O latim do Padre Amancio

Praça Deodoro na primeira década do século XX, antigo Largo do Cotinguiba e das Princesas

Jayme D’Altavila

*Publicado em O Malho (RJ) de 7 de dezembro de 1933.

Chamava-se Padre Amancio das Dores Chaves.

Velhinho, muito suave na expressão, de meia estatura, com batina já muito surrada, porém, asseada pela escova.

Era professor do velho Liceu Alagoano, desde que o Coronel Antonio Nunes Aguiar sancionara a Lei nº 106, aos 5 de maio de 1849, criando o estabelecimento, com caráter de ensino secundário.

Quando o padre mestre fora nomeado para a cadeira de latim, já o seu nome estava ligado ao ensino da matéria, pois mantinha curso particular na casinha baixa e colonial onde vivia.

Ilustração da publicação original em O Malho de 7 de dezembro de 1933

Pela manhã, após o latim da missa, entrava no latim da cadeira. Fosse manhã de chuva, ou manhã de sol, lá se ia o Padre Amancio, com seu passinho cadenciado, pelas ruas enviesadas de Maceió, até o Liceu Alagoano.

Os estudantes de então tinham do Padre Amancio uma grande queixa: enquanto os professores de retórica, francês, moral e português feriavam em certos e determinados dias, ele não deixava de se sentar na cadeira e dar aula, com precisão de relógio.

E foi assim que certa vez, logo cedinho, foram para o Largo das Princesas [atual Praça Deodoro], perto do Liceu, e trouxeram de lá, pelas rédeas, um paciente burrinho que ali costumava pastar sossegadamente.

Sem que o bedel os visse, entraram no prédio pela porta lateral e foram amarrar o burrico ao pé da mesa onde o professor de latim fazia a chamada e se debruçava sobre os compêndios de Horácio e de Virgílio.

Padre Amancio entrou na sala de aula. Ninguém. Apenas o burrinho, movendo as grandes orelhas, espantado de tudo aquilo. O velho mestre não se perturbou: fez a chamada, pôs falta nos estudantes que gargalhavam por detrás da porta, levantou-se depois, foi até onde estava a alimária e lhe disse num tom de voz bem nítido e compassado:

— “Diga aos seus colegas que hoje não posso dar a lição de latim”.

E retirou-se calmamente do Liceu.

No dia seguinte, a classe estava repleta. O latinista sentou-se calmamente na sua cadeira, sorrindo, como se nada houvesse acontecido e disse:

— “Como lhes mandei dizer ontem pelo único estudante que pode comparecer à aula, não pude dar lição. Porém hoje vamos começar pelo nosso capítulo da História Romana de Eutropio…”.

Liceu Alagoano na Rua do Livramento, Centro de Maceió

***

NOTA DA EDITORIA

O sacerdote católico Manoel Amâncio das Dores Chaves era profundo conhecedor da língua latina, notável orador sacro e poeta. Foi deputado provincial (1866-67).

Iniciou-se como professor em Atalaia, sendo transferido para Maceió em 15 de agosto de 1859 como substituto da Cadeira de Latim e de Português do Liceu Provincial.

Em Maceió, morava na Rua da Imperatriz, nº 47 (atual Rua do Sol). Faleceu em 4 de novembro de 1876, vítima de laringite.

Como primeiro pároco da Paróquia Nossa Senhora Mãe do Povo, entre 1865 e 1867 deu início a reconstrução da capela de Nossa Senhora da Conceição, na Pajuçara.

Em sua homenagem, a antiga Rua do Cafundó, em Jaraguá, passou a ser Rua Padre Amancio no início do século XX. É atualmente a Rua Cel. Pedro Lima.

3 Comments on O latim do Padre Amancio

  1. Meu caro Edberto Ticianeli já tinha ouvido falar no Padre Amâncio (latinista)…
    Ele era um orador sacro e um intelectual. Segundo constatei nos anais da Cúria de Oinda, ele foi o primeiro Vigário de Jaraguá.

  2. Lendo esse comentário do velho mestre professor de latim, me fez lembrar do meu amado mestre professor de latim Aluízio Galvão. Sua história é bem parecida com a do professor Aluízio Galvão.

  3. André Soares // 19 de janeiro de 2022 em 09:46 //

    Esse espaço é formidável. Parabéns Ticianele em resgatar nossa história e cultura.

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*