O Rodriguez de Melo de Romeu de Avelar

Catedral de Maceió em 1902

Romeu de Avelar

*Publicado na revista Vamos Ler!, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1947.

No meu magro bolso de colegial filho de família modesta sempre se escondiam dois vinténs dobrões, como se chamava naquele glorioso tempo à pesada moeda de cobre com que se adquiria tanta coisa, para comprar uma queimadinha ou uma tapioca de leite no tabuleiro asseado de uma pequenina preta velha que, todas as tardes, se sentava num banquinho bem à esquina da praça da Catedral.

Teria eu então treze anos. Infalivelmente, depois da aula de Português, ministrada entre uma anedota fescenina e uma pitada de rapé, pelo famanaz cônego Machado, íamos, eu e alguns colegas, como que atraídos por uma força misteriosa, em demanda do tabuleiro enfeitiçado da boa velhinha.

Ali, naquela praça de minha sossegada província, então, toda cercada de altas grades de ferro como um jardim de palácio real, reuníamo-nos, numa assembleia festiva, para o assalto às guloseimas da preta Florinda.

Pilheriávamos com ela, regateávamos o preço da sua gostosa mercadoria: e era então de vê-la arregalar os olhinhos de rato, tirar uma sandália do pé para ameaçar-nos de mentira, e logo soltar uma gargalhada que parecia ir até perder o fôlego.

A preta Florinda era um tiquinho de gente. Teria um metro e quarenta? Mirradinha, de boca funda pela falta de todos os dentes, sempre muito esmerada, com sua saia de roda e seu orgulhoso chale de quadrinhos atravessado ao ombro, como as baianas.

— “Queimadinha! Queimadinha! Tapioca de lêê… êite!”

Lá vinha ela, tabuleiro à cabeça, anunciando, com uma voz estridente explicada, a sua gulodice, em direção à praça costumeira. Sentava-se no mesmo lugar, e só dali se levantava quando o sino maior da torre da igreja começava a pingar as Trindades. Mas, ao escurecer, já o seu tabuleiro estava vazio.

A Florinda… Que nos interessava saber quem era a Florinda, donde viera, onde nascera, se fora escrava, se tinha filhos na escola ou onde morava? Só a sua queimadinha e a sua tapioca de leite nos atraiam ao seu mágico tabuleiro.

Mas… um dia, a pequenina preta Florinda surgiu-nos, como nas histórias de fada, com uma auréola de santa e de heroína.

Estávamos então em 1912. As chamadas reivindicações políticas eram um alastrim de norte a sul do país. Metera-se na cabeça de uns tantos “iluminados” salvarem a nova e já gasta República, ajustando velhas contas com os “sobas” detentores das forças políticas locais. Como no remexer do braseiro das revoluções passadas, sempre de caráter popular — como a Abolição e a queda da Monarquia — os ânimos dos alagoanos se inflamaram, e então o povo também quisera viver o sonho de liberdade e dos utópicos melhores dias. Os governos, como colunas de cartas de baralho, iam caindo um a um, em cada Estado. O movimento, gritavam os “salvadores“, era de respeito à soberania popular, à qual eles mentiram. A mecha acesa lá fora, principiara a arder em Alagoas. Governava então a terra dos marechais um homem simples e bom — Euclides Malta.

Uma tarde, o bondezinho da rua da Boa Vista passara atulhado, levando indivíduos de lenço amarrado ao pescoço, chapéu quebrado na testa e grossos cacetes erguidos e ameaçadores, a darem morras aos “lebas“. (Os lebas eram os ameaçados de cair).

Vínhamos, como sempre àquela hora, eu e meus colegas, da indefectível aula do famigerado cônego, e paramos, surpreendidos com aquele furdunço fora da época do Natal. Sem sabermos, na verdade, do que se tratava, ensanduichamos a gramática de João Ribeiro num sovaco, e acomodando milagrosamente um pé no estribo do bondeco, que se arrastava no mesmo passo dos burros esfalfados, cada um de nós berrava e dava morras também, de rasgar a goela. Quando o carro, para aqui, emperra acolá, chegara finalmente à praça dos Martírios (simbólico nome dado ao palácio governamental por onde têm passado tantos algozes do povo alagoano), já uma rumorosa multidão se comprimia em torno da grande estátua de Floriano Peixoto.

Fácil nos fora compreender que se tratava de um mitingue. Um braço erguido, alentando uma mão negra que se debatia como uma asa aflita presa nо ergástulo de um punho branco, parecia ilustrar as palavras calorosas do orador.

Insinuando-me pela multidão, antes movido pelo instinto muito humano de curiosidade, de “ver a coisa de perto”, que mesmo pela ansiedade da admiração, chegara eu sozinho diante do tribuno. Quem era aquele homem de pele negra como a roupa que vestia, de testa estreita, larga boca nua de dentes como a da preta Florinda e por onde sibilava uma rajada de palavras impetuosas, cheias de eloquência e de aplausos? No meu irreverente julgamento de criança, aquela figura negra contrastando com os rostos brancos que a ouviam ora com profunda atenção, com verdadeiro delírio, de fato me deixara enredado em cogitações bastante difíceis. Como poderia um homem de cor falar tão bem, com tanta facilidade, com ideias tão vivas e convincentes que inflamavam uma multidão? Para a criança que eu era, na verdade aquilo não deixava de ser espetáculo impressionante e inédito; não podia conceber, sim, que um homem de cor chegasse a tanta façanha e culminância. O julgamento, se bem que ingênuo, era contudo sincero. Que sabia eu, pois, da existência de um José do Patrocínio, de um Rebouças, de um Cruz e Sousa, de um Juliano Moreira e de tantas outras figuras negras, daquela mesma estatura e daquele mesmo brilho, que encheram de intensa refulgência o firmamento da ciência das letras nacionais?

