O carnaval pernambucano de 1936

A originalidade de suas músicas e danças-marchas eletrizantes na coreografia típica do frevo

Troça no Banho de Mar à Fantasia na Av. da Paz, Maceió, em meados da década de 1950

De Eustorgio Wanderley

*Especial para O Cruzeiro, publicado em 22 de fevereiro de 1936.

Já houve quem dissesse ser o Brasil um país “essencialmente agrícola“. Entretanto, importamos ainda a farinha do pão que comemos…

Seria mais acertado dizer que o nosso país é visceralmente carnavalesco; pelo menos nos dois primeiros meses do ano e até nos três primeiros meses, quando o calendário marca o Carnaval em março.

E, se a loucura coletiva empolga o brasileiro nessa época, há, um ponto do país em que ela se apresenta de maneira bizarra e original: é em Pernambuco. Por um natural contágio, dada a vizinhança de território, a endemia se estende para o norte e para o sul, contaminando os estados limítrofes de Paraíba e Alagoas, onde os motivos musicais do Carnaval pernambucano têm forte repercussão e se reproduzem, com pequeninas variantes, os “passos” coreográficos que acompanham a música saltitante e brejeira das marchas recifenses, no seu ritmo sincopado e “gingante“, com inesperados efeitos harmônicos, decorrentes da melodia original.

Frevo nas ruas de Recife

Em quase todos os lugares onde o povo vem à rua durante os festejos carnavalescos, a maioria se limita a ver, divertir-se vendo a alegria dos outros que cantam, que dançam, que gritam, que correm…

Em Pernambuco, não é assim: A maioria “entra no brinquedo“, forma o que ali se chama o “frevo“, e que deve ser uma corruptela da palavra fervor, devoção com que o povo se entrega aos folguedos carnavalescos, ou, talvez, de efervescência, ebulição daquela “onda ” humana, fremindo de alegria e prazer.

Nessas notas despretensiosas quero render uma homenagem merecida a um velho companheiro de lides jornalísticas e teatrais, o dr. Oswaldo Almeida, antigo redator do “Jornal do Recife“. onde, sob o pseudônimo de “Paula Judeu“, manteve, com brilho, durante muitos anos, a secção carnavalesca.

Foi ele um dos grandes animadores do “frevo“, senão o criador do neologismo que, parece, já está registrado como um dos verbetes do dicionário da língua nacional.

Por sua iniciativa foi convocado um Congresso Carnavalesco onde, paradoxalmente, se tratou de muita “coisa séria“, referente ao reinado de Momo. Fez-se o congraçamento de vários clubes que eram inimigos e hoje, ao se defrontarem, cruzam, fraternalmente, os estandartes, ao contrário de outrora, em que um encontro era motivo de conflito, pois a fanfarra de um pretendia “abafar” a do outro, e nenhum dos dois queria ceder passagem livre ao adversário.

Ficou bem definido o que caracteriza um clube pedestre, uma “troça“, um bloco, um clube alegórico e de críticas, etc. A “troça“, grupo de foliões sem figurino uniforme, com uma fanfarra modesta, sai à rua pela manhã, recolhendo-se cedo, pouco depois do meio-dia, ou, quando muito, às duas ou três horas da tarde.

O clube ou cordão sai à rua à tarde com os sócios uniformizados, grande fanfarra, rico estandarte, etc.

O bloco não tem fanfarra e sim orquestra de corda: violões, bandolins, cavaquinhos, violinos, flautas e seus componentes: moças e rapazes cantam suas marchas.

O clube alegórico e de críticas tem carros cenográficos, “comissões de frente”, criticas, etc.

Voltando, porém, aos “clubes pedestres” ou cordões carnavalescos, são eles a maior alegria do carnaval pernambucano.

Têm nomes bizarros, lembrando profissões, como: Lenhadores, Caiadores (um dos mais antigos, senão o veterano dos clubes), Empachadores, Espanadores, Vasculhadores, Toureiros, Vassourinhas, etc.

