Os poetas da família Auto da Cruz Oliveira
O mais conhecido deles foi Júlio Auto da Cruz Oliveira, tido como “o príncipe dos poetas alagoanos”, assim escolhido por um concurso público do jornal Correio da Tarde em 1921. Nasceu no Pilar, Alagoas, em 4 de dezembro de 1880. Era filho do abastado comerciante José Auto da Cruz Oliveira, destacado sócio da firma Oliveira, Lima & Cia, em Jaraguá, e de Maria Augusta de Oliveira Mello.
O Lima dessa firma vinha do outro sócio, coronel Pedro de Araújo Lima, casado em Maceió com Virgínia Alves de Carvalho Lima. Faleceu na capital alagoana no dia 27 de janeiro de 1910, aos 44 anos de idade. Seus negócios haviam se expandido para o Rio de Janeiro e São Paulo.
O coronel José Auto da Cruz Oliveira nasceu em 12 de setembro de 1852 na Vila das Alagoas, atual Marechal Deodoro, e faleceu em 15 de abril de 1921, em Maceió. Era filho de José Manoel da Cruz e de Maria Rosa de Lima. Foi um dos diretores da Companhia União Mercantil de Fiação e Tecidos, em Fernão Velho.
Maria Augusta de Oliveira Mello nasceu em 16 de junho de 1856, também na Vila das Alagoas. Era filha do deputado Augusto José de Mello, empresário no Pilar, e de Anna Rosa de Jesus Lima Mello. Faleceu em 11 de janeiro de 1914, em Maceió. Foram pais de 14 filhos, entre eles o poeta Júlio Auto, que inicialmente era conhecido pelo sobrenome Cruz de Oliveira.
Júlio Auto estudou os preparatórios em Maceió e iniciou o curso de Direito na Faculdade de Recife em 1900. Concluiu em 17 de dezembro de 1904. Dias antes, em 1º de novembro de 1904, tinha sido eleito em Alagoas deputado estadual para a 8ª Legislatura (1905/06), mas renunciou ao mandato no início de junho para assumir outro cargo. No dia 5 de junho de 1905, com 24 anos de idade, tomou posse como juiz substituto de Secção, da Justiça Federal (havia sido nomeado por um decreto de 22 de maio daquele ano), permanecendo nesse cargo até 1º de junho de 1911. Foi substituído pelo bacharel João Paulo de Almeida Couto, que em junho do ano seguinte deu lugar para Oscar de Carvalho e Silva.
Foi nesse período que Júlio Auto se consolidou como um grande poeta, ampliando o reconhecimento que já recebera em Recife, quando estudante de Direito. Por estes méritos, foi recebido como sócio do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano na noite de 26 de setembro de 1907, em sua sede na Rua Boa Vista.
Em 25 de janeiro de 1908, Júlio Auto casou-se em Recife com a alagoana Luiza Tigre da Cruz Oliveira (∗31 de janeiro de 1887, em Maceió †15 de junho de 1975, em Maceió). Era filha do comerciante gaúcho Delfino da Silva Tigre (nasceu em 28 de março de 1858 e faleceu aos 74 anos em 11 de outubro de 1932) e de Maria Leontina Bastos Tigre (faleceu aos 63 anos de idade em Recife no dia 31 de dezembro de 1925). Seu irmão, Manuel Bastos Tigre, foi jornalista e um consagrado poeta.
Delfino da Silva Tigre e o coronel Pedro de Araújo Lima dividiam a firma Machado Pereira & Cia, que tinha como filial em Maceió a Oliveira, Lima & Cia.
Júlio Auto e Luiza Tigre tiveram os seguintes filhos:
– José Auto da Cruz Oliveira (∗18 de junho de 1909, em Recife †27 de outubro de 1986 no Rio de Janeiro).
– Angelita Auto da Cruz Oliveira (∗3 de marco de 1911, em Recife †17 de dezembro de 1966).
– Luiza Tigre da Cruz Oliveira (∗1º de março de 1912, em Recife).
– Osmundo Tigre da Cruz Oliveira (∗1º de março de 1912, em Recife).
– Júlio Auto da Cruz Oliveira Júnior (∗21 de junho de 1913, em Recife).
– Yvette Auto da Cruz Oliveira (∗30 de junho de 1915, em Maceió).
