O comandante do 44 Espada d’Água

Publicado originalmente no livro Companheiro Militão, Livraria Galilei, 1981

Largo do Bom Conselho no Dia da Árvore, 21 de setembro de 1943, atual Praça do Pirulito

Valter Pedrosa

*Publicado originalmente no livro Companheiro Militão, Livraria Galilei, 1981.

O famoso esquadrão do 44 Espada d’Água tem exemplar folha de serviço prestado. Seus membros não usam farda e não possuem emblemas ou brasões identificadores. Não pousam em quartel de espécie alguma, nem cruzam armas nos exercícios de rotina. Todos vivem na mais ampla liberdade, cada qual sendo dono do nariz e fazendo o que bem entende. Em compensação, não recebem soldo ou bonificação de qualquer procedência.

Os espadianos têm as mais diferentes ocupações. Boa parte deles, talvez a maioria, não possui nenhuma. Alguns são desocupados, com filhinhos de papai pelo meio. Outros não dispõem de mãe. Afora os avulsos e penetras de ocasião.

São os bebedores de cachaça da capital alagoana, com ramificações no interior do Estado. Elemento que beba suas pingas como bem quiser. Perseverando no vício do álcool, posteriormente admitido ou absorvido na organização. Ainda autopromovido aos escalões que compõem as células do bravo exército da galhofa e da cana.

Apesar dos erros, falhas e outras aberrações próprios aos engolidores de branquinha, é de reconhecer que havia um mínimo de ordem nas fileiras cambaleantes. O fio indelével unia os componentes, tão diversos quanto dispersos. Pelo menos, a caricatura da entidade.

Presos em 1964 na Enfermaria Militar, atual CSM: José Alípio Vieira Pinto (fiscal do IAA), Rubem Monteiro de Figueiredo Ângelo (advogado) e Valter Pedrosa (Estudante). Agachados: Petrúcio Lages (estudante), Teófilo Alves Lins (jornalista) e Gerson Ferreira de Souza (estudante)

O tipo de regime vigente nas fileiras do Espada d’Água podia ser rotulado de anarquismo. Na base do cada um por si e o diabo por todos. Observados os graus de militância beberrônica, onde antiguidade é posto.

Os iniciadores da carreira na organização, os jovens que tomam um grogue para experimentar o gosto, eram denominados escoteiros. Iam passando a soldado, cabo, sargento, tenente e capitão. Até o comandante, marechal-de-campo. De copo em copo se conquistavam os galardões mais elevados.

Existiam os que bebiam e caíam em seguida, como os do corpo de paraquedistas. Todo membro que ocupasse posição de certa importância na hierarquia, ferido em combate, seria rebaixado de posto. Publicamente, com resenha nos jornais. Caso do capitão avoado que se excedia na dose e terminava a farra debaixo das mesas ou mesmo nas sarjetas. Pau na papada.

O garotão que se metia a pé de cana, bebendo pelos cotovelos. Logo se intitulando alta patente na própria conta. Dependendo da altura do porre.

— Sou major do 44!

Os companheiros presentes aquiescendo, estava feito o novo oficial. Tendo de manter a moral na posição com as lapadas pesadas. Fraquejasse, teria rebaixa da opinião dominante:

— Não passa de cabo.

A carreira assombrosa do frangote de vinte anos. Declarado e confirmado pelos médicos: alcoólatra. Novo Napoleão Malaparte que surgia no âmbito provinciano, heroicamente.

Valeu. Todos aceitaram a promoção precoce e a respectiva patente.

Tenente Fernando.

Também havia os livre-atiradores, os franco-maçãos. Pessoas que não davam pelotas para o tal de 44. Mas envergavam seus títulos honoríficos. Em cada recanto poderia existir um general ou coronel, dos mais legítimos. Completamente desconhecido do comando central, que funcionava na Praça do Pirulito.

O bar chamado Senado, ponto obrigatório do então comandante. Residia bem de frente da birosca, a sede se estabeleceu naturalmente na redondeza.

— Vamos pro Senado.

Não resta dúvida que as grandezas propiciadas pelo álcool têm a sua função. Faz esquecer os males da vida, eleva a moral e as pretensões depois de cada chupão. Cria um mundo à parte para o desgraçado. Se a beberagem é ininterrupta, pode viver realmente no paraíso, sem precisar de aterrissagem.