Dando uma amostra do carnaval pernambucano, foi organizado nesta capital e se exibiu, com ruidoso sucesso, no ano passado, um “Club dos Vassourinhas“, ostentando riquíssimo estandarte bordado a ouro sobre pelúcia, nas oficinas da Casa Sucena, e executando, por uma numerosa fanfarra, as mais vibrantes marchas recifenses, o que arrastou grande multidão por onde passava o clube, todos contagiados pela vivacidade da música, fazendo os “passos do frevo“.

Passistas no carnaval de Recife em 1947, Foto de Pierre Verger para a revista O Cruzeiro

Este ano [1936] espera-se que o clube torne a se exibir, tendo já feito, há dias, uma luzida passeata, durante a qual arrancou fartos aplausos do público.

Não é possível descrever os passos do “frevo”, pois são complicadíssimos e executados ora individualmente, ora em formação de filas, dando-se os braços os “dançadores”, formando longas cadeias (chaines) que o povo, na sua pitoresca pronuncia, denomina chans.

E marcham, assim, de braço dado, empinando o ventre, e que chamam fazer “chan de barriguinha“, ou curvando o dorso, em sentido contrário a esse primeiro passo, dando a esta chan uma denominação mais ou menos… rebarbativa…

Durante horas seguidas percorrem quase toda a cidade, dançando, indo e vindo, avançando e recuando, rodando sobre si mesmos, agachando-se e erguendo-se, ora em um pé só, ora saltando, com ambos os pés, fazendo, enfim, mil cabriolas, volteios e contorções, sempre com um sorriso de satisfação nos lábios e um brilho de prazer nos olhos vivos. Depois desse esforço sobre-humano nenhum parece fatigado e se sente tão bem disposto pela madrugada como no momento em que começou a “fazer o passo“, às 2 ou 3 horas da tarde!

Passistas no carnaval de Recife em 1947, Foto de Pierre Verger para a revista O Cruzeiro

E a prova de que ninguém cansou é que no dia seguinte recomeçam todos a mesma brincadeira, e assim vão eles até ás últimas horas da terça-feira do Carnaval, que são, aliás, as primeiras da quarta-feira de Cinzas, sempre de aspecto jovial e lampeiro, demonstrando uma extraordinária energia, não somente os homens como as mulheres, se não são elas as mais resistentes…

Admirável é também que naquela verdadeira “onda” humana, comprimindo- se, acotovelando-se, pisando-se, empurrando-se, durante horas a fio, não há um atrito, um desaguisado, uma escaramuça.

Quando algum quer “estranhar“, e faz uma provocação, ou atira um insulto, dois, três, quatro, dez o seguram e o contém, dizendo que “carnaval é aquilo mesmo, quem não quiser se machucar que não venha à rua” ou “não caia no frevo“..

E o brigão, ainda que queira, não pode porque não acha com quem brigar. Ninguém lhe dá importância. Todos estão preocupados com o “passo, com o ritmo, com a música. E a harmonia da fanfarra estonteante não permite que haja “desarmonia” entre os adeptos do “frevo”. Toca para a frente!

Completando estas linhas, publicamos a música de uma das mais esfuziantes marchas carnavalescas pernambucanas, composição do jovem Lourenço Barbosa (Capiba), e premiada com o 1º lugar em um concurso de marchas de Carnaval instituído pelo velho órgão da imprensa brasileira, o Diário de Pernambuco, o mais antigo da América Latina.

1 Comentário on O carnaval pernambucano de 1936

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 24 de janeiro de 2023 em 14:36 //

    Prezado Ticianeli, só tenho a agradecer, mais uma vez, a publicação dessas reminiscências…
    Tempos idos e vividos…
    Fraternal abraço,
    Claudio Ribeiro – C. Abreu, RJ,

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