Origens tribais do Negro nas Alagoas

Almoço na roça em Litografia a partir de fotografia. Victor Frond

Abelardo Duarte

*Publicado no Diário de Pernambuco de 22 de junho de 1952.

Ao estudo das origens tribais do negro entrando no Brasil, feito strictu sensu pelo chamado método histórico, preferiu-se por diversos motivos, o estudo comparativo dos seus padrões culturais e das suas sobrevivências. Deles se utilizam Nina Rodrigues e o da sua escola com pleno êxito.

Não resta dúvida que a favor deste último processo militam razões ponderáveis. Arguiu-se o método histórico de falho, por exemplo. Daí, entretanto, não se pode de boa mente invalidar o subsídio da documentação histórica, a ponto de passar-se por cima dele. As pesquisas de Luiz Viana Filho e outros sobre o negro na Bahia estão claramente mostrando que não se deve chegar a esses extremos de negação e sofisma. Não se discute a excelência do método cultural.

Cozinhando no campo. Fotografia de Christiano Júnior

Nas Alagoas, tem se afirmado a existência de diversas nações de africanos, porém não se tem feito sempre acompanhar as assertivas da citação das fontes onde foram colhidas. A luz de alguns documentos históricos inéditos. Procurarei mostrar as origens tribais de afro-negros aportados ao território alagoano, segundo enumerações que, agora desprovidas de rigor etnográfico, não deixam de possuir o seu valor.

No exercício de suas funções, o Curador dos Africanos Livres nas Alagoas, cidadão João Camilo de Araújo, dirigiu-se por mais de uma vez, em ofício, ao Presidente da Província, remetendo-lhe a relação das peças com todos os dados referentes a nome, idade, nação, estado civil, profissão, comportamento, data da apreensão, nome do arrematante, autoridades que lhes deram destino.

Num desses documentos, datado de 7 de janeiro de 1860, encaminhando a relação dos africanos livres existentes em Maceió, diz o Curador João Camilo de Araújo ao presidente da província das Alagoas, Dr. Manoel Pinto de Souza Dantas, que o fez “na forma exigida no Aviso circular do Ministério da Justiça de 4 de novembro do ano próximo findo que V. E. me remeteu por cópia”. (1) Cumpria o Curador nesse particular rigorosamente a lei, com a discriminação minuciosa de dados que consta de todas as suas listas de africanos livres.

No outro documento, dirigido ao vice-presidente da mesma província Dr. Roberto Calheiros de Melo, o Curador manda-lhe a “relliam dos africanos livres apreendidos nesta província e que foram postos sob minha curadoria no ano de 1860, depois foram entregues aos diversos arremites de seus serviços e outros destinados aos serviços de diferentes estabelecimentos públicos”. (2).

Em 1855, por justo impedimento de moléstia, como salienta de início, no seu ofício ao Dr. Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, o Curador não pôde cumprir com a devida urgência as determinações do presidente da Província em ofício de 19 de março, mas já a 2 de abril lhe envia a relação pedida dos africanos livres. (3) E, desse modo, foi dando conta das suas atribuições aos governos provinciais, e prestando um excelente serviço aos futuros pesquisadores dos assuntos afro-brasileiros.

Eis, em ordem alfabética, mas evidentemente sem rigor etnográfico, os nomes dos negros, segundo a nação, contido nas citadas relações: Aquity, Borem, Belum, Bolim, Cucumbu, Cadará Enva, Ganhe, Balbi-ri, Guebu, Gabu, Galinha, Jaguá, Ugá, Maquy, Nagô, Tapa, Ussá, Ufá.

O Curador anotou-os na coluna Nação de suas listas. É singular que o fizesse, pois geralmente os documentos relativos ao Negro, sejam os documentos do comércio de escravos, sejam os documentos oficiais de qualquer espécie, omite o nome tribais ou de nações, substituindo os pelas denominações gerais Angola, Guiné, Congo, Moçambique, quando não rezam negro da Angola, negro da Costa, negro Mina.

Nos anúncios de compra e venda de escravos negros, acontecem em geral, o mesmo. Fala-se em negro d’Angola, apregoa-se o valor de uma peça de Guiné ou de um negro da Costa. O ponto de sua procedência é que assinala a sua origem étnica, e não a tribo ou nação a que pertencia. A denominação negro da Costa torna-se ainda mais vaga. Qual das Costas? Do Ouro, dos Escravos, da Mina, da Pimenta ou da Contra-Costa?

É natural o interesse que um documento como as listas do Curador, trazendo nomes de nações africanas, possa despertar.

Arthur Ramos faz restrições sérias a essas enumerações ou listas que, ao ver dele, “exprimem os mais variados critérios. Comentando uma lista semelhante a apresentada por Fernando Ortiz, referente à Cuba, escreveu Arthur Ramos que elas registram “ora, denominações de localidades ou regiões, ora de nascimento ou de tribo, ora de portos de procedência, ora designações populares com sinonímias várias, etc”. Assim, efetivamente, se dá.