– Fernando Auto da Cruz Oliveira (∗29 de outubro de 1917, em Recife).
Em junho de 1911, após ser afastado da magistratura Federal, Júlio Auto pensou em ir morar no Rio de Janeiro, mas ouviu os conselhos do pai e ficou em Maceió, assumindo com os irmãos e cunhados a firma Oliveira, Lima & Cia.
Foi um dos fundadores da Academia Alagoana de Letras em 1920 e o primeiro ocupante da cadeira nº 13, cujo patrono é Alves de Amorim. Antes, em fevereiro de 1909, tomou parte do grupo que promoveu as primeiras iniciativas para a constituição desta instituição.
Voltou ao serviço público em 23 de abril de 1928. Com o afastamento do tabelião Manoel Eustáquio Filho, foi nomeado para o cargo de 1º Tabelião de Notas de Maceió, com cartório na Rua do Comércio, nº 94.
Em 15 de outubro de 1937, a Corte de Apelação devolveu o cargo a Manoel Eustáquio, que havia movido uma ação para ser reintegrado. Júlio Auto recorreu alegando o direito de antiguidade, mas teve o seu recurso negado em 4 de novembro. Decidiu então não entregar o arquivo do cartório, gerando repercussão na imprensa nacional.
A solução encontrada pelo interventor Osman Loureiro foi a de decretar, dias depois, em 25 de novembro, a criação do 7º Tabelionato da Capital, com Júlio Auto sendo imediatamente conduzido ao cargo de tabelião. Em 1958 ainda estava por lá, na Rua do Comércio, nº 84.
O príncipe dos poetas alagoanos faleceu no dia 30 de junho de 1962, no Rio de Janeiro.
O poeta
Ainda em 1937, no Diário da Manhã de 26 de fevereiro, em Recife, uma coluna assinada por A. M. (Observatório) analisava os jovens poetas que “desgarraram e emudeceram para sempre” e citava dois casos: o de José de Barros Lima e o de Júlio Auto da Cruz Oliveira:
“O caso de Cruz Oliveira é muito mais grave. É gravíssimo. É irritante, inexplicável.
Muito moço, ainda estudante, escreveu lindos versos, tão lindos que qualquer grande poeta ainda hoje assinaria.
Casou-se, foi para Maceió e fechou definitivamente o bico. Não houve conselhos nem pedidos. À noiva, já ele, asséptico, aconselhava.
Luiza, quer um conselho?
Jura tomá-lo? Pois bem,
Não perca nunca o seu tempo
Lendo versos de ninguém.
Mas é um poeta o Júlio Auto (como é o seu nome e como deveria ser) que escreveu joias deste matiz:
A saudade? Eu não sei bem…
Nasceu-me deste desejo
que eu tenho de ver alguém
que há muito tempo não vejo.
E a saudade é quase nada:
apenas uma dorzinha
delicada,
que nos dói tão sutilmente,
mas tão de sutil que a gente
mas adivinha
do que sente.
E ela assim tão devagar
a nossa vida nos rói,
que a gente chega a pensar
que não dói.
E é daí para cima. Júlio Auto é tabelião público em Maceió e ri nas bochechas da gente quando lhe falamos em poesia. É um criminoso!”.
Em 1901, aos 20 anos de idade e cursando o 2º de Direito em Recife, assim demonstrou, em um jornal pernambucano, o seu encanto pela atriz portuguesa Lucilia Simões, que em setembro daquele ano esteve no elenco da peça Francillon no Teatro Santa Isabel:
Artista, eis-me a teus pés. — Trovador peregrino
Ahasverus* do amor, sempre em busca de amores,
Paro agora um momento e minha lira afino
E de teu gênio canto os imortais fulgores.
E o meu estro se inspira, e como os sonhadores
Bardos medievais, em febre, e em desatino
Sonho-te aos pés se erguer um caminho de flores
Que se estende ao clarão de teu gênio divino.
Vais, risonha e feliz, a fronte resplendente
Ao peso dos laureis, vais à grande conquista
Dessa glória falaz que tantas vezes mente.
E eis-te quase a chegar; já poucos passos dista…
Deixa-me, enfim, beijar religiosamente
Essa tua fidalga e fina mão de artista.
*Ahasverus, segundo a lenda, é o nome do judeu que, em Jerusalém, teria maltratado Jesus Cristo. Como castigo, fora condenado a caminhar pelo mundo até os fins dos tempos (N. do E.).
No Pequeno Jornal de Pernambuco, em 1909, Júlio Auto publicou o seguinte vilancete:
Senhora, se vos apraz
A minha estrela infeliz
Dizei-me que mal vos fiz?!
Voltas
Não vos basta a vida ruim
Que os vossos olhos me dão?
Não vos sigo como um cão?
Não vos adoro inda assim?
Que inda mais quereis de mim?!
Que eu sofra? — Sofrerei mais
Senhora se vos apraz…
Mas não mostreis o quão dura
Sois por mim que vos adoro.
Que se vos amo, deploro
Ter por vós tanta ternura.
Se vos apraz ter ventura
A minha estrela infeliz,
Dizei-me que mal vos fiz?!
Em 1911, no Gutenberg:
Pois se a vida te causa esse cansaço,
essa mágoa insofrida,
faze-te frade, faze-te palhaço,
Ou senão faze o que eu faço:
— não te lembres da vida.
E mais esse:
Acaso pensarás que os meus pesares
são porque tu não gosta dos morenos!
— De mim pode pensares o que pensares,
que eu nunca serei mais, nem menos.
Em 1922, no livro Terra das Alagoas, em Apostasia, explicava para a companheira Luiza Tigre a sua relação com a poesia:
Eu nunca lhe mandei versos
sem que você m’os pedisse,
porque tenho a poesia
na conta de uma tolice.
Que um rapaz na minha idade
com vinte e tantos por cima,
deve amar coisas mais úteis
do que pode ser a rima.
Não quero dizer que o verso,
quando ele seja bem feito,
não me toque o sentimento,
nem me inspire um bom conceito.
Mas hoje em dia que os anos
já me deram mais bom senso,
faço versos por fazê-los
e já não fico suspenso
como outrora, o olhar sombrio
numa contrição devota,
— o que me dava, estou certo,
aparência de idiota.
Eu fui poeta e o ter sido
Hoje me dói como um crime
Porque o poeta é sempre um doido,
embora um doido sublime.
Sonha-se rei, vê-se rico,
mais rico do que um nababo,
e entretanto, as mais das vezes,
não passa de um pobre diabo.
Tem coisas deliciosas,
Fala de amor, de ilusão,
mas ou sofre da cabeça,
ou sofre do coração.
Por conseguinte é imperfeito,
sem lhe falar na mania
que ele tem, de aparecer
de cabeleira e miopia.
Luiza, quer um conselho?
Jura tomá-lo? Pois bem:
não perca nunca o seu tempo
lendo versos de ninguém.
Outro grande sucesso do poeta foi “Relíquia”, também publicada no Terra das Alagoas:
As cartas? Olha, ouve-me bem: rompi-as
e queimei-as depois. Se um dia fores
de novo ao nosso ninho, as cinzas frias
de tuas cartas nem verás, Dolores.
Somente as flores que me deste, as flores
que entre um beijo e um olhar me oferecias
são tudo o que me resta dos amores
cujo mel eu bebi por tantos dias.
O teu retrato mesmo, o teu retrato
perdi-o, ainda talvez em mãos alheias…
Somente as flores guardo-as com recato.
E assim mesmo tão pálidas, tão feias,
que hoje, lembrando o teu olhar ingrato,
nem sei como de raiva não queimei-as.
O poeta José Auto da Cruz Oliveira Neto
José Auto nasceu em Recife, Pernambuco, em 18 de junho de 1909, no sobrado grande da Madalena, atual Museu da Abolição. Esse imóvel foi sede do Engenho Madalena, que deu nome ao bairro.
Seu pai, Júlio Auto da Cruz Oliveira, e sua mãe, Luiza Tigre da Cruz Oliveira, já moravam em Alagoas quando ele veio ao mundo na capital pernambucana. Por isso foi criado desde os primeiros anos em Maceió, onde estudou o primário no Colégio Diocesano. Nessa mesma instituição, aos 13 anos de idade, chegou ao 2º ano do secundário e parou por aí. Passou a estudar em casa com a ajuda dos pais. Cursou também Inglês e Datilografia, mas não teve bom desempenho
Levado pelo pai, foi trabalhar no comércio costurando sacos de fazenda, mas nas horas vagas lia tudo que conseguia ter nas mãos, se interessando principalmente por literatura.
Cansado dos fardos de fazenda, conseguiu uma concessão para vender selos do Estado, ganhando comissão de 5%. Mais tarde, lembrou disso como uma “marmelada do tempo do Costa Rêgo, que me rendia 300 mil réis por mês”.
Nessa época também se iniciou no jornalismo, com versos humorísticos para “O Bacurau”, em parceria com Valdemar Cavalcanti.
Com preparo suficiente, em 1928 se submeteu a concurso no Banco do Brasil. Aprovado, foi nomeado para o Amazonas.
Casamento com Rachel de Queiroz
Em 1931, trabalhava no Banco do Brasil em Recife, quando conheceu a escritora Rachel de Queiroz, uma militante comunista que foi ali detida e fichada pela polícia. Continuaram o namoro por carta e após dois únicos encontros, casaram-se em Fortaleza, no Ceará, em 14 de dezembro de 1932.
Zé Auto, como era mais conhecido, foi em seguida transferido para Itabuna, na Bahia, onde chegou com Rachel no dia 2 de janeiro de 1933. Foi lá que sua companheira engravidou da filha Clotilde de Queiroz Oliveira, que teve vida curta. Nasceu em Fortaleza, Ceará, em 2 de setembro de 1933 — foi ali batizada somente em 21 de outubro de 1934 — e faleceu em Maceió, vítima de meningite aguda, no dia 14 de fevereiro de 1935.
Em outubro de 1933, nova transferência do bancário José Auto leva a família para o Rio de Janeiro. Na então capital federal, alugaram a casa onde morou o poeta Manuel Bandeira, na rua do Curvelo 51, atual rua Dias de Barros 53, em Santa Teresa. Estiveram no Rio por pouco tempo. Três meses depois já estavam em São Paulo, para onde Zé Auto fora designado pelo Banco do Brasil em agosto de 1934.
Foi em São Paulo que Rachel se envolveu com a corrente comunista seguidora de Leon Trotsky. Estavam na capital paulista há poucos dias quando a polícia prendeu todo o grupo trotskista. Rachel escapou da cadeia por estar amamentando a filha.
Após o célebre conflito armado contra um ato dos integralistas, ocorrido no domingo, 7 de outubro de 1934, na Praça da Sé, ocorreram várias prisões. Um manifestante integralista morreu no confronto.
Um dos presos denunciou a existência de um grupo de comunistas-trotskistas que atuava na Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo. José Auto também foi preso (O Jornal, RJ, de 10 de outubro de 1934). Não era comunista, mas como simpatizante, participou de algumas reuniões como observador. Os panfletos encontrados em sua residência tinham chegado até ele pelas mãos de Lívio Xavier, irmão de Mário Xavier, seu colega de banco.
Após protestos do Sindicato dos Bancários, que também teve o presidente Álvaro Cechino detido, foram todos liberados no dia 11 de outubro.
Rachel de Queiroz, na crônica “Um pão por dia”, revela que após essa prisão, Zé Auto “ficou muito amargo, irritado e rebelde; não querendo continuar em São Paulo, pediu transferência para o Ceará”. Não queria nem ouvir falar sobre os ideais políticos e muito menos participar de reuniões sobre o assunto.
Depois de rápida passagem por Fortaleza, o casal chegou a Maceió em fevereiro de 1935, onde passaram a conviver com Valdemar Cavalcanti, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda, Raul Lima, José Lins do Rego, etc, a famosa Roda de Maceió.
Ainda em Maceió, em dezembro de 1935, três meses após a morte da filha, Rachel de Queiroz perdeu também o irmão Flávio, com 18 anos de idade. Uma infecção numa espinha no rosto o levou à septicemia. Esses dois episódios abalaram profundamente a escritora, afetando a relação com José Auto.
Nessa passagem por Maceió, José Auto colaborou na revista Novidade, uma publicação sob a liderança de Valdemar Cavalcanti. Por esse tempo, Rachel de Queiroz enviou alguns poemas de José Auto para serem lidos por Mário de Andrade. As avaliações não foram boas e a partir daí o poeta somente escrevia seus trabalhos esporadicamente.
O seu casamento com Rachel de Queiroz teve fim em 1939, quando estavam morando no Rio de Janeiro. O desquite aconteceu no ano seguinte.