Rodriguez de Melo concluiu o curso de Ciências Jurídicas e Sociais foi na Faculdade de Direito de Recife

Por isso, desde aquela tarde memoriosa na minha província, quando me disseram que o “doutor negro” que falara tão bonito era filho da Florinda, eu meus colegas começamos, instintivamente, a render uma espécie de homenagem romântica à anônima velhinha do tabuleiro. Para nós, a preta Florinda, e para mim, principalmente, (talvez o mais emotivo de todos) transformara-se, de repente, em uma personagem de lenda, rodeada de mistério e de fascínio. Logo, rápida, correra de boca em boca, sussurrara-se em todo o colégio, a maravilhosa, a quase sobrenatural notícia: a Florinda tinha um filho doutor!

Daí por diante, a nossa admiração canonizou a preta velhinha — era santa e heroína. Mais tarde, quando se esmaecera a nossa infância e meus colegas, como eu, desgarrámos por trilhas diferentes, o destino reservara para mim a dita de privar um dia da amizade de Rodriguez de Melo.

Conheci-lhe de perto as virtudes e os defeitos, mas, nele, quis somente admirar o orador sempre inspirado, o poeta voluntário, o articulista combativo e o advogado profissional de dialética fulminante. A província, mãe insensível ou madrasta, nunca lhe entibiara o propósito de aceitar a vida sem recuos, como um duelo perigoso e sem padrinhos.

Rodriguez de Melo e o poeta Cipriano Jucá

Apesar de uma existência de constantes atribulações, em que a sua aguda inteligência e as aspirações românticas foram os fatores culpados de decepções que miudamente tanto o amarguraram, Rodriguez de Melo era um homem sem complexos. O acidente da cor nunca lhe criara constrangimentos íntimos. Tinha sempre um verso fresco na boca para galantear a mulher bonita que passava. Como que, afastava-se de si próprio… Poeta, e da plêiade dos mais sonorosos de Alagoas, cantou até à véspera do seu adeus eterno à vida. A província fora o seu encantado horizonte e, ao mesmo tempo, a dourada gaiola, dentro da qual, por vezes, se debatia como uma ave selvagem e despaisada. Suas asas, porém, jamais criaram os afoitos remígios para uma emigração. Atraíra-o o misterioso ima da terra natal, da pequenina cidade de Maceió, onde finalmente ele era o que era. Seus sonhos, todavia, não eram tão arrojados que não coubessem na esfera dos seus provincianos desejos. Rodriguez, creio, nunca soubera mesmo o que queria. Promotor público de larga e justa projeção, a sua maior escalada fora até o galgar de uma cadeira na Câmara estadual. Como nada fazia sem um pouco do sal da boêmia, esta e a poesia foram o seu elan, arrastando-o para correntes diferentes na vida. Ultimamente, com a idade que traz o nervosismo mental e cria as queixas constantes como estratagemas para esconder as patéticas aflições da velhice, tornara-se maior o seu desajustamento com o mundo, melhor, com a província onde vivera dispersiva e abundantemente, à sua maneira, tecendo a trama do seu próprio destino dúbio. Teria tido melhor sorte cá fora? A grande capital é muito fria e cruel, não tolera nem perdoa aqueles que não possuem o decor necessário à sua falaz ilusão. Rodriguez de Melo era justamente a antítese desse triunfador tipo citadino. Só a província lhe daria a moldura que teve, embora não muito ajustada à sua compreensão de turbulento emotivo. Deixara, por outro lado, incompleto o drama que representara sozinho, aliás com pouca firmeza de ânimo contra a pobreza e o estigma da cor?

Cada um de nós, no recôndito do pensamento, achamos que fomos lesados no nosso quinhão na vida; mas a talmúdica verdade, como diria o cético France, tem um julgamento secreto e justo para todo destino: é que há um prazer em deturparmos a verdade sobre os nossos próprios merecimentos.

Rodriguez de Melo, que acompanhara o espreguiçar da burguesa cidade onde, de fato, chegara a ser “algo” para o pouco que recebera da vida, viveu o bastante de mais de meio século para incompatibilizar-se com os tempos modernos. Para trás, muito para trás tinham ficado as “cançonetas ao luar“, os versos apaixonados no “Cofre de pérolas” dos jornais domingueiros à “morena de tranças de cetim“, o fraque, a flor na lapela, a gravata à Mussett, os discursos de “efeito” nas praças públicas e nos tribunais de júri. O automóvel, o rádio, a luz fluorescente, o avião e o centavo substituíram, sem ele pressentir, o bondezinho de burros, o gramofone, a luz de querosene, o navio e o vintém.

Tão desimaginado quisera ficar do fugir desses doces dias passados que procurara, ultimamente, recolher-se à remansosa cidadezinha de Penedo, para, talvez quem sabe? continuar a adorar as imagens expungidas do passado que ele, ingenuamente, teimava em encarná-las e cultuá-las com a suposta mesma fé da mocidade.

Mas a morte, piedosa, fechou-lhe os olhos para fazer descansar de vez aquele coração boêmio que pulsara demasiadamente.

1 Comentário on O Rodriguez de Melo de Romeu de Avelar

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 6 de agosto de 2024 em 14:22 //

    Muito grato, Ticianeli, pela mensagem. Todavia, a história de nosso irmão é um pouco triste.

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