Valter Pedrosa

A vaga desvantagem de despertar no outro dia ressacado. O grito de guerra para os familiares, após as lutas.

Traz água!

Costumeiramente se saudavam com palavreado peculiar. Alguém de olhar vidrado, trambecando nas pernas, a boca cheia de língua. Na resposta ao companheiro.

— Tudo bão?

— Tou mais alto do que peido de aviador.

Nos anais da corporação registravam-se acontecidos engrandecedores. O caso do tenente Tetinho, que tinha boas possibilidades de rápida promoção. Que nunca curtia ressaca, pelo fato de não parar de beber. Deu para ver a onça o acompanhando.

Tetinho se escondia atrás das árvores da Praça Deodoro, a fera o descobria facilmente. Pegava o ônibus para a Ponta Grossa, lá encontrava o felino. O tenente dizia aos amigos da perseguição da bicha, estalando os dedos para os lados dela. Mansinha.

Olha a onça.

A visão do Isaque, capitão reconhecido de muitos combates garrafais. Dormia bebendo e acordava chupando, para variar. O vidro debaixo da cama, evitar longas caminhadas aos balcões.

Passou a observar o bonequinho preto em cima do guarda-roupa. Esfregava os olhos, para ver novamente. Pensando sozinho: estou ficando doido. Tomava outra bicada para clarear as ideias. O bonequinho descia do guarda-roupa e vinha pular no chão. Subir na cama.

Fato sintomático nas fileiras do Espada d’Água: boa parte dos elementos mais ativos era formada de pequenos funcionários. A começar do comandante-em-chefe, o Luís Filó. O povo identificava nas ruas os personagens: o major Olímpio, o coronel-médico Claudino, o capitão Eraldo, o tenente Bezerra.

Problema frequente e aborrecido: as recusas dos jornais em publicar as notas oficiais da agremiação. Mesmo como matéria paga. Se morria ou fosse promovido um membro emérito, se fazia necessário que a população soubesse. A divulgação dos atos e práticas. Porque o Espada d’Agua podia ter a pior fama, mas era democrático.

Quando alguém praticava e acontecia, tome nota para publicação. Algum jornal estampava esse noticiário, necessário ao bom nome do 44, quase sempre dava em confusão. Os milicos caíam em cima, dizendo que queriam desmoralizar as corporações profissionais. O que era uma grande falta de compreensão.

O problema é que estava às portas da morte o valoroso comandante e marechal-de-campo: o Luís Filó de todos os momentos. Com os motivos relevantes de que permanecia agarrado à garrafa até os últimos instantes. Filó tomava a colher de remédio e lavava a boca com a bicada de aguardente. Bom soldado que sempre fora.

Não adiantava a família esconder os vasilhames que descobria debaixo do lençol. Cada visita que o doente recebia, trazia no bolso o frasquinho de cachaça. Entendiam que o chefe não podia ficar abandonado no campo de batalha e terminar vencido por falta de munição.

Um dia o organismo do Luís Filó deu o basta e o mesmo bateu as botas. Sem apelação, apesar da anestesia permanente.

A maior data de nojo para o tradicional 44 Espada d’Agua. O recém-morrido prestara relevantes serviços à causa, tempo integral às atividades. Colocara em plano elevado o bom conceito da organização no seio da comunidade.

Com tais sentimentos os gambás pegaram na asa do caixão e o levaram à última casa.

— Adeus, Filó.

Reunião extraordinária nessa noite. O bar na Praça do Pirulito regurgitava de cachaceiros, movimento fora do comum. As goelas molhadas, as línguas soltas da tristeza.

Não faltavam oradores. Foi preciso que o subcomandante major Olímpio falasse mais alto, para ser ouvido.

— Atenção, negrada.

O encontro plenipotenciário do Espada d’Agua, homenagem póstuma ao companheiro Luís Filó. O elogio fúnebre do falecido, sua firmeza beberrônica. Elevados méritos de duro na queda, toda a vida incapaz de dispensar uma garrafa de bebida.

O pensamento unânime da corporação pedia uma promoção pós-morte para aquele que se tornara o símbolo do glorioso 44. E que seria lembrado pelas gerações vindouras.

Surgiu o impasse entre os presentes. Que promoção dar ao Filó?

