O assassinato de Maria da Conceição pelo enciumado dr. Câmara Sampaio
O dr. Bernardo José da Câmara Sampaio chegou a Maceió em abril de 1902 como médico substituto da Escola de Aprendizes Marinheiro. Cumpria designação do Ministério da Marinha.
Nascido no dia 1° de setembro de 1868 em Água Preta, Pernambuco, era filho do advogado cearense Mendo de Sá Barreto Sampaio (22/01/1839 – 02/01/1887) e de Catharina Eulalia de Câmara Sampaio (1846 – 21/10/1926). Mendo de Sá, que recebeu o bacharelado em 24 de novembro de 1862, perdeu a visão no final da década de 1870, mas continuou a advogar.
Seus avós paternos era Antônio Manoel Sampaio e Antônia Porcina de Sá Barreto. Sua mãe era filha do político pernambucano Bernardo José da Câmara, o Barão de Palmares (19/01/1807 – 29/09/1878) e senhor do Engenho Central de Cuiambuca, no município de Água Preta, Pernambuco, e de Maria Eulalia Nobre de Miranda (1818 – 15/01/1892).
O dr. Câmara Sampaio teve uma formação médica atribulada. Iniciou o curso em 1888 na Faculdade de Medicina da Bahia, mas interrompeu os estudos para cuidar de um engenho da família. Quando resolveu voltar à Faculdade, o fez de forma incomum: passava seis meses no engenho trabalhando e estudando e seis meses em Salvador, na Bahia, se submetendo aos exames.
Não foi possível determinar a data da sua formatura, mas em maio de 1898 ele foi um dos quatro aprovados no concurso para médicos da Armada, a Marinha de Guerra Brasileira. Foi nomeado em 16 de maio de 1898 como médico de 5ª classe com a patente de 2º tenente.
Em 1900 estava servindo no cruzador torpedeiro Typy. No ano seguinte, em 22 de maio, foi nomeado para servir no cruzador Tiradentes. Ainda em 1901, no dia 1º de julho, foi transferido para cruzador-torpedeiro Tymbira.
Permaneceu em Maceió como médico da Escola de Aprendizes Marinheiro entre 1902 e 1904, quando foi transferido para igual função no Ceará. Meses depois já estava na mesma Escola em Recife.
Em 9 de agosto de 1905 foi promovido a cirurgião de 4ª classe com a patente de 1º tenente. No ano seguinte era citado como capitão-tenente, médico de 3ª classe.
No final de abril de 1907, foi transferido do cruzador-torpedeiro Tymbira para o cruzador Tiradentes e, em junho assumiu a chefia da enfermaria da estação de Mato Grosso.
Ainda em 1907 foi ampliar seus estudos médicos na Europa (em Paris e Viena), de onde somente retornou, definitivamente, em 29 de outubro de 1910. A ordem para o retorno ao Brasil de todos os oficiais que estavam na Europa há mais de dois anos foi emitida em agosto de 1909 pelo ministro da Marinha.
Em 4 de abril de 1914, já como capitão de corveta — havia sido promovido por antiguidade no dia 7 do mês anterior —, era o oficial médico a bordo do cruzador República, que realizava exercícios no litoral do Rio de Janeiro. No ano seguinte, em 4 de julho, estava embarcado no couraçado Floriano.
Faleceu às 21h30 de 20 de dezembro de 1915, “vítima de influenza complicada de arteriosclerose”. Estava na casa do seu tio, o dr. Barreto Sampaio, na Rua da Saudade, n° 25, em Recife. Já tinha sido promovido ao posto de capitão de fragata. Era solteiro e tinha 47 anos de idade.
O primeiro crime
Foi no período em que estava tomando conta do engenho da família que Câmara Sampaio começou a apresentar as primeiras alucinações paranoicas. Desconfiava que os amigos queriam matá-lo. Levado a morar em Recife, lá foi convencido a retomar os estudos de Medicina na Bahia.
Assim, movido por esta intenção, no dia 2 de maio de 1895 procurou sua noiva, Josephina Soares do Amaral (tinha 20 anos de idade), em casa de seu pais, comerciante José Soares do Amaral e Francisca Brazilina de Lima Amaral, residentes à Rua do Riachuelo, na Boa Vista, em Recife. Os jornais locais descreviam Josephina como uma das mais belas jovens de Recife.
Explicou ao pai dela que pretendia casar-se o mais breve possível, pois estava de partida para a Bahia, onde concluiria seu curso médico, mas que ainda não tinha recursos suficientes. Solicitou então que José Soares do Amaral assumisse os custos do evento, no que foi prontamente atendido e assim definiram a data do enlace.
No dia seguinte, 3 de maio, Câmara Sampaio voltou à casa da noiva, desta feita acompanhado por dois companheiros. Pediu para ter uma conversa com Josephina e sua avó na sala de jantar. Lá comunicou à jovem que somente casaria depois de formado. A moça pôs-se a chorar, o que levou seu pai até o ambiente onde estavam.
Câmara Sampaio declarou-se um infeliz e pediu ao pai da noiva que voltasse à sala de estar, onde iria em seguida explicar o que estava acontecendo. Assim que José Soares do Amaral se afastou, Câmara pediu a avó de sua futura esposa que fosse chamar um dos companheiros dele.
Ao ficar sozinho com Josephina, abraçou-a e estando ela imobilizada, vibrou forte punhalada em suas costas, atingindo um dos seus pulmões. Ela gritou atraindo novamente seu pai. Intimado por um oficial de linha que se achava na sala de visitas a depor as armas, jogou no chão o revólver e o punhal sem opor a menor resistência. O porte do revólver fez surgir a especulação sobre o seu possível uso num suicídio.
Com a presença de mais quatro praças de linha, foi efetuada sua prisão em flagrante. Em seguida, levado até o 1º Distrito, da Boa Vista, foi entregue ao subdelegado, tenente Meira, que o conduziu à Detenção.
A vítima foi levada ao hospital em estado gravíssimo, conforme exame de corpo delito realizado pelos doutores Pontual, Ermírio Coutinho, Arnóbio Marques e Seve.
Josephina recuperou-se da punhalada e no início de 1896 casou-se com Alfredo Mauricéa.
Câmara Sampaio, na Detenção, sofreu linchamento público da sua imagem. A imprensa e a opinião pública ficaram contra ele. Permaneceu por vários dias incomunicável, sem cama e sem o menor conforto. Durante alguns momentos, até água lhe negaram.
Quando a família conseguiu contato com ele, estava completamente desvairado. Havia tentado o suicídio ingerindo vidro, fósforos ou jogando a cabeça contra a parede. Queimava-se com o café quente que lhe era servido.
Um dia, conseguiu saltar de uma altura de dois andares sobre o ladrilho da Casa de Detenção e esteve à beira da morte. Como consequência de trauma em um dos pés, passou a manquitolar pelo resto da vida.
Essa situação levou a opinião pública a voltar-se em seu favor. As autoridades também perceberam a situação e um parecer médico o considerou irresponsável. Dois juízes o despronunciaram e o Tribunal Superior de Pernambuco confirmou as decisões.
Ficou sob os cuidados e vigilância da família, que decidiu interná-lo em um hospício, o que não ocorreu por ter ele implorado, com apoio de alguns familiares. Foi então levado ao Rio de Janeiro, onde teve mais duas crises nervosas, uma delas tratada pelo seu tio, dr. José Hygino Duarte Pereira.
Em Maceió
Transferido para a Escola de Aprendizes Marinheiro de Alagoas em 1902, solteiro e morando sozinho, contratou os serviços de uma pobre senhora, Ritta Francina de Siqueira Bittencourt, incumbindo-lhe de lavar e passar suas roupas.
Morava ela na Rua do Lyceu, n° 16, casa de propriedade do dr. Pedro Soares. Era o trecho da atual Rua Marechal Roberto Ferreira, entre a Praça Sinimbu e a Av. Buarque de Macedo. Foi também Rua Clarêncio Jucá.
Natural de Limoeiro de Anadia, Ritta Francina, separada de Joaquim Bittencourt, vivia em Maceió com suas filhas, entre elas a penedense Maria da Conceição Bittencourt, de 27 anos de idade e viúva do também penedense e ex-soldado de polícia José Vicente.
Era “de cor moreno claro”, tinha estatura mediana e “cabelos negros e bonitos”, segundo descrição do Gutenberg. Não era analfabeta como a mãe. Chegou a estudar no Curso Normal, que funcionava então no mesmo prédio do Liceu Alagoano.
Câmara Sampaio apaixonou-se por Maria da Conceição e a tomou como amante, vivendo maritalmente com ela. Dessa relação nasceu Maria Eulália da Câmara Sampaio, que foi legitimada por seu pai. Recebeu o mesmo nome da sua avó. Seu padrinho foi o médico dr. Pedro Soares.
Em Maceió, além de prestar serviços à Marinha, também estabeleceu clínica oftalmológica. Era então o único profissional nessa especialidade na capital.
Em 1904, Câmara Sampaio aceitou trocar de Escolas de Aprendizes Marinheiro com o colega dr. Wenceslau Magarão, transferindo-se com a amante e filha para o Ceará. Lá, no dia 8 de dezembro desse mesmo ano, voltou manifestar desequilíbrio. Essa crise o fez ser transferido para Recife, provocando a sua separação da mulher e filha, que voltaram a morar em Maceió.
Dias depois, durante o carnaval de 1905, o dr. Câmara Sampaio viajou a Maceió para visitar a amante. Foi numa das noites de folia que soube por um amigo que Maria da Conceição havia recebido um mascarado em sua residência, uma casa alugada na Rua Barão de Jaraguá.
Esse amigo era um jovem empregado do comércio, que fora incumbido pelo médico de vigiar Maria da Conceição quando ele não estivesse em Maceió. Soubesse depois, que ele tentou conquistar a vigiada, mas fora repelido.
Segundo comentários nos jornais da época, teria sido esse mesmo “olheiro” o responsável por gesto de vingança contra a mulher que o rejeitou ao enviar anonimamente uma carta ao dr. Cândido Sampaio relatando que sua amante contratara um cabo do 33° Batalhão de Infantaria, conhecido como Cabussú, para assassiná-lo. Esse ocorrido foi parcialmente confirmado pelo dr. Pedro Soares, que disse ter o dr. Câmara Sampaio perguntado a ele se conhecia um cabo com esse nome.
Uma carta publicada no Gutenberg de 15 de novembro de 1905, assinada por alguém que se identificou somente como “um mascarado”, apresentou explicações para a tal visita de um mascarado à casa de Maria da Conceição.
“Antes do Carnaval, o escritor d’estas linhas tomou parte num grupo de mascarados, compondo este de (3) três somente e todos bem conhecidos pela vizinhança de d. Conceição que nesse tempo morava na rua Barão de Jaraguá e era d. Leopoldina Mendes e sua família com quem manteve o grupo (dos três) decorosa palestra, isto mesmo na calçada da casa onde morava d. Conceição e d’aí nos retiramos. Portanto, em vista da presente, que peço-vos publicidade, desejo que fique provado que os três mascarados não penetraram na casa de d. Conceição nem também palestraram com a mesma”.
Foi após saber dessas informações que o dr. Cândido Sampaio fez crescer os desencontros do casal, não havendo mais tranquilidade entre eles. Era comum, quando discutiam, a ameaça de morte. Segundo depoimento da mãe da vítima, repetidas vezes o médico declarou que, por ciúmes, mataria Maria da Conceição e a filha.
Ainda em 1905, houve uma tentativa do casal em morar na capital pernambucana. Por poucos dias habitaram uma casa na Rua de São Jorge. Não deu certo e ela voltou a Maceió. Alguns meses depois houve nova tentativa do casal se estabelecer em Recife, desta feita na Rua da Aurora, nº 9.
Os frequentes desentendimentos fizeram com que Maria da Conceição abandonasse a casa. Cândido Sampaio ainda esperou pela volta dela e como não aconteceu, passou a procurá-la por toda a parte dizendo que ela estava sendo protegida por 11 pessoas especialmente indicadas para isso e que todos os criados do seu tio, dr. Barreto Sampaio, eram auxiliares desse grupo.
Um dos empregados, de nome Cosmo, era o encarregado de ocultá-la. Um dia, quando discutia com ele, viu o cocheiro (boleeiro) da casa do seu tio saltando um muro e imaginou que com ele estava uma mulher vestida de branco.
Saindo da casa esse cocheiro para apanhar o penúltimo trem da noite para Olinda, Câmara Sampaio o interrogou sobre a mulher vestida de branco e em seguida lhe desfechou três tiros. Depois, se dirigiu ao seu tio e contou o que aconteceu na presença do engenheiro dr. Pedro Santos, da Great Western. Tudo delírio. Na verdade, não tinha acontecido nada disso. Não houve tiro algum e o cocheiro estava vivo e sem saber de nada.
Antes de embarcar para Maceió em busca da amante, no início de novembro de 1905, esteve pela última vez com o tio, dr. Barreto, e lhe disse: “Padrinho, o sr. está auxiliando meus inimigos! Essa mulher foi ao seu consultório e pediu-lhe alguma coisa. Jura por sua filha que não conhece essa mulher?”. Disse ainda que Cosmo era quem a guardava e que o cocheiro Rogério estava a serviço dela.
Em Recife, mentiu para seus superiores dizendo que iria ao interior do estado, mas no domingo, 5 de novembro de 1905, estava em Maceió “visitando amigos”, como noticiou um dos jornais da capital.
No dia 9, quinta-feira, esteve no Gutenberg e conversou demoradamente com o redator-chefe, J. Goulart de Andrade, revelando que pretendia levar Maria da Conceição e a pequena Maria Eulália até Recife e depois para o Rio de Janeiro, onde planejava prestar seus serviços à Armada.
Na sexta-feira, dia 10, às 10 horas da noite, quando parte da população da capital se divertia nas festas em louvor a São Benedito, circulou a informação que um médico matara uma mulher nas imediações do Lyceu de Artes e Ofícios, na Praça Euclides Malta, atual Praça Sinimbu
O assassinato de Maria da Conceição
Naquela mesma noite (10 de novembro de 1905), o dr. Câmara Sampaio visitou seu amigo dr. Pedro Soares de Albuquerque, tenente médico do Exército, que recebeu suas despedidas. Em depoimento, o dr. Pedro Soares informou que percebeu no amigo muita preocupação, ao falar insistentemente em sua companheira.
O que o dr. Pedro Soares não sabia — soube depois pelo depoimento da mãe da assassinada — era que o colega médico também acreditava que ele tinha um caso com sua amante e que a visita que recebeu era para assassiná-lo, da mesma forma que foi procurado após o crime. Essa possibilidade é confirmada pelas palavras do dr. Câmara Sampaio enquanto esfaqueava a vítima: “Toma o que o Soares te mandou!”, gritava.
Perto das 10 horas da noite, Câmara Sampaio retornou à casa. Maria da Conceição estava sentada numa cadeira, de costas para a entrada da residência, enquanto sua mãe preparava café na cozinha. Alucinado pelas suspeitas de traição, sacou da bengala um estoque e passou a ferir a infeliz mulher. Entre as onze perfurações, uma foi fatal, a que atingiu o pulmão, provocando hemorragia interna.
Em pânico, a mãe, com 60 anos de idade, correu até a rede estriada na sala, retirou a menina Maria Elisa da casa e saiu pela rua a gritar por socorro: “Acudam, minha gente, que o dr. Câmara Sampaio está esfaqueando minha filha!”. Entregou a neta a uma conhecida e voltou à sua casa para socorrer a filha, mas já a encontrou morta.
O assassino fugiu e procurou, nas proximidades, a casa do amigo dr. Pedro Soares, onde chegou de revólver em punho, dizendo ter disparado duas vezes contra a companheira. Pedro Soares tentou convencê-lo a lhe entregar a arma, sem sucesso. Um vizinho e também médico do Exército, Dr. Manoel S. de Sá, ouvindo a conversa sobre a entrega da arma, se aproximou e conseguiu persuadir o assassino a desarmar-se, momento em que percebeu que todos os projéteis estavam íntegros, sem disparo algum. Câmara Sampaio permaneceu ali, agitado, até o amanhecer.
Às 7 horas da manhã, um mensageiro do dr. Pedro Soares foi até a casa do Capitão do Porto, capitão-tenente Henrique Thedim Costa, e lhe comunicou onde estava o criminoso. Imediatamente foi mobilizado o 1º tenente Wenceslau Magarão para que o conduzisse ao quartel do 33º Batalhão de Infantaria.
Demonstrando o desequilíbrio mental que o acometera, Câmara Sampaio solicitou ao Capitão do Porto autorização para, antes de ser detido, ver o cadáver da assassinada no Necrotério. O pedido foi negado.
Já no quartel, enviou um portador à casa onde residia a mãe da vítima para recolher o baú com seus pertences e lhe entregar 140$000 para o enterro, que deveria ter grinaldas com seu nome e de sua filha. A mãe não atendeu ao seu pedido e recusou o dinheiro, dizendo que sua filha seria enterrada como desvalida, pela caridade.
Os 140$000 foram enviados, então, para o 1º Comissário da Capital com a as mesmas indicações de uso, acrescentando os dizeres das fitas das grinaldas, que seria: “A adorada Conceição. Saudades do Sampaio”; “A querida mamãe, Saudades da Neusinha”; “Saudade de sua irmã Maria das Dores”; e “A boa filha, Saudades eternas de sua mãe”.
Durante a apuração do crime, soube-se que Maria da Conceição, naquela mesma sexta-feira, após ter acertado com o companheiro a separação, fora com ele até a na Estação Central da Great Western para despachar sua bagagem com destino a Viçosa, para onde embarcaria no dia seguinte. Pretendia chegar à Palmeira dos Índios.
Sete dias após o episódio, Câmara Sampaio continuava agitado, sem se alimentar, bebendo apenas café. Lavava constantemente as mãos e o rosto, que após o crime ficaram sujos de sangue. Segundo o jornal Gutenberg, tomava banhos frios e estava ficando abatido, sofrendo crises nervosas, em que chorava como uma criança.
Não conseguia dormir direito e dizia aos amigos que morreria antes do julgamento para não se submeter àquela humilhação. Sustentava que havia constituído advogado unicamente para que encontrasse os meios de entregar sua filha Maria Eulália à sua mãe em Recife.
Afirmava que Maria da Conceição não havia morrido e ficava com raiva de quem afirmasse o contrário.
No dia 16 de novembro, quando seria transferido para a Enfermaria Militar, recebeu a visita de familiares de Recife, que chegaram a Maceió a bordo do paquete Jaboatão. Vieram duas irmãs, um irmão e uma sobrinha. Ficaram hospedados no Nova Cintra, na Rua do Sol. Quando recebeu as irmãs, não conseguiu dizer nada, apenas chorou copiosamente.
Em 6 de fevereiro de 1906, o Gutenberg publicou reportagem sobre a visita à sua redação do oculista pernambucano dr. Barreto Sampaio, tio e cunhado do dr. Câmara Sampaio, que estava em Maceió, com familiares, para visitá-lo.
Durante a conversa com o redator-chefe J. Goulart de Andrade, o médico afirmou não ter dúvidas sobre a irresponsabilidade do sobrinho ao cometer o crime. Calçava sua afirmativa revelando que Câmara Sampaio, oito anos antes, já tivera envolvido em outro caso de ferimentos a uma outra mulher, sua noiva.
Explicou que nesse episódio, três distintos médicos, entre eles o dr. Ermírio Coutinho, especialista em doenças nervosas e médico do Asilo de Alienados de Recife, após repetidos exames diagnosticaram que o agressor era portador de uma encefalite periférica incipiente.
Tanto o dr. Ermírio, quanto o dr. Lisboa Coutinho, consideram-no irresponsável. O dr. Lisboa, entretanto, identificava nele um caso de epilepsia.
Concordavam que ele mataria outras pessoas por ter sentimentos afetivos acompanhados de exagerados ciúmes, “tudo dirigido por um cérebro sujeito a perturbações intermitentes e graves”, que podiam ter origem na “demência da mãe como da ferocidade de uma madrasta”.
Avaliava que da mesma forma que apunhalou a noiva, daria a própria vida por ela. “Ultimamente eliminou do convívio humano a mulher por que tinha um amor excessivo e que se refletia poderosamente numa pequena filha”.
O julgamento
Após as diligências, no dia 17 de novembro o promotor público da capital, dr. Ferreira Pinto, recebeu os autos. Quatro dias depois o denunciou como incurso no artigo 294 do Código Penal, crime de homicídio.
Os advogados Virgílio Antonino e Demócrito Gracindo foram contratados para promoverem a defesa do médico pernambucano.
Na quinta-feira, 23 de novembro, às 11h40, começaram os depoimentos das testemunhas do crime diante do Juiz Substituto da 2ª Vara da Capital.
O primeiro a depor foi José Joaquim Ribeiro, um auxiliar do comércio que disse estranhar ser chamado para depor, argumentando não saber nada do episódio, por estar no momento do crime participando de uma festa de São Benedito. Confirmou que esteve após o crime com a mãe da vítima, mas que nada conversou com ela.
Concordou com o juiz ao afirmar que a voz pública dava o dr. Câmara Sampaio como o assassino de Maria da Conceição. Nesse momento foi interrompido pelo réu, que retrucou dizendo que talvez alguém tivesse matado uma mulher qualquer e propalado que ele assassinara sua amante. Ao fim afirmou que Maria da Conceição estava viva.
Foram realizadas ainda audiências nos dias 25 e 28 de novembro. No sábado, 28, foi ouvido o testemunho do dr. Pedro Soares, a quem o dr. Câmara Sampaio acusou de assacar infâmias contra ele, indicando-o como o assassino de Maria da Conceição estando ela viva. Pediu ao juiz para riscar as palavras compadre e amigo que o dr. Pedro dissera no início do interrogatório.
Quando o dr. Pedro saía do recinto, o dr. Câmara investiu contra ele, sendo contido pelo alferes comandante da guarda, dr. Secundino de Sá, e pelos militares, coronel Joaquim Alvin e capitão Manoel Vieira Sampaio.
Descontrolado, o médico caminhava de um lado para outro gritando: “Horror! Miséria!”. O dr. Secundino tentou acalmá-lo e ouviu: “Sr. Sá, faça o obséquio de deixar-me! Deixe-me só com a minha desgraça!”. Em seguida, rasgou as roupas e correu para a área ajardinada adjacente, onde permaneceu correndo e gritando que não queria mais estar naquela desgraça. Uma hora depois, caiu em prostração.
No dia 6 de dezembro ocorreu nova audiência com a presença do juiz formador da culpa, dr. Anísio Jobim. Desta feita com o importante depoimento da mãe da vítima, Ritta Francina da Siqueira Bittencourt.
Disse ela que por volta do meio-dia de 10 de novembro, o dr. Câmara chegou à sua casa e falou: “Sabes, o João de Góes, que morava no Poço, disse que te deixasse, Conceição”. A amante teria perguntado a causa daquela disposição. Após alguns minutos, o médico foi até ela e lhe mostrou um revólver e foi guardá-lo.
No início da tarde ele saiu com a amante para retirar dinheiro na Caixa Econômica e pelas 18 horas, trocou de roupa dizendo ir à casa do dr. Pedro Soares. Voltou às 9h da noite, pediu ceia e saiu, retornando mais tarde para cometer o delito.
No dia 23 de fevereiro de 1906, o juiz de Direito da 2ª Vara da Capital, dr. Esthiquio Gama, despronunciou o réu baseando seu voto em parecer médico, mas não o pôs em liberdade “uma vez que seu estado mental assim exige para segurança do público”. Oficiou ainda ao Capitão do Porto para que o remetesse ao manicômio da capital federal, “estabelecimento que este juízo designa para ser ele internado, dando-se ciência ao Ministro da Marinha.
Essa decisão foi ratificada pelo Tribunal Superior de Justiça de Alagoas em 12 de junho de 1906, mas com a resolução de libertá-lo, entregando-o à família. Ficou nessa condição por poucos dias. Por ordem das autoridades da Armada, foi novamente detido na Enfermaria Militar.
No dia 22 de junho de 1906 chegou a Maceió uma comissão encarregada pelo Ministério da Marinha para conduzir o dr. Câmara Sampaio até o Rio de Janeiro, o que aconteceu no dia 2 de julho.
Uma nota publicada no Gutenberg de 8 de julho de 1906 torna público o agradecimento dos familiares do médico “aos habitantes” de Maceió pelas muitas provas de bondade dadas a eles.
Em 4 de setembro, Câmara Sampaio ainda estava internado no Hospital da Marinha no Rio de janeiro em observação por decisão da junta de inspeção de saúde. Uma semana depois foi solicitada a sua internação no Hospício Nacional de Alienados. Imