O Graciliano Ramos de Raul Lima
Publicado no Diário de Notícias de 25 de agosto de 1946
Raul Lima
Que estranho homem, esse extraordinário escritor que é Graciliano Ramos. Recebo o pequeno volume Tucano das suas “Histórias Incompletas” com uma dedicatória que, tendo feição humorística, ressume, ao mesmo tempo, uma amargura profunda.
Sendo hoje o velho Graça um homem de partido, de um partido absorvente, e eu um chocho liberal, confesso que as suas palavras me envaideceram como reconhecimento de certo atributo moral que ele considera raro em nossa província comum. Não levo a vaidade ao ponto de transcrever aquelas palavras para não atingir demasiado os nossos conterrâneos com o azedume, aliás bem compreensível, do mestre Graciliano em relação à terra de onde, há dez anos, foi arrancado da maneira mais brutal.
Conheci o romancista de “São Bernardo” antes da revolução de 1930 e em circunstâncias que, inicialmente, não me agradaram. Era eu revisor do “Diário Oficial“, em Maceió, quando chegou o ex-prefeito de Palmeira dos Índios, pouco depois da publicação de seu famoso relatório, para dirigir a Imprensa do governo. E um de seus primeiros atos foi acabar com um acordo dos revisores, segundo o qual trabalhávamos apenas três vezes por semana. Vivesse então menos interessado em usar o tempo a meu modo e teria até agradecido a modificação, pois o diretor não deixava de descer frequentemente ao revisor jornalista e literatelho e falar-lhe de livros e leituras. Em breve a crítica saudaria, com especial ênfase. O livro “Caetés“, daquele burocrata ainda meio matuto que se revelava dono de um estilo e uma linguagem notáveis de sobriedade e precisão.
Em “Angústia” há cenas e aspectos do quotidiano de Maceió, naqueles anos em que a cidade possuía e foi perdendo, um a um — José Lins do Rego, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Aluisio Branco, Valdemar Cavalcante, Aurélio Buarque de Holanda. Quase todos vieram para o Rio, mais cedo ou mais tarde, porque é quase uma fatalidade para a nossa província, essa incapacidade de reter os valores seus e os de empréstimo, como Zé Lins.
Mas, a emigração de nosso caro Aluisio foi para outro mundo e a de Graciliano foi a coisa mais insólita e grosseira que já se viu, uma deportação inopinada do homem que era então o diretor de Educação do Estado e ninguém sabe o que jamais fizera nem poderia fazer contra a segurança das instituições…
Também emigrei, há seis anos. Quando revi o velho Graça, pude sentir a distância que há entre a sua psicologia discutida, de pessimista visceral e amaríssimo, e a simplicidade do seu trato com os velhos conhecidos. Nada da mentalidade rude e angulosa que muitas de suas páginas indicam. Antes a cordialidade discreta, a atenção afável para os que julga merecedores de seu apreço.
Sofrera muito, desde o início de seu exílio forçado, o antigo prefeito que comunicava haver “enterrado tantos contos de réis no cemitério” e que se tornou um dos nossos maiores romancistas de seu tempo.
Aqui estão os contos, as “Histórias Incompletas“, um pequeno volume de cor alaranjada. A complexidade da natureza humana, o insondável, o processo do raciocínio e da aflição, a dissecação da dor e das paixões, tudo isso numa linguagem que eleva a dignidade do uso da palavra escrita — eis que são as páginas assinadas por Graciliano.
Há muito não vejo o meu antigo chefe na imprensa oficial de Alagoas, outrora ossudo e de pele curtida e hoje rosado e quase loução. Ouço dizer que, hoje sim, está inteiramente politizado, faz conferências e debate, como se acreditasse em alguma coisa e tivesse esperanças o velho amargo e cético.
Uso este pedaço de coluna para mandar-lhe o meu abraço, muito agradecido por considerar-me salvo daquela enchente grande, maior ainda do que se pensa porque, nesta dedicatória irônica, simboliza uma devastação incessante, numa devastação mesmo horrorosa, meu caro Graça.
Publicado no Diário de Notícias de 25 de agosto de 1946.
Ticianeli, recebendo seu blog, tive oportunidade, nesse 2020 que passou, de aprender muito da História de Alagoas; mas principalmente de admirar seu estilo raro e bem vindo – de nos deleitarmos com um jornalísmo totalmente literário. Parabéns por “serdes vós quem sois” e, ao contrário desses dois que “emigraram para o Rio de Janeiro,” ficou na TERRINHA deleitando os que ficaram por aí, e os migrantes – como eu!
Esta foto, onde vejo Dr. Théo, um dos maiores ALGOANOS de todos os tempos, ainda jovenzinho, é um presente de natal!
Bom 2021, paz e saúde, Luitgarde
Ticianeli, este é mais um trecho da História de Alagoas que você dá a seus leitores – agora como grande presente de esperança neste novo ano que nos chega.
Esta foto é uma das mais importantes imagens da história da literatura brasileira. Finalmente vejo José Auto ao lado de Rachel de Queiroz jovenzinha, quase da mesma idade de Dr. Théo Brandão – um dos seres humanos mais dignos e inteligentes nascidos nas Alagoas!
Obrigada pela escolha deste maravilhoso trabalho para nos incentivar a nunca desistir.
Paz e saúde, abraço de bom 2021, Luitgarde