O sino que não salvou “A Pátria”
Félix Lima Júnior
Fins do terceiro decênio do século XX em Maceió, a tranquila, próspera e futurosa capital alagoana. Governava o Estado, desde 12 de junho de 1928, um homem bom e de bem — Álvaro Corrêa Paes, sertanejo de Palmeira dos índios. Vice-Governador e Secretário do Interior era o Dr. Adalberto Afonso Marroquim. Trazido pelo Governador Costa Rego comandava a Polícia Militar desde 1924, comissionado no posto de Tenente-Coronel, o Capitão de Artilharia do Exército Nacional, Pedro Reginaldo Teixeira, baiano.
O Dr. Fernandes Lima, o “Caboclo Indômito”, senador federal pelo Estado, era o chefe do Partido Democrata, no poder desde 12 de março de 1912. Governara Alagoas, por dois períodos, e fora substituído, em 12 de junho de 1924, pelo jornalista Costa Rego, redator-chefe do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Ao que se comentou então, seu nome fora imposto pelo Presidente da República, Dr. Arthur Bernardes, pois o candidato do Dr. Fernandes Lima e de seus amigos era o bacharel José Moreira da Silva Lima, nascido em Capela, neste Estado, e então Intendente (Prefeito) Municipal de Maceió.
As desinteligências entre Fernandes Lima e Costa Rego vinham desde a posse do último no governo da terra. Chefe do partido, o “Caboclo Indômito” queria continuar governando, indicando nomes para cargos públicos, etc. Contou Costa Rego a um de seus mais graduados auxiliares os aborrecimentos que lhe causou o Dr. Fernandes Lima, quando aqui esteve o Dr. Washington Luiz, presidente eleito da República. No carro oficial que conduziria Sua Excelência da ponte de desembarque ao Palácio dos Martírios, viajariam ele e o governador. O Dr. Fernandes Lima — “quero porque quero” e, quebrando o protocolo, — pretendeu viajar no mesmo veículo, o que gerou grave aborrecimento. Sucederam-se muitas outras desinteligências. Cortaram relações políticas e pessoais.
Em 1928 resolveu Fernandes Lima publicar um jornal em oposição ao governo. Na tarde de 20 de setembro daquele ano, como fora anunciado, surgiu A Pátria, sob sua direção e responsabilidade. O gerente era o Sr. Benedito Buarque. Redação e oficinas foram localizadas na Rua 15 de Novembro (Rua do Sol), n° 202, no andar térreo de velho sobrado. Formato 54 cm x 36 cm, com quatro páginas, relativamente bem impresso, custava o exemplar 100 réis. Assinaturas: mensal — 2$500 (dois mil e quinhentos réis); anual — 28$000 (vinte e oito mil réis). 0 7° e último número saiu no dia 27, quinta-feira.
Quem leu o segundo e o terceiro número do jornal verificou que o mesmo estava procurando briga… No n° 4, de 24, transcreveu, de um órgão carioca, “Clair de lune“, com alfinetadas envenenadas ao engenheiro Sigaud, amigo de Costa Rego e apontado como felizardo contratante de construções de estrada de rodagem e outras obras públicas. Entre parênteses: Sigaud era profissional competente e capaz.
No n° 6, Costa Rego foi apontado como “Mussolini de cabaré“… No 7° e último número foi severamente criticada declaração do mesmo no discurso em que agradeceu, na Associação Comercial, a manifestação das classes conservadoras, dois dias antes de tomar posse, como governador, em 12 de junho de 1924: “Quero dinheiro e muito dinheiro“…
Na noite de 27, Seu Manoel, sacristão da igreja do Rosário, dormia calmamente nos fundos da mesma, quando acordou com barulho suspeito. Muito ativo e esperto, talvez até de mais, ao que dizem — correu ele, com ou sem segunda intenção e tocou o sino, acordando as pessoas residentes nas ruas próximas. Muita gente se levantou e correu à janela. Estavam empastelando A Pátria, mas o alarme impediu que o serviço fosse concluído. Retiraram apenas peças vitais da máquina de impressão e o cabeçalho, fugindo a turma encarregada do trabalho pelas portas do fundo do prédio, que davam para a Rua Dr. José Bento Júnior.
Dizem que Seu Manoel foi, depois, avisado discretamente, para nos próximos dias não acordar com facilidade… Acordando, porém, deveria permanecer na cama, por segurança… Foi o que ele fez, quando os assaltantes voltaram dias depois e empastelaram o jornal. Ficou no seu canto quieto e calado, imitando a velha da anedota que tinha uma neta muito viva, viva de mais: não podia ouvir barulho pois esquecera os óculos…
Fernandes Lima mandou seu filho Anibal, 2° Tabelião da capital, procurar o Secretário do Interior; S. Exª prometeu ir à redação, às 10 horas, providenciar. Não foi. Mandou um investigador, Sr. Erasmo Rocha, funcionário capaz, que nada resolveu, pois não podia resolver…
Indignado, Fernandes Lima mandou imprimir e distribuir o seguinte boletim:
“Ao povo alagoano — Boletim d’A Pátria. Infâmia dos dominadores — Os ladrões do Tesouro, os que roubam lodos os dias a Pátria Alagoana, também roubaram A Pátria, o jornal do povo.
Ontem à noite, peneirando furtivamente pelos fundos do edifício, à Rua 15 de Novembro, n° 202, onde A PÁTRIA tem suas oficinas e redação, roubaram o título (cabeçalho) do órgão do Povo, peças da máquina de impressão (rolos), empastelando uma página de anúncios, o que impossibilita a circulação do jornal por alguns dias.
O atentado só pode ser atribuído ao governo ou a seus agentes, ainda mesmo que tenha sido praticado à revelia do Sr Álvaro Paes.
O diretor d’A PÁTRIA, logo que foi cientificado do fato (cerca de 8 horas da manhã) mandou imediatamente comunicar ao Secretário do Interior, por intermédio do seu filho Aníbal Lima, que encontrando aquela autoridade em Palácio, com ela conferenciou, obtendo a promessa de S. Exª de que pouco depois viria para ordenar ou presidir as primeiras diligências policiais que o caso requeria com urgência, afim de que ficasse autenticado o fato e apuradas as responsabilidades.
O Secretário do Interior até as 10½ não apareceu e se fez substituir pelo cidadão Erasmo Rocha, guarda-civil, sem autoridade e competência para essas diligências de importância.
Mesquinhos, pequeninos, vilões, sujos, até no roubar! Mas A PÁTRIA reaparecerá por estes dias, mais altiva, mais enérgica, mais vibrante, mais candente, porque é um jornal do Povo e o Povo assim o quer.
Tudo pela liberdade de nossa Alagoas, oprimida e vilipendiada!
JOSÉ FERNANDES DE BARROS LIMA
Senador Federal e diretor d’A PÁTRIA.
NOTA — Há uma circunstância muito agravante no caso: o edifício d’A Pátria fica na encosta do morro do Farol ou jacutinga, dando os fundos para a residência do Comandante da Polícia. Julgávamo-nos assim, muito bem garantidos, ou muito mal garantidos?
FERNANDES LIMA.”
Irritado, Fernandes Lima telegrafou ao Presidente Washington Luiz que não se dignou, sequer, acusar o despacho do digno representante do povo… Depois requereu habeas-corpus preventivo, que tomou o n° 150, para que ele, seu filho Aníbal e 13 auxiliares e operários do jornal continuassem a fazê-lo circular, habeas-corpus julgado em sessão de 11 de outubro, do Supremo Tribunal de Justiça, então presidido pelo Desembargador Adalberto Figueirêdo.
Alegou S. Exª que: “no dia 2 de outubro, pela madrugada, o seu jornal A PÁTRIA foi assaltado por um grupo de indivíduos que arrombaram uma porta, roubaram várias peças importantes da máquina de impressão, arrebentaram cavaletes e praticaram outras depredações, sendo que já dias antes sofreu o referido jornal um assalto noturno de menores proporções”.
Foi denegado unanimemente “por não ser caso deste recurso” (Diário Oficial do Estado, de 18 do mesmo mês e ano, 2ª página). Efetivamente, na data citada pelo “Caboclo Indômito”, a redação do jornal fora novamente arrombada e empastelado o mesmo, notando-se que, dessa vez, Seu Manoel, o cuidadoso sacristão do Rosário, não imitou novamente os gansos do Capitólio…
Costa Rego levou o caso ao ridículo, declarando ter sido o jornal empastelado por seminaristas… Deles lembrou-se, creio, devido ao toque do sino. Aliás, pouco tempo depois houve outro alarme, dado pelo sino da Catedral, quando o vigia de O Semeador avisou que tentavam empastelar o jornal, o que não era verdade. Por causa desse toque de sino houve quem ficasse detido, na 1ª Delegacia, por algumas horas…
No livro Figuras da Terra, afirmou Romeu de Avelar:
“Costa Rego mandara empastelar o jornal desse político (Fernandes Lima), pôr os prelos no rio São Francisco e prender o seu redator-chefe, o então jovem Hildebrando Falcão.”
