O Entrudo – Vida, Morte e Ressureição

Cena de Carnaval no Rio de Janeiro de Debret

Theo Brandão*
* Publicada originalmente no jornal Diário de Notícias de 5 de março de 1961.

O Entrudo foi a forma de Carnaval do século XIX. E não apenas a forma, mas o nome do próprio Carnaval até essa época.

Frei Domingos Vieira no seu célebre Dicionário define o Entrudo como o tempo do divertimento que compreende os três dias que precedem a quarta-feira de cinzas. É também as festas e divertimentos próprios desse tempo.

De fato, não era outro o nome nos autores antigos. Fernão Soropita, autor quinhentista falava em “honrada festa do entrudo”.

Ainda em 1859, em Alagoas, quando já penetravam as novas formas de divertimentos momescos, se anunciava no Diário de Alagoas (14 de fevereiro de 1859): “Para o Baile Masqué que tem de xxxxx pelo Entrudo”.

Foi, aliás, quando se introduziram tais formas de brincarmos três dias anteriores à quarta-feira de Cinzas que apareceu o nome de Carnaval e com um sentido nitidamente antagonista ao do Entrudo.

José de Alencar, sabidamente uma das personalidades que atuaram na então Corte nessa modificação, numa crônica de 14 de janeiro de 1855 publicada no Correio Mercantil dá-lhe como dos títulos: O Carnaval e o Entrudo.

Vieira Fazenda em uma de suas “Antiqualhas e Memórias”, publicada em 1904, ao explicar os motivos da preferência do povo pelo Entrudo, conclui: “Isto esclarece a relutância em ser aceito o Carnaval que, por fim, venceu depois de aturada propaganda.

É significativa, a este respeito, uma gravura de Angelo Agostini, reproduzida na obra de Eneida: “História do Carnaval Carioca” em que uma figura de Bobo mascarado com o nome Carnaval teve dessa figura que representa o Entrudo.

Carnaval em Jaraguá em 1905 na rua Barão de Jaraguá na antiga Fênix

De que Carnaval, então, era a forma nova de brincar-se. Uma crônica, do Diário das Alagoas de 1859, é explícita: “a proporção que o progresso foi inoculado em nossa sociedade e que a legislação confirmou penas severas contra o abuso e excessos do Entrudo, a população, cedendo à força do exemplo dos países civilizados, começou a banir suas seringadelas e molhaduras. Desde que a Europa oferecia um novo e poderoso substituto, mais de acordo com a razão e consentânea com a moralidade (falamos de Carnaval) não devemos conservar seringas, laranjinhas, etc”.

O Carnaval era então o baile de máscaras — Bal masque — como se dizia, introduzido no Rio em 1840 e em Alagoas, pouco antes de 1859, e os passeios de mascarados, iniciado no Rio em 1855, segundo a notícia dada por José de Alencar na crônica já citada.

O Entrudo era o velho costume português que Júlio Dantas e descrevia na Lisboa oitocentista em que “fregonas” devassos e fidalguilhos peraltas “corriam as ruas debaixo da saraivada de pós de panela, das laranjas de cheiro, da farinha, dos guinchos, dos ovos de gema, de toda a água que jorrava das rótulas estreitas e dos postigos mouriscos“.

Era, portanto, o mesmo Entrudo que Debret viu e fixou na “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” e que Joaquim Manuel de Macedo o descreveu tão bem no Rio de Janeiro dos meados do século XVIII, ao tempo do Vice-Rei Conde da Cunha: “Nas ruas e praças a multidão estrepitosa tresloucava sem medida, os gritos e as gargalhadas, às vezes injúrias e violências, outras vezes passageiras desordens tumultuavam sem perigo a cidade: homens e mulheres de educação desmazelada, ou de costumes livres, com os vestidos rasgados e grudando-se ao corpo, e desenhando as formas, com as caras pintadas de vermelho e negro, com as roupas rotas, os pés nus, corriam, fugindo ou perseguindo, molhando, enxovalhando ou besuntando conhecidos e desconhecidos”.

As diversas modalidades do jogo têm no romancista de As Mulheres de Mantilha, que deve ter presenciado em toda a sua plenitude e exclusivismo a velha usança colonial, em sua mais ordenada descrição. O jogo consistia essencialmente em molharem-se uns aos outros; o exaltamento e o frenesi dos jogadores, uma vez travado o combate não se limitavam à água e com outros meios enxovalhavam como podiam; naturalmente havia no jogo práticas delicadas, práticas rudes e práticas selvagens. A prática delicada adotava o limão de cera cheio de águas perfumadas, e tolerava a seringa esguichando águas da mesma natureza; a prática rude sustentava-se no banho de corpo inteiro dado à força, em grandes gamelões ou barricas de pau, e na aplicação do polvilho ao rosto; a prática selvagem apelava para todas as tintas e até dos jantares no arrojo de caldos gordurosos e com especialidade — arroz de leite — ao rosto e ao corpo dos jogadores.