Não se pode aceitar essas enumerações como verdadeiramente exprimindo em si origens étnicas rigorosas; mas, apesar de tudo, através desses nomes aqui atribuídos aos negros aportados, sejam meras designações populares como negros Galinha, sejam nomes de localidades ou regiões como negro d’Angola, se pode reconstituir-lhe a origem étnica, submetendo-os a uma análise rigorosa e comparativa, completando o auxiliando assim o estudo integral do Negro, com dois métodos histórico e cultural.

Nessas relações do Curador João Camilo de Araújo, identificam-se, por exemplo, como sudaneses centrais, os Galinhas (Gruncis), Tapas, e Haussas (Ussá), que acredito tivessem vindo da Bahia e não importados diretamente da África. Pois a capital baiana em tal época foi um forte reduto destes povos negros.

Dos Nagôs, negros da Costa dos Escravos, pode-se dizer que abrangiam a quase totalidade dos negros sudaneses vindos para as Alagoas. As listas do Curador João Camilo de Araújo confirmam-no.

Nessas reeliams por ele apresentadas, os Nagôs figuram em maior número. Apenas numa relação nominal de 74 africanos livres existentes em Maceió em 1860, porém importados no patacho mercante Feliz União e aprendidos no “lugar dos Morros de Camaragibe”, em janeiro de 1850, estão arrolados 23 Nagôs.

A entrada desses negros yorubanos no Brasil e especialmente na Bahia deu-se com maior intensidade no início do século XIX. Desconhecendo-se com precisão a data da introdução das primeiras levas. Entretanto, afirmam vários investigadores, que os Nagôs eram introduzidos no Brasil desde os fins do século XVIII.

Cesteiro. Fotografia de Marc Ferrez em 1899

Coincide essa presença em maior número de Nagôs nas estatísticas do Curador João Camilo de Araújo com a intensificação do tráfico negreiro yorubano para o Brasil. A Bahia, principalmente, importou-os em larga escala. Os negros e yorubanos receberam no nosso país os nomes de Nagôs, Egbás, Ijêxás, Ketu e muitos outros. De acordo com as nações a que pertenciam nas relações apresentadas pelo citado Curador, quer nas referidas há pouco, quer nas dos escravos livres sob a curadoria dele, os Nagôs não somente estão em primeiro lugar quanto à importância numérica, como quanto à origem sudanesa. Também constam dessas listas negros Tapa, Galinha e outros referentes a pequenas nações sudanesas. Os Galinhas são, conforme ensina Nina Rodrigues, os Curunxis, Guruncis ou Gruncis, povo negro que no Brasil recebeu esse excêntrico nome, cuja origem não ficou bem esclarecida.

Desses nomes relacionados, Nelson de Sena na sua “vasta nomenclatura de povos africanos, em sua imensa maioria ou quase totalidade, da Raça Negra e que tiveram representantes na escravatura de toda a América e notadamente no Brasil” (4) registra Cacumbus ou Cacumbos. Que devem ser os mesmos Cucumbus, Galinhas — Gruncis, Nagôs, Tapa — Nifés, Ussás.

A prosódia do Negro era aqui deturpada e por isso grafavam-se à vontade os nomes de origem ou bântu, pelo desconhecimento das línguas africanas. Estas listas apresentavam-se por isso mesmo incorretas e a que, com os dados do Curador João Camilo de Araújo publico, padece dessas incorreções. Há nela sinônimos, como por exemplo, Cucumbu -Cucurubu, Jaguá-Jugá e outros. Guebus devem ser os Gebús ou Gêbos, como enviou Emves, ou  Ewes ou ainda Eves.

Por isso, as chamadas relações ou listas de africanos importados perderam um tanto de valor como elucidário da sua origem étnica, ou tem valor relativo, mas, como saliento de início, não devem ser esquecidas ou abandonadas, pois, de certo modo, concorrem para que se possa saber quais as tribos ou nações do continente africano que forneceram escravos para o nosso país. Sabendo-se que a incineração dos documentos históricos sobre a escravidão africana prejudicou totalmente os estudos em torno da procedência dos afros-negros importados, o achado de qualquer documento nessa natureza escapado à destruição constitui motivo para que seja esmiuçado, devidamente apreciado.

(1) Ofício do curador dos africanos livres, João Camilo de Araújo, 7 de janeiro de 1860. Arquivo do Instituto Histórico de Alagoas.

(2) idem. 31 de agosto de 1854, Arquivo do Instituto Histórico de Alagoas.

(3) idem. 2 de abril de 1800 e 55 Arquivo do Instituto Histórico de Alagoas.

(4) Africanos no Brasil — Nelson de Sena, Belo Horizonte, 1938.

2 Comments on Origens tribais do Negro nas Alagoas

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 9 de maio de 2023 em 15:18 //

    Prezado Ticianeli, grato pela publicação desta página da História de Alagoas, referente à escravidão. Muito triste, sem dúvida.

  2. Sensacional essa página de história de Alagoas. Excelente trabalho!

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