O mistério do marketing das lajotas quebradas
Pode algo quebrado valer mais que peça inteira? Aparentemente não. Pela primeira vez na história da humanidade contamos esse mistério
Manoel Henrique Campos Botelho
Foi entre as décadas de 40 e 50 do século passado. Voltemos a esse tempo. A cidade de São Paulo era servida por duas indústrias cerâmicas principais. Um dos produtos dessas cerâmicas era um tipo de lajota cerâmica quebrada (algo como 20×20 cm) composta por quatro quadrados iguais.
Essas lajotas eram produzidas nas cores vermelha (a mais comum e mais barata), amarela e preta. Era usada para piso de residências de classe média ou comércio.
No processo industrial da época, sem maiores preocupações com a qualidade, aconteciam muitas quebras e esse material quebrado sem interesse econômico era juntado e enterrado em grandes buracos.
Nessa época, os chamados lotes operários na Grande São Paulo ou eram de 10x30m ou, no mínimo 8x25m; ou seja, eram lotes com área para jardim e quintal — jardins e quintais revestidos até então com cimentado e sua monótona cor cinza. Mas os operários não tinham dinheiro pra comprar lajotas cerâmicas, que eles mesmos produziam, e com isso cimentar era a regra.
Um dia, um dos empregados de uma das cerâmicas e que estava terminando sua casa, não tinha dinheiro para comprar o cimento para cimentar todo seu terreno e lembrou-se do refugo da fábrica — caminhões e caminhões por dia que levavam esse refugo para ser enterrado num terreno abandonado perto da fábrica.
O empregado pediu que ele pudesse recolher parte do refugo e usar na pavimentação do terreno de sua nova casa. Claro que a cerâmica topou na hora e ainda deu o transporte de graça, pois com o uso do refugo deixava de gastar dinheiro com a disposição.
Agora a história começa a mudar por uma coisa linda que se chama arte.
A maior parte do refugo recebida pelo empregado era de cacos cerâmicos vermelhos, mas havia cacos amarelos e pretos também. O operário ao assentar os cacos cerâmicos fez inserir aqui e ali cacos pretos e amarelos quebrando a monotonia no vermelho contínuo.
É… a entrada da casa do simples operário ficou bonitinha e gerou comentários dos vizinhos também trabalhadores da fábrica. Aí o assunto pegou fogo e todos começaram a pedir caquinhos, o que a cerâmica adorou, pois parte — pequena é verdade — do refugo começou a ter uso e sua disposição ser menos onerosa.
Mas o belo é contagiante e a solução começou a virar moda em geral e até jornais noticiavam a nova mania paulistana. A classe média adotou a solução do caquinho cerâmico vermelho com inclusões pretas e amarelas.
Como a procura começou a crescer, a diretoria comercial de uma das cerâmicas, descobriu ali uma fonte de renda e passou a vender, a preços módicos é claro, pois refugo é refugo, os cacos cerâmicos. O preço de metro quadrado do caquinho cerâmico era da ordem do 30% do caco íntegro (caco de boa família).
Até aqui esta historieta é racional e lógica, pois refugo é refugo e material principal é material principal. Mas não contaram isso para os paulistanos e a onda do caquinho cerâmico cresceu e cresceu e cresceu e — acredite quem quiser — começou a faltar caquinho cerâmico, que começou a ser tão valioso como a peça íntegra e impoluta.
Ah, o mercado com suas leis ilógicas, mas implacáveis… Aconteceu o inacreditável. Na falta de caco as peças inteiras começaram a ser quebradas pela própria cerâmica. E é claro que os caquinhos subiram de preço, ou seja, o metro quadrado do refugo era mais caro que o metro quadrado da peça inteira…
A desculpa para o irracional (!) era o custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse custo de perda industrial que gerara o problema, ou melhor, que gerara a febre do caquinho cerâmico.
De um produto economicamente negativo passou a um produto sem valor comercial, depois a um produto com algum valor comercial, até o refugo valer mais que o produto original de boa família…
A história termina nos anos 1960 com o surgimento dos prédios em condomínio e a classe média que usava esse caquinho foi para esses prédios e a classe mais simples passou a ter lotes menores (4x15m) ou foi morar em favelas.
A solução do caquinho deixou de ser uma solução altamente valorizada.
São histórias da vida que precisam ser contadas para no mínimo dizer:
— A arte cria o belo, e o marketing tenta explicar o mistério da peça quebrada valer mais que a peça inteira…
Nota: um filósofo da construção civil confessou-me: — Existe outro produto que quebrado vale mais que a peça inteira por quilo. É a areia que vem da quebra da pedra. A areia fina é vendida mais cara que a areia grossa.
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Crônica do engenheiro, consultor, escritor e professor Manoel Henrique Campos Botelho para a revista Engenharia.
Manoel Henrique Campos Botelho é Engenheiro Civil, formado em 1965 na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, tendo se especializado em projetos civis e hidráulicos. Especializou-se também como autor de livros técnicos, entre os quais a Coleção Botelho, com seu livro inicial “Concreto Armado – Eu te Amo“.
Fonte: http://www.brasilengenharia.com/portal/
Muito legal essa história! Sou grato. Parabéns!