No dia 19, pelo vapor Araçatuba, da Cia. Costeira, o Sr. Costa Rego voltava à futura “Cidade Maravilhosa”, para os chás das cinco, na Lalet e na Cavé.
Fernandes Lima não entregou os pontos. Requereu vistoria judicial “ad perpetuam rei pnemoriam“, decerto para obter, oportunamente, uma indenização do Estado. O Dr. José Jerônimo de Albuquerque, hoje desembargador aposentado, então Promotor Público de Maceió, funcionou no feito. Uma das audiências — dizem — foi bem movimentada…
Vencedora a Revolução em outubro de 1930, foi constituída, aqui, Comissão de Sindicância presidida pelo bacharel Porto Júnior. Para apuração do caso do jornal, foram citados, por edital, o ex-oficial de polícia José Lucena e o ex-guarda-civil Manoel Alves, então ausentes da cidade. Foram ouvidos: Antônio Cavalcanti Cajueiro, fotógrafo, em 12 de novembro; o ex-guarda-civil José Vieira de Melo; Erasmo Rocha, em 18 de novembro; Lucena, em 19 de dezembro; Dr. Manoel Buarque de Gusmão, que era o 1º comissário de polícia quando do empastelamento, em 22; o ex-guarda-civil, Onésimo Alves de Amorim, em 2 de janeiro de 1931; Juventino Moreira Santana, marceneiro, que no dia 2 de outubro de 1928 dormia no prédio do jornal, também depôs.
O Diário Oficial, de 11 de março, publicou o depoimento de Hegecipo Caldas.
Segundo me informaram, o vigia do prédio era um ex-guarda-civil, excluído, meses antes, da corporação, na qual ingressara devido a recomendações do deputado Angelo Martins, proprietário de uma ourivesaria na Rua I° de Março (Avenida Dr. Moreira Lima, presentemente), político criterioso e de raro caráter, intransigente amigo do Dr. Fernandes Lima. Foi barbaramente espancado e faleceu, depois, em consequência das pancadas, no Poço, onde residia.
O Dr. Buarque morava na mesma Rua 15 de Novembro, bem perto do jornal empastelado. O Comandante da Polícia, na Rua Dr. José Bento Júnior, no Farol, ponto próximo dos fundos do prédio d’A Pátria.
Buarque disse a um amigo, quando respondia ao inquérito, que fora certo oficial de polícia o encarregado da destruição do órgão oposicionista. Ele, Buarque, fora avisado para ficar de longe, “de camarote”, não interferindo, como aconteceria, meses depois, com o pobre guarda-civil, de ponto no Relógio Oficial, quando cortaram o bigode do Pipiu… Sem saber de que se tratava, o ingênuo policial, vendo quatro ou cinco homens armados, no Comércio, às 8 horas da manhã, derrubarem um cidadão e lhe cortarem, à faca, o vistoso bigode — que era seu justificado orgulho… — apitou, tolamente, pedindo socorro que, efetivamente, chegou, mas muito tarde, como os carabineiros de Offenbach…
Um dos depoentes citou entre os que compunham a turma quebradora do jornal o sargento Chicão (Francisco Martins), que pela empreitada fora promovido a tenente, o que não era verdade. Chicão era natural de São Miguel dos Campos e armeiro da polícia. Não foi excluído depois de outubro de 1930. Faleceu há muito tempo.
Apareceu número especial e extra do jornal empastelado, isso em 9 de junho de 1933, com a anotação: “Assaltada, depredada, roubada por duas [sic] vezes sucessivas (27 de setembro e 1 e 2 de outubro de 1928)“. Afirma que o Sr. Costa Rego chefiava “a malta de assaltantes (duas autoridades e policiais mascarados), permanecendo oculto numa casa residencial próxima à redação“. Lembra: “A Pátria ressurge hoje com este número especial e único, imprecando á Justiça da Revolução que até agora ainda não achou um jeito de apurar, para punir, estes dois [sic] monstruosos atentados à liberdade da imprensa e à propriedade particular“.
Nada se fez. O inquérito dorme, decerto, em alguma gaveta de secretaria, alimentando traças…
Possui o Instituto Histórico de Alagoas três exemplares da edição de 9 de junho de 1933. Da primeira fase, lá estão apenas os números 4, 5, 6 e 7.
(Publicado no Jornal de Alagoas, Maceió, 11.07.1065 e 18.07.1965)
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