Entre nós, em Alagoas, como no resto do Brasil, para os três dias do Entrudo mobilizavam os foliões tudo quanto eram vasilhas e recipientes. Pipas, barris, bacias — as velhas bacias floridas de louça de Macau — menorras canecas, apresentavam de perto da janela do Sobrado e das casas de porão para o embate entrudente. E os limões de cheiro, também chamados entre nós de laranjinhas e cabacinhas, fabricavam-se às centenas e guardavam-se carinhosamente para o combate decisivo, quer à distância de ruas para as casas ou de umas para outras, quer de perto, dentro das próprias casas, entre as pessoas do mesmo lar. E, além dos limões de cheiro adquiriam-se nas casas do gênero as seringas de borracha, as bisnagas de metal, algumas em forma de relógio, as garrafinhas de Água Florida, pó de arroz, o talco, o polvilho, o pó de ouro, as tintas, etc., para as práticas rudes e selvagem da classificação de Macedo.

Embora fossem as práticas rudes e selvagens as mais prejudiciais, a verdade é que todas as formas do Entrudo sempre mereceram a condenação das autoridades e das posturas. Vieira Fazenda chega a dar na referida “Antigualhas” as datas dos alvarás e avisos proibitivos do Entrudo: janeiro e fevereiro de 1604, maio de 1612, dezembro de 1608, fevereiro e outubro de 1686, setembro de 1691, fevereiro de 1734, e de 1808.

Não temos notícia, entre nós, em Alagoas, antes dos meados do século passado, dessas proibições. Mas, de certo, teriam também existido e tido noticiadas se nossa imprensa não tivesse nascido senão em 1851, quando já se iniciara na Corte o movimento de substituição do Entrudo pelo Carnaval.

Todos os jornais e personalidades que se empenhavam pela implantação entre nós dos bailes masqués, dos passeios de máscaras, etc., o faziam com a finalidade de dar combate ao Entrudo e com a esperança, às vezes prematura, de que ele havia de desaparecer.

José de Alencar, na sua crônica sobre o Carnaval de 1855 dizia confiante: “depois que o Senhor Desembargador Siqueira, entre tantos outros benefícios que nos fez, conseguiu extinguir esse antigo costume português”. “O entrudo está completamente extinto: e o gosto pelos passeios de máscaras tomou este ano um grande desenvolvimento”.

Carros Alegóricos e troças na Av. da Paz no início do século XX. Foto de Luiz Lavenère

Mas já em 1857, o 2º delegado da polícia da Corte, dr. Antônio Rodrigues da Cunha, proibia o uso do Entrudo e Machado de Assis em 1885, embora para ironicamente o contestar, assim dizia: “Não acabo de entender porque as folhas de hoje, unanimemente noticiam que o Entrudo este ano foi menor que nos anteriores”.

Vieira Fazenda, em 1904, fala do seu ressurgimento no Rio: “o que em boa hora se está fazendo no louvável intuito de debelar o bárbaro jogo do Entrudo, que de há anos vai pondo as manguinhas de fora”. E assim por diante. Cada vez que se noticia sua morte e desaparecimento, o Entrudo cada vez mais forte, ressurge necessitando sempre de novas invenções, brinquedos, modificações para substituí-lo: bailes, máscaras, confetes, batalha de flores, préstitos, zé pereiras, corso, lança perfumes.

Um autor citado por Vieira Fazenda, no começo do século, já percebendo então, embora empiricamente, o fenômeno da dinâmica cultural e de suas alternativas: mudança, resistência à mudança, conservantismo, persistência e reinterpretação, assim explicava o fato das ressurreições do Entrudo: “Próprio é da natureza humana não deixar as práticas seguidas durante muitos anos senão com muito custo e quando as rejeita num momento de cólera ou de desprezo, pouco a pouco volta a esses usos, modos e hábitos, ou quando muito os modifica e transforma mas só na aparência”.

Em Alagoas, o mesmo fenômeno se tem dado: o Entrudo tem vivido a morrer e a ressuscitar.

Mas, já em 1866, apesar de ter já firmado o costume dos bailes e dos passeios de máscaras, o Diário voltava a noticiar o seu reaparecimento: “armados de seringas, molhando a torto e a direito, laranjinhas e limões de cera, à noite na Boca de Maceió, ruas do Imperador, Praia da Maravilha, casas forçadas e invadidas”.

Em 1870, ainda no mesmo jornal, num artigo sobre o Carnaval e o Entrudo, se diz que já há na cidade embates de laranjinhas, águas de cheiro e seringas, e em 1884 o chefe de polícia proibiu o uso das laranjinhas.

Em 1903, em pleno domínio do Carnaval dos Zé Pereiras, dos carros de ideias, das alegorias, dos primeiros clubes populares, torna a botar a cabeça de fora o Entrudo, pois o Gutenberg desse ano noticia que não houve entusiasmo no jogo do Entrudo. “Reaparecem as bisnagas e o Entrudo reconquista seus antigos jogos”.

