O coco e a embolada no Natal de 1902 em Maceió

Jurandir Bozo "puxa" um coco de roda

Bráulio Fernandes Tavares

Publicado no jornal O Monitor, de Penedo, editado por Moreno Brandão. Edição de  18 de janeiro de 1909. O título original: Carta sem Porte.

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Segundo o ABC das Alagoas, o autor nasceu em 1881 em Alagoas e faleceu em Olinda, PE, em 27 de dezembro de 1946.

Jornalista e servidor municipal em Maceió, publicou o importante Relatório […] Sobre as Ruas, Travessas e Becos, Praças e Estradas de Maceió em 19 de agosto de 1911, impresso na Tipografia Comercial.

Após atuar na imprensa em Alagoas, foi morar em Recife, onde chegou a ser o redator secretário do Diário de Pernambuco.

Sócio correspondente do IHGAL, publicou também O Bonde, O Beijo e A Cruz. Impresso na Tipografia Comercial em 1907.

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Sirvo-me desta manhã solarizada e risonha, na frase de Gonzaga Duque, para escrever alguma coisa para o seu jornal em correspondência ao apelo gentil que o seu espirito bondoso e visionário me dirigiu. Era um propósito deixar de escrever para a imprensa, em vista de me sentir invadido de uns tantos aborrecimentos, propósito que já atenho feito diversas vezes, e do qual confrades generosos e bons, como você, me tem afastado como agora sucede com o próximo aparecimento do Monitor, para o qual o ilustre confrade pede a “minha valiosa coadjuvação”.

Há muito que me habituei a amar seu belo espirito operoso e investigador, todo entregue ao ideal literário, como Gustavo Flaubert, dentro da Grande Arte criando essa bela figura de SALAMBÔ ou essa admirável MADAME BOVARY, que despertam na gente sonhos adormecidos e paixões febris.

Daqui ao lhe trazer o meu apoucado concurso mental a minha pena, mandando-lhe, simultaneamente, bocados de minha alma esparsos nestes caracteres, nestes ligeiros grupos que refletem as emoções guardadas bem no íntimo de meu ser, que se escancara para extravasá-las todas nestas linhas desconexas. Pode você contar com meus escritos semanalmente; iniciarei uma secção — Cartas de Maceió — em que lhe contarei, como o sujeito mais bisbilhoteiro desta terra do sururu, as coisas mais interessantes que se passarem por aqui e possam mais ou menos ocupar a atenção do leitor, a quem, desde já, o meu caro confrade deverá interceder por mim, pedindo desculpas pelas faltas porventura havidas nas minhas míseras crônicas.

Professor Moreno Brandão

Em Maceió há sempre algo de nuevo para se contar aos nossos bons dilettanti. Agora, por exemplo, os quatro cantos da nossa pequena urbs fervilham de factos novos e engraçados. O natal tem para isso, a prioridade sobre todas as épocas do ano.

O missivista, porém, pede licença ao leitor para deixar esses fatos para outra vez e lhe falar de outros assuntos.

O tempo está bonito a mais não ser. Apesar de ligeiros aguaceiros que têm caído sobre a cidade, o sol, como uma enorme cascata de ouro, enche a terra com seu imenso e glorioso esplendor.

Há por tudo uma grande e infinita alegria. Como que gente está numa verdadeira epifania de luz, dessas de que fala Gabriel d’Annunzio com as suas sensações e emoções extraordinárias.

Festeja-se o natal de Jesus e dança-se o coco com o mesmo júbilo com que os magos da Caldéia adoraram outrora o formoso bambino num estábulo perdido de Nazaré.

Quem não dança o coco em Maceió não sabe o que é o natal. O coco entre nós constitui o chic, o smartismo de todas as classes sociais.

Coco de Roda

Raramente se encontra aqui quem não saiba dançar o coco e cantar a embolada. Os lanceiros, os pas-de-quatres, os cotillons e outras danças austeras ficam anuladas por agora, e o coco, como um senhor absoluto e despótico, tripudia sobre todas elas, galhardamente, disputando entusiasmos, causando sensações novas e acordando aos poucos recordações que se tinham guardado há tanto. Essas cantigas, esses sons, esses embalos maviosos que custam a passar, já não são, entretanto, tão animados e entusiásticos como a seis anos atrás. É desse tempo que eu vou falar, porque dele eu tenho agora tantas recordações, que não as posso dizer todas. Já lá se vão cerca de seis anos.

O natal batera-nos à porta festivo como nunca se vira.

Um grupo de rapazes formara um clube denominado Cosmopolita, com o fim de dançar o coco em diversas casas escolhidas. Organizamos também o nosso clube, os Bigús. Éramos ao tudo oito: eu, Alves de Amorim, Antônio Bernardes, Manoel Baêta, Hilário Coelho, Aristóteles Amorim e outros, todos com cara de boêmios incorrigíveis com os de Mürger. Os Cosmopolitas estreariam na véspera de natal. Procuramos saber a casa; e à noite, na maior animação do samba, invadimos o salão que se achava à cunha, como se fossemos um bando de Cara duras. Houve manifestação de riso, e o acolhimento não podia ser melhor, maximé por parte do madamismo. A nossa estreia foi então um verdadeiro sucesso. Dançou-se, cantou-se, recitou-se e discursou-se a valer. De vez em quando um de nós era pegado para o posto do sacrifício, segundo a expressão em voga.

O pinho gemia a Dalila e o verso cachoeirava sadio, forte, rítmico, como uma soberba caudal por entre o silêncio de algum vale. Nessa mesma noite unimo-nos aos Cosmopolitas, e o que foi esse natal extraordinário, na estreiteza de uma crônica, dizer não pode o cronista…

Basta adiantar que dançamos dezoito noites a fio.

Houve conquistas, namoricos, paixões barulhentas, ciúmes, choros, cabeças inchadas, um horror de futilidades que em dadas ocasiões aparecem sempre entre os dois sexos.

Ainda me lembro da Lauroá. uma certa loura que levou uma noite inteira a dançar com o missivista, sem dar ouvidos ao escândalo que estava provocando por entre o seu sexo, onde já havia gente a quem eu segredava uns tantos madrigais.

Deus meu! Quanto tempo perdido! Mas, em compensação, quanta sensação, quantas emoções suaves, quantos sonhos e ilusões alimentados através dessas noites fugazes, ao som das emboladas, para depois tudo acabar e voltar às vulgaridades da vida!

Dezoito noites! Como que nos achávamos presos a um desses sonhos de alucinado.

Coco de Roda em quilombo em Natal

Uma vez despertamos. Todos achacados. Esgotamento nervoso, dispepsias, o diabo, em summa, trepara em o nosso costado. Mas o coco e o resto compensaram os males.

O tempo passou; entretanto de tudo aquilo lembrei-me assim com uma grande saudade ao rabiscar esta carta ao despertar, após ligeiro sono, sob o peso fatigante de uma ressaca que apanhei num coco havido na casa do Coronel Salustiano Sarmento.

Relevem os leitores esta xaropada, e com o Moreno Brandão aceitem os meus votos de felicidades no ano de 1909.

Maceió, dezembro – 1908.

Fernandes Tavares

3 Comments on O coco e a embolada no Natal de 1902 em Maceió

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 21 de novembro de 2023 em 12:03 //

    Parabéns, mais uma vez, prezado Ticianeli, pela publicação desta extraordinária reportagem.

  2. Maria de Lourdes Lima // 21 de novembro de 2023 em 13:04 //

    Muito válido, Ticianeli, este documento de época a revelar o cosmopolitismo do nosso cronista, por volta de 1908. Data em que o meu pai fazia 1 ano de idade. Uma das suas heranças, a sua paixão pelo coco e pela embolada.

  3. Excelente trabalho
    O Folclore alagoano agradece o relato

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