Cedido pelo Banco do Brasil, passou a assessorar a Comissão de Defesa da Economia Nacional — criada em 29 de setembro de 1939 e ligada diretamente ao presidente da República para enfrentar o período de guerra. Colaborava, então, na imprensa escrevendo sobre economia e finanças para o Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa e Diário de Notícias
Nesse período conheceu o cônsul José Pinheiro Jobim, que servia na Secretaria do Comércio Exterior. Jobim foi transferido para Nova Iorque em 1941 no posto de vice-cônsul. Quando foi promovido a cônsul de segunda classe, em 1942, recrutou José Auto para ser o consultor técnico no Escritório Comercial do Brasil naquela cidade. O poeta bancário embarcou para os EUA em 6 de abril de 1942 e por lá permaneceu até 1948.
Quando voltou ao Brasil estava casado novamente e com um filho (José, nascido em 1947 em Nova Iorque) e uma filha (possivelmente Ivete Auto Cruz de Oliveira, também novaiorquina). Não foi possível encontrar o nome da sua segunda companheira. No atestado de óbito de Zé Auto consta apenas que era desquitado de Rachel de Queiroz e que tinha dois filhos.
No Rio de Janeiro passou a escrever no Diário Carioca uma página semanal tratando de assuntos internacionais. Anos depois continuou com uma coluna no Jornal do Brasil (meia página) sobre o mesmo tema. É considerado como um dos criadores do moderno colunismo internacional no Brasil, iniciado por Barreto Leite Filho e continuado por ele, Paulo de Castro e Otto Maria Carpeaux.
Sobre sua vinculação com o Banco do Brasil, foi possível somente encontrar que a partir de 1º de janeiro de 1951 passou a ser escriturário da letra G, que se aposentou em 1959. Nos anos da década de 1960 era comissionado na Carteira de Comércio Exterior dessa mesma instituição.
Faleceu em 27 de outubro de 1986, no Rio de Janeiro. Morava na Av. Copacabana, 71, Apto. 1202, Edf. Alone. Nos anos 50 tinha um sítio em Cabo Frio.
O poeta Zé Auto
O poeta e crítico literário Manuel Bandeira cunhou a expressão Poeta Bissexto, se referindo “a todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro”. Quando organizou a sua Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, nela inseriu o Poema Heroico, datado de dezembro de 1944, período em que José Auto estava em Nova Iorque e o mundo em guerra:
Poema Heroico
(Para Aníbal Machado e os poetas do futuro)
Antes trabalhar aqui, como escravo do poema
Desdenhado civil que ouve o anúncio do melhor sabonete,
Do que, como Aquiles, ser herói de guerra
E ter de ir para o ortopedista…
Amo o meu calcanhar!
(Ponhamos isto no plural…)
O meu passo sem pressa e se destino
Não tem cadência marcial.
O pé no chinelo!
De não querer marchar, adormece…
Que estranhas metamorfoses nas sensações de formigueiro!
É um tribulo aos amputados.
Estou no leito de Procusto, murmurei.
Sem que eu saiba, calçaram-me invisíveis reiunas.
Meteram-me no uniforme.
O capacete de aço me aperta a cabeça.
Puseram-me armas embaixo do travesseiro
E irei dormir sobre um colchão de minas.
Estou mobilizado pelos jornais e pelo rádio.
Do contrário, por que as mutilações?
(Caminho sonâmbulo, na noite,
Em passos militares)
A mão se erguia em protesto,
Ou não acenava o adeus dos lenços
E se estendia, afetuosa e descuidada,
Para apertar a mão do amigo
— A mão que afaga em carícias bruxuleantes,
Tem agora impulsos assassinos:
Quer matar.
Já se levanta no gesto criminoso,
Mas o amor paralisa-a no ar
E ela desce num movimento lento
Para mergulhar na terra como raiz.
Na calçada da noite
As partes do corpo se desmembram.
Um olho escorrega-se entre os dedos
E já vou apanhar aninhado no umbigo.
Bingo!
As orelhas decepadas, sobre a mesa,
Ocupam, crescidas desmesuradamente,
O lugar dos cinzeiros.
Coloco sobre elas um charuto inútil.
Sinto que as minhas pernas são desmontáveis.
E os braços — é tão conveniente —
Separam-se nas articulações.
Enquanto as mãos se desfolham como baralho,
Tento mexer-me e todo me desfaço
Numa chuva de parafusos…
II
À luz do luar os campos são mais vastos.
O vento frio morde os metais retorcidos
Na fúria das batalhas
A guerra transformou a estrutura dos pastos.
Os cadáveres gelados dos cavalos
Sugerem na rigidez novos terrores,
O sorriso de gafanhotos sem bridão,
Sem asas, sem antenas,
Com dentes invadidos pela neve.
As vacas jazem placidamente.
—Como tinham vivido —
Como se ainda quisessem ser ordenhadas
Na destruição.
O luar ilumina o pasto.
Há terror na face dos cavalos.
A placidez das vacas mortas.
Cria-lhes quase halos de santidade.
Amanhã o azul será mais vasto.
Os tanques mortos estão mergulhados na lama!
O ferro volta ao seu habitat.
Os soldados caídos na batalha
Repousam como se estivessem na cama:
Sem requiescat in pace e nem mortalha.
São como os bonecos de uma criança
Grotescos no seu abandono
E no imprevisto da recusa
Que os atirou ao léu, sem dono.
Quanto sangue derramado!
Carrego comigo, dia e noite
Todos os infortúnios do mundo,
O horror e o sofrimento da raça humana.
Quanto sangue derramado!
Carne e sangue para que o veneno do ódio
Abra as estradas da morte.
Na desolação e em silêncio
Aprendermos depois da guerra a andar de muletas.
(Nova York, dezembro de 1944).
Com os sonetos Navio Negreiro e Soneto à Nadadora, participou da antologia Notas Sobre a Poesia Moderna em Alagoas, de Carlos Moliterno, lançada em 1965.
Soneto à Nadadora
Querida, eu te amo há tanto tempo quanto
levei a não esquecer de que te amava,
Banhando-me em olvidado, obscuro pranto
que o enxuto coração não me lavava.
Lembro-me ainda com profundo espanto,
do angustiado adeus que eu te acenava,
quando da encruzilhada ao tenebroso canto,
vi que tudo de ti me separava.
Depois da humilhação, o esquecimento
do que foi mais me tardou que a aurora,
do dia em que me senti altivo e claro.
Pois chorar por ninguém era o lamento,
que me subia d’alma até agora,
até voltar ao sentimento raro.
000
Navio Negreiro
Veleiro, no teu bojo todo cheio de soluços
trouxeste esse punhado suarento de negros,
de negros soluçantes de saudade e de chicotadas
No teu bojo todo cheio de soluços
trouxeste essa carne quente de quixaba,
cortada a chicote e com tatuagens de guerra.
Na asa da tua vela, negreiro,
veio esse medo tolo de tudo,
veio aquela bravura de tribo africana,
que hoje — coitada! — mudou tanto.
Mas as almas desses negros
eram tão brancas, eram tão puras!
essas almas ingênuas foram tatuadas.
Tatuadas pelo sofrimento
que cavaram sulcos fundos
no fundo muito branco, muito singelo
dessas almas alvíssimas de escravos.
Veleiro que trouxeste ao meu país
candomblés, xangôs, macumbas e maracatus,
eu te esconjuro pelo mal que me fizeste:
nos olhos, na fala, na alma da preta Brígida
que me acalentava no sótão lá de casa
quando eu era pequeno.
Do início da sua carreira como bancário, deixou publicado na revista Novidade, nº10, em 1931, Poema da Chuva:
Poema da Chuva
Tanto rapaz molhado tanta moça molhada!
Nesse ritmo miúdo da chuva
alonga-se o ritmo da vida
Não se brinca mais de barquinhos de papel
Ninguém pergunta se este tranvia vai até o porto
onde os navios filosóficos e pensativos
dormem o silêncio de lâmpadas elétricas
A rua deserta de rumores
se inunda em água mansa do céu
Sinto os meus pés molhados
meus olhos estão húmidos
Não se brinca mais de barquinhos de papel
A prefeitura dotou a cidade
de uma ótima rede de esgotos.
Muito grato, prezado Ticianeli.
Precioso registro da arte poética! Parabéns, Ticianeli, pelo zelo e competência com que produziste esse artigo em valor da alagoanidade!