Bisnagas de zinco e borracha, o pó de arroz, o pó de ouro voltavam a ser consumidos e estavam à venda, segundo o anúncio no mesmo jornal, na loja de Domingos Simões, à rua do Comércio, 138.

Na segunda década do século, menino, em minha cidade natal no interior de Alagoas — Viçosa, tomei parte nas formas delicadas do jogo — as laranjinhas e as seringas e bisnagas de água perfumada e me lembro de ter presenciado, pelos adultos, as formas violentas do Entrudo: as latas d’água jogadas dos sobrados, os assaltos com escadas à residências particulares para molhaduras e enxovalhamento com tintas, piche, polvilho, etc.

Só talvez na terceira década, nos anos 20 — época áurea do Corso, das serpentinas, das batalhas de confetes —, é que parece ter desaparecido entre nós o Entrudo, certamente por sua substituição pelo lança-perfume, então usada apenas para molhar e perfumar, quando não para ferir os olhos dos combatentes. Os combates de lança-perfume foram, então, parece-nos, uma espécie de reinterpretação do Entrudo, isto é, a conservação de uma velha usança sob nova forma, tal como conceitua Herskovits.

E tanto é assim que, tendo perdido o lança-perfume a sua função de estrudar, para tomar nas décadas 40 e 50 a função de anestésico, de bebedeira, de “porre de lança-perfume”, o Entrudo, apesar das constantes afirmativas de que desapareceu, vem ressurgindo cada vez mais intensamente em Maceió, pelo menos.

Na própria época em que historiadores, cronistas e jornalistas alagoanos afirmavam seu desaparecimento, o Entrudo voltava vitorioso no corso de carros fechados da cidade.

Se Abelardo Duarte, em 1955, afirmava: “Mas daquela festança extremamente rude de outrora, do velho Entrudo lusitano, pouco resta. De algumas feições características do velho entrudo libertamo-nos completamente, sobretudo do ato de entrudar, do mau gosto de lançar a fúria indescritível. Levamos muito tempo para vencer e eliminar do Carnaval brasileiro tais costumes”. (Jornal de Alagoas — 20 de fevereiro de 1955); se o jornalista Arnoldo Jambo em sua crônica A Metrópole em Revista, em 12 de janeiro de 1949, informava que “O entrudo por meio das limas de cheiro e do talco já não se vê mais”, a verdade é que pouco tempo depois, em 1956, meus filhos voltavam do corso molhados, empapados de maisena, de colorau, de tinta e as novas bisnagas de matéria plástica, e até os pulverizadores de inseticidas para uso agrícola eram empunhados pela nova geração que ressuscitava o Entrudo nas suas formas mais violentas.

E no último ano — 1960 — o Entrudo chegou ao auge e ao último grau de violência. Baste citar para documentá-lo os seguintes trechos de uma reportagem do Jornal de AlagoasCarnaval da Maisena: “À medida que o povo empobreceu com o aumento do custo de vida, o Carnaval se brutalizava em Maceió. O maior divertimento este ano foi muito menos a música do que outra coisa. As atenções do povo se voltaram exclusivamente, nas ruas, à batalha da maisena, areia e farinha de trigo, isso sem falar no uso de tintas azul e vermelha que também tiveram boa atuação no rosto dos transeuntes. Mas na verdade, este foi um Carnaval da Maisena. A Polícia não proibiu seu uso, pois nenhuma mal pode causar, a não ser quando misturada com soda cáustica, o que foi feito em larga escala. Atitude condenável, entretanto, foi a de procurar, como fizeram muitos foliões, atingir os olhos dos transeuntes”.

Carnaval da Rua do Comércio em 1952

O editorial do mesmo jornal de quinta-feira, 3 de março de 1960: “Considerações de uma quarta-feira de cinzas”, entre outros tópicos sobre o nosso Carnaval, assim descrevia, o Entrudo: “Automóveis e jipes vinham preparados para a batalha: garrafões e baldes d’água, alvaiade e talco e, no meio de tudo, coisas piores. Muita gente, pois, procura se afastar do carnaval de rua, temerosa de ser alvo dos excessos alheios e se refugia no carnaval de salão”.

Há cem anos enterrado e constantemente a ressuscitar, eis que volta o Entrudo como um dos mores de maior resistência à mudança na dinâmica cultural brasileira.

2 Comments on O Entrudo – Vida, Morte e Ressureição

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 6 de fevereiro de 2024 em 16:32 //

    Muito grato, prezado Ticianeli, pela publicação desta reportagem.

  2. Giovanni Jatubá // 6 de fevereiro de 2024 em 22:32 //

    Parabéns pela matéria!
    Histórica, curiosa e atual porquanto, ao meu sentir, o entrudo permanece em nossa sociedade, um costume arraigado, embora, com outros pertados.

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