O silêncio reinou no ambiente carregado de fumaça de cigarro e arroto de aguardente. O glu-glu-glu de pequenos sorvos nos copos. O ruído típico de fundo de garrafa no mármore das mesas. Os companheiros pensavam, cascavilhando o interior do cérebro enevoado. Em busca da patente digna do homem.

Luís Filó morrera no cargo mais alto da ativa e da reserva do 44. Para onde elevá-lo? Que merecia a honraria, ponto pacífico. O grande benemérito dera mostras de valentia até na hora da morte, em pleno campo de batalha.

Quando o capitão Eraldo, que tinha certas letras ainda não inteiramente desoneradas pelo álcool, bateu o copo na mesa violentamente. E deu um tapa na própria testa.

Filó será promovido a Duque!

Major Olímpio logo entendeu a ideia.

Duque.

A decisão teve o apoio unânime dos membros presentes e ausentes do 44 Espada d’Água. Sem dissensão. Um direito do finado.

O subcomandante mandou redigir a nota oficial, a ser publicada jornais. Mas que, incompreensivelmente, nenhum órgão de imprensa quis aceitar tal matéria, mesmo a peso de dinheiro. Na certa por falta de bons elementos do 44 nas hostes jornalísticas.

Nota do História de Alagoas

O engenheiro civil Valter Pedrosa de Amorim, nasceu em Murici no dia 13 de maio de 1935, filho de Hermes Calheiros de Amorim e de Lídia Pedrosa de Amorim. Foi morar em Maceió quando tinha 13 anos de idade e graças a ajuda do Padre Teófanes, no Colégio Guido de Fontgaland, concluiu ali o colegial. Foi lá que se iniciou no jornalismo como redator-chefe da revista Mocidade. Ainda estudante, colaborou no jornal comunista A Voz do Povo.

Como teve que trabalhar nos Correios como mensageiro e depois telegrafista, somente conseguiu concluir o então curso científico vencendo as provas do supletivo e em seguida a barreira do vestibular para a Faculdade de Engenharia Civil, de onde saiu em 1964 quando já tinha sido fundada a Ufal. Nesse mesmo ano foi preso pelos militares golpistas.

Depois de formado, trabalhou em Manaus construindo estadas até 12 de julho de 1966, quando foi nomeado Diretor do Serviço Autônomo de Água e Esgoto – SAAE (órgão da Fundação do Serviço Especial de Saúde Pública, FSESP, do Ministério da Saúde) de Palmares, Ribeirão e Gameleira, em Pernambuco, e São Luiz do Quitunde em Alagoas. Em 1969 foi removido para Colatina, no Espírito Santo. Foi dispensado em julho de 1972.

Fez pós-graduação na USP-São Carlos e trabalhou durante um ano na Cetesb, São Paulo. Em 1972 aceitou o convite para trabalhar em Brasília, na Companhia de Saneamento Ambiental do DF – CAESB. Aceito como engenheiro da Organização Pan Americana de Saúde, em 1974 foi designado para El Salvador, onde permaneceu por alguns anos. Aposentado, voltou a morar em Brasília.

Em 1977, ampliava sua formação superior conquistando outro diploma, desta feita em Engenharia Sanitária pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Em Brasília foi chefe da Divisão de Projetos da Companhia de Águas e Esgotos – CAESB, diretor de Planejamento do Serviço de Limpeza Urbana – SLU e consultor da Organização Pan-americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde.

Seus escritos o levaram a ser sócio correspondente da Academia Alagoana de Letras, membro da Academia de Letras Braisiliense e a ser aceito como filiado no Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e na Associação Nacional dos Escritores.

Faleceu em Brasília no dia 16 de setembro de 2009. Seu corpo foi cremado e as cinzas jogadas na Lagoa Mundaú, a seu pedido.

