um abalo dos diabos, porém de certo modo me agradou. No domingo seguinte, novo artigo, agora replicando ao poeta, que se defendera zangado. Aí o escritor manifestava, além do espírito crítico, um talento polêmico dos mais devastadores que já vi”.
Aurélio Buarque também confirma a influência de Lins do Rego sobre os jovens escritores alagoanos, quando recorda que o prefácio dele no livro Poemas, em 1927, os tornou mais capazes “de compreender e aceitar em cheio aqueles versos, de não reagir ante eles como um ano atrás reagíramos em face da publicação de O Mundo do Menino Impossível, do mesmo poeta”.
Foi Aloísio Branco quem apresentou Aurélio Buarque a José Lins. “O ar de superioridade irônica emanado daqueles tremendos apêndices cresceu de ponto, e, conquanto amáveis as suas palavras, senti-me encaramujado e murcho numa timidez quase sem gestos e sem língua. Que interesse poderia ter José Lins do Rego na amizade dum vago aspirante a literato, tão vago que a bem dizer nada escrevera afora uns versos infamíssimos?”.
Pouco tempo depois, Aurélio Buarque acompanhou Valdemar Cavalcanti até a casa de José Lins do Rego. “Não era ainda a casa da Avenida da Paz, mas a da Rua Barão de São Félix [atual Rua Silvério Jorge], muito perto. Estava ele concluindo longo ensaio sobre Gilberto Freyre, do qual nos leu alguns trechos, e que viria a rasgar, por insatisfação do estudado. Arrisquei, se não me engano, umas quantas observações, que o escritor ouviu com atenção simpática. Mas, a despeito da simpatia e da atenção, nem dessa vez a camaradagem com José Lins do Rego deitou raízes”.
Somente passaram a ser amigos em 1932, após o lançamento de Menino de Engenho. Aurélio Buarque, que havia recebido um exemplar, certa noite o encontrou na rua. Cumprimentou-o e lhe falou do livro. “Ele tomou-me do braço, e não me largou durante mais de meia hora. Comentei diversas passagens e aspectos da obra e notava que, embora as observações não fossem de qualidade, pareciam tocar fundo o autor. Talvez pelo sentido lírico, meio sentimental, de que vinham carregadas. Referiam-se a tipos e fatos comuns à minha meninice, a paisagens tão paraibanas quanto alagoanas. José Lins é um romântico, e as minhas palavras estariam revolvendo lembranças que ele transportara para o livro. Mas naquele enternecimento haveria talvez, acima de tudo, um alvoroço de paternidade primeira e recente”.
Certa noite, quando Aurélio e Valdemar dormiram na casa dele — a família estava ausente —, Aurélio constatou que o escritor temia a solidão, mas não por medo, “mas decerto por alguma irregularidade nervosa, que ele por vezes, sem querer, nos despertava, tarde da noite, bradando palavras desconexas, nuns sonhos bem seus. Porém, afora o hiato desses pesadelos, seu sono decorria normal e repousante; tanto assim que ele, madrugador, às seis horas já estava, infantilmente alegre, aos berros pela casa inteira. Tínhamos de acordar:
— Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque de Holanda, conhecidos ‘chantas‘!
‘Chanta’ era abreviatura sua de chantagista — palavra muito frequente na boca de José Lins do Rego em relação a amigos seus”.
Sua inclinação para brincadeiras também foi lembrada. Eram assim distribuídas:
“Verbais: apelidos, anedotas e mentiras a respeito dos companheiros e conhecidos. Físicas: petelecos atrás da orelha, ou um golpe com o joelho por trás do joelho da pessoa com quem ia andando. Verga-se a perna da vítima, que parece ir ao chão, e José Lins solta uma gargalhada:
— Ô rapaz, você está fraco. Precisa comer feijão!
Das brincadeiras verbais há uma curiosa. Em frente dum café [Café Ponto Central, de Manuel Cupertino da Silva, inaugurado no dia 25 de abril de 1931] onde habitualmente se reunia o nosso grupo, e hoje imortalizado em páginas de Angústia, achava-se um dia José Lins em uma roda de que fazia parte Graciliano Ramos, chegado de Palmeira dos Índios desde 1930. Anoitecia; e um morcego — vindo ninguém sabe donde, nem como — mansamente pousou no ombro do romancista alagoano. Não vale investigar as razões intimas e sutis da preferência do bicho. Os morcegos, ao que parece, são dados a essas visitas literárias; como se sabe, um deles já entrou no quarto de Augusto dos Anjos, à meia-noite (“Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. / Meu Deus! E este morcego! / E agora vede: / Na bruta ardência orgânica da sede, / Morde-me a goela ígneo e escaldante molho”). O certo é que o morcego pousou (àquela hora, que não era a da meia-noite, como a escolhida pelo outro para visitar o grande poeta paraibano, ou pelo corvo para bater à porta de Edgar Poe), pousou no ombro de Graciliano Ramos, com a mesma naturalidade com que a ave preta se instalou no busto de Palas. Surpreendeu-nos aquele pousar; e da surpresa passamos em breve ao riso. Então José Lins tomou a palavra:
— Sim senhor, Seu Graciliano! Cultivando o seu morcego, hem? E, voltando-se para os outros:
— Isso é um morcego domesticado que o velho usa para se poder dizer que ele é um infeliz, que “um morcego pousou na sua sorte“…
Sobre a casa onde morou José Lins do Rego na Avenida da Paz, fronteira ao mar, Aurélio Buarque disse que foi nela que ele escreveu os seus três primeiros romances
Recordou dela com “um comprido corredor, a estante preta de José Lins, que veio a ser minha, os seus numerosos livros, tantos deles de primeira ordem, sua mesa de trabalho, os seus quadros, e, em meio a tudo isso, a figura do escritor, muito menos gordo então, bem mais jovem, já sem costeletas, e o monóculo pedante substituído pela honesta simplicidade dos óculos“.
Anos depois, ao passar em frente ao imóvel, disse que experimentou “uma quase sensação da presença física de José Lins do Rego. Pois além das impressões visuais — a mesa de trabalho, o tinteiro de tinta Sardinha, a caneta, o caderno onde ele escreveu o Banguê, naquela sua miudinha letra garranchenta, espalhando-se por linhas e entrelinhas — não tinha eu a impressão de ouvir os apavorados gritos de seus pesadelos?
Certa vez, até me aconteceu ver José Lins do Rego saindo de casa comigo, à tardinha, para sentar-se num dos bancos da Avenida da Paz, e ali, em frente ao mar, com os olhos invadidos de uma emoção que o vidro dos óculos mal dissimulava, declamar versos de Austro Costa, poeta pernambucano que fora uma das suas admirações dos tempos de Academia:
Tarde para se ler a imitação e os versos
dos poetas infelizes!
Ou aqueles extraordinários versos do poema “A Vida“, de Antônio Nobre:
Ó grandes olhos outonais! místicas luzes!
Mais tristes do que o Amor, solenes como as cruzes!
Ó olhos pretos! Olhos pretos! Olhos cor
Da capa d’Hamlet, das gangrenas do Senhor!”
Mestre Aurélio, em depoimento complementar ao publicado pela Academia Alagoana de Letras, testemunhou que “no carnaval, em Maceió, José Lins do Rego endoidava, se esbaldava. Pelas alturas de 1932-33, já trintão, fazia o passo com animação extraordinária, cinco, seis horas a fio, e depois ia mudar a roupa em casa, para dançar na Fênix. O passo! Leiam ou releiam, em O Moleque Ricardo, as referências a essa dança espantosa”.
O alagoano, que veio a ser conhecido como sinônimo de Dicionário, encontrou em um trecho de O Moleque Ricardo uma “combinação de quanto há de mais puro, de mais simples, de mais povo, desse escritor (que, no dizer de Carlos Lacerda, “tinha o povo no sangue, não o trazia na cabeça. Levava o povo nas veias“, que “era povo. Sentia povo“), com o que existe de mais fino e mais forte, mais vernáculo, na boa tradição da língua”.
Maria Elizabeth Lins do Rego e seu pai em Maceió
Betinha foi a primeira filha do casal. Nasceu em junho de 1925, ainda na Paraíba, e casou-se com Henrique de Carvalho Simas.
Em depoimento para o Correio da Manhã de 23 de janeiro de 1963, quando auxiliava na montagem do roteiro para o filme “Menino de Engenho”, descreveu sua infância em Maceió.
“A título de contribuição pessoal a essa reportagem, gostaria de evocar meus tempos de menina em Maceió, quando José Lins do Rêgo — que na época residia naquela cidade — escrevia exatamente o livro que inspirou a presente reportagem:
De noite, noite provinciana da velha Maceió, as famílias amigas, acabada a ceia, reuniam-se para bate-papo nas calçadas ou nos bancos da Avenida da Paz. Às vezes, grupos se formavam nas salas das casas, em torno da mesa de poker.
Zé Lins, participava das conversas, dava gostosas gargalhadas e contava pilhérias. Quando se formavam os grupos para o jogo, Naná, mulher do romancista, tomava parte do mesmo. E ele sentava-se numa cadeira de balanço, com as pernas em outra cadeira, e começava a escrever a lápis num caderno escolar.
De vez em quando parava o jogo, lia um trecho do que escrevia e dizia:
— Que acham? Tá bom? Não está bom?
Era um Menino de Engenho que nascia”.
José Lins do Rego e a lembranças de Maceió
Quando lançou o livro Gordos e Magros em 1942, José Lins do Rego publicou também o seu prefácio no Suplemento Literário de A manhã (RJ) de 4 de outubro daquele ano. Nele detalha o período que viveu em Maceió, onde chegou em 1926.
“Gordos e Magros“, que deu nome ao livro, foi um ensaio escrito publicado em Maceió em 1926. Sobre ele, José Lins do Rego disse que era “uma tentativa de interpretação do estilo em literatura. Nada mais que as reflexões de um provinciano sobre um tema que será sempre eterno. Recolhi para este livro ensaios de 16 anos atrás e ensaios dos dias de hoje. É, por conseguinte, uma procura ao tempo perdido, caça no mais inquieto passado que é o das ideias. Pus-me a recolher o material com medo de deparar-me com espectros, fantasmas, que me metessem medo. Há 16 anos éramos tão diferentes e era tão diferente do mundo”.
E concluiu:
“Tínhamos oito anos do “après guerre”, um mundo anêmico pela sangria brutal de quatro anos de hecatombes ressurgia para a vida com os mesmos instintos de lobos assanhados. Em plena juventude todos nós pensamos que o que valia de fato era a nossa literatura, as nossas lutas internas, os nossos debates entre modernistas e passadistas. Por esse tempo Benda denunciava a traição dos clérigos e Paul Varely fixava em Leonardo da Vinci toda a ciência do belo. O ensaio de Varely vinha de 1923, mas aparecia como uma introdução a uma ciência dos valores da expressão, como um verdadeiro método onde “le Moi tout puissant et abstrait pêut tenir la passion, l’action, l’émotion e l’invention captives”. Havia, por outro lado, os “surrealistes”, que queriam limitar os sonhos, e trazer para o plano da expressão, da forma, tudo o que o homem escondia como vergonhas, o lado escuro do homem, os planos invisíveis. Tudo o que podia ser abstrato para a estética do “surrealisme” era mais concreto.
Tudo teria a sua forma, tudo podia ser visto, tocado, cheirado. Fora uma estética de loucos que muito produziu para a arte, para a literatura. Escrevia por este tempo em Maceió, no Jornal de Alagoas, escrevia com a paixão de quem acreditava no que escrevia, com uma impávida sinceridade de quem acreditava no que escrevia, […] e o que pensava com a ênfase dos meus 25 anos. Uma meia dúzia de jovens me lia, comentava os ensaios do crítico improvisado. Havia um entre eles, o mais desembaraçado, mais vivo, mais língua solta que um dia me entrou e portas a dentro para me chamar de mestre, para me recitar poemas. Era Aloizio Branco, menino ainda, na flor dos seus 17 anos, cheio de uma força verbal estranha, de uma sensibilidade quase que doentia para tudo que fosse literatura.
Morreria 10 anos depois, com a mesma flama, o mesmo menino que conheci. Com ele apareceram-me Arnon de Mello, Aurélio Buarque de Holanda, Valdemar Cavalcanti, Alberto Passos Guimarães, Raul Senira.
Foram os meus admiradores de Alagoas, meninos, todos eles, que me levariam a sério, que tomavam partido ao lado do grande Jorge de Lima, quando, por esse tempo, publicava o seu “O Mundo do Menino Impossível” rompendo com seu passado de sonetos alexandrinos. Vivi com esses rapazes nove anos em Alagoas. Muito lhes devo pelo que me animaram, pelo interesse, pelo calor com que me ajudaram a escrever os meus primeiros romances. Hoje, são grandes de nossas letras, críticos, poetas, cientistas. Registro a ausência de Aloízio Branco como a de um filho amado, perdido na morte. Pode haver injustiça nas afirmações do rapaz de 1926, pode haver intemperanças de palavras, mas, no íntimo, o que ele pretendia era fazer mais que estrépito, era fixar aquilo que lhe parecia verdadeiro. Os meninos de Alagoas, que lhes liam os artigos, constituíram a mais rica geração literária dos últimos tempos de Alagoas. Jorge Lima, com sua coragem de colocar sempre a literatura acima de tudo dera-lhes, por outro lado, um exemplo, chamando-os para a sua intimidade, fazendo-os ouvintes dos grandes poemas que compunham. Relembro a fase alagoana de minha vida como tempos fecundos, época de floração de minha carreira. Saía do aprendizado para fazer qualquer coisa com as minhas próprias mãos. Começava a sentir aquele desejo de que fala Ramon Fernandez, “um désir d1introduire le jugement dans son univers intérieur”. Daí a necessidade de escrever sobre os outros, de pretender criticar, de discorrer sobre a criação. Nunca imaginava que fosse capaz de fazer um romance… Debati o modernismo. Fui muitas vezes injusto com os autores do movimento. Acertei em muitos lances. Deixo tudo como escrevia há 16 anos. Os meus erros serão mais berrantes, mas as saudades serão mais verdadeiras. Sinto assim que dando publicidade aos ensaios de 1926, juntamente com outros mais recentes e com os de hoje, eu mesmo me julgo, submetendo aos olhos do público para uma revisão de valores. Uma coisa continua firme no homem de 40 anos: continuo a acreditar na literatura, como em coisa substancial à vida e essencial para a grandeza do homem. Aquele “dar forma poética ao real” de Goethe é o que salva o homem de ser somente um monstro na escuridão. O poeta Augusto dos Anjos fala, porém, do homem completo: “monstro de escuridão e rutilância”. Essa rutilância no escuro da noite vem da poesia, vem de Deus”.
Trabalho brilhante, fez minha tarde ser muito proveitosa. Os pormenores e detalhes históricos fazem-nos vivermos um pouco a época e admirar a garra das pessoas em enfrentar os percalços, para realizar seus sonhos.
Ticianeli, boa noite! Que matéria linda, linda você nos oferece! Obrigada por tanta beleza!
Chegando criança em Maceió em 1947, ainda encontrei essa Maceió das fotos da Avenida da Paz, no início dos anos 50, quando papai visitava Dr. Oceano Carleal, médico dele quando trabalhou alguns anos na zona do São Francisco. Já adolescente, gostava muito de conversar com dona Hilda Auto Monteiro Guimarães, mãe do rapaz mais bonito de Maceió, morto num acidente na Avenida da Paz, e de minha colega no Moreira e Silva – Beatriz Auto Monteiro Guimarães. Dona Hilda me falava de seu irmão José Auto, que foi marido de Raquel de Queiroz, me explicando a vida intelectual das Alagoas daqueles tempos.
Parabéns, prezado Ticianeli.
Muito bem escrito esse trabalho. Agradeço pela bela reportagem sobre meu pai.
Matéria belíssima ,de uma escrita extraordinária parabéns