Foi autor das seguintes obras:

– Uma Questão de Consciência, Brasília: Ed. Livros de Mundo Inteiro, 1976 (contos);

– Pau-de-Arara, Brasília: Roteiro Editorial, 1978 (romance);

– Maremoto em Jaraguá, capa de Jair Furtado de Oliveira, Brasília: Livraria Galilei, 1979 (romance);

– A Disposição Sanitária dos Resíduos Sólidos no Distrito Federal. Resumo do Estudo Apresentado Pela Consultec-Saniplan, Brasília: Serviço Autônomo de Limpeza Urbana, 1979, juntamente com José Maria de Mesquita Júnior, Maria Inês de Oliveira Aguiar Barbosa;

– A Conquista da Linguagem – Livro 4 1o. Grau, 2a Edição, São Paulo: Wdt. FTD/Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1980;

– Companheiro Militão, Brasília: Liv. Galilei, 1981 (contos);

– O Fenômeno Hitler, Brasília: Roteiro Editorial, 1982 (crônicas, ensaios);

– Horror nas Alagoas, O Roteiro da Coluna Prestes, O Depoimento do Tenente Agildo Barata, Brasília: Roteiro Editorial, 1982 (crônicas, ensaios);

– Os Homens do Mundaú, Brasília: Roteiro Editorial, 1984 (romance);

– Prestes – Herói e Caudilho, Brasília: Roteiro Editorial, 1987 (crônicas, ensaios);

– Niquinha Minha Flor: Contribuição à Denúncia da Repressão, 1º v., Brasília: Roteiro Editorial, 1990;

– Memórias de Cuscatlán, Brasília: Roteiro Editorial, 1992;

– Pegasus – A Trindade dos Esquecidos, 1993;

– Carro de Boi: A Marcha do Tempo, Brasília: Roteiro Editorial, 1994 (crônicas/ensaios);

– Resíduos Sólidos Urbanos: O Problema e a Solução, Brasília: Roteiro Editorial, 1996;

– Capitão Belo, Brasília: Fundação Cultural do DF, 1998 (romance);

– O Casamento do Bispo, Brasília: Roteiro Editorial, 1999 (contos);

– Aspectos Práticos da Tecnologia do Saneamento Básico, 1o v. Brasília: Roteiro Editorial, 2001;

– A República dos Patifes: Paródia, Ensaios, Brasília: Roteiro Editorial, 2002;

– A Nostalgia do Cerrado, Brasília: Roteiro Editorial, 2003;

– Erivan, Revista da AAL, n. 8, p. 69-73 (ficção);

– Fenômeno Hitler, Revista da AAL, n. 9, p. 85-99 (ensaio);

Participação em várias antologias, entre elas o Conto Candango, 1980, org. de Salomão Sousa.

Publicou, ainda:

– As Características Físicas e Químicas do Lixo do Distrito Federal, juntamente com Maria Inês de Oliveira, in Limpeza Pública, v. 6, no. 15, p. 10-17, 1979, Brasília: Serviço Autônomo de Limpeza Urbana.

– O conto “O Leão Dourado da Montanha”, publicado no livro O Conto das Alagoas, Recife: Ed. Bagaço, 2007, p. 287-294, Carlito Lima/Edilma Bomfim (org.).

6 Comments on O comandante do 44 Espada d’Água

  1. Hermann constant de amorim // 24 de fevereiro de 2025 em 20:22 //

    Muito bom o conteúdo e serve pra enriquecer os nossos conhecimentos parabéns ao idealizador dessa matéria….

  2. Excelente artigo, material precioso da nossa história! Meus parabéns ao ilustre jornalista Edberto Ticianeli pelo primoroso trabalho de pesquisa e agradecimento por nos brindar com essa valiosa peça literária do insigne e honrado alagoano Valter Pedrosa. A propósito, o filho de Valter, Waldo Pedrosa, é meu diletíssimo amigo de algumas décadas aqui em Brasília.

  3. Miguel P Torres // 25 de fevereiro de 2025 em 09:28 //

    Maravilha de história. Saudades dessa época e dessa turma.

  4. Claudio de Mendonça Ribeiro // 25 de fevereiro de 2025 em 12:56 //

    Parabéns, prezado Ticianeli.

  5. Maria Pedrosa // 25 de fevereiro de 2025 em 17:23 //

    Exemplo de homem . Vivemos juntos por cinquenta anos. Vida de muita luta é de belos ideais. A ditadura, tão longa, amputou a nossa vida. Fiquei muito feliz em saber que ele ainda está vivo. Obrigada

  6. Adelaide Maria de Oliveira Reys // 27 de fevereiro de 2025 em 17:38 //

    Como gostei de ler essa matéria!
    Fui colega do Valter Pedrosa lá no DCT na década de 1960.
    Um admirável rapaz !
    Não conhecia o enredo do 44, agora tão bem registado.
    Obrigada Ticianeli por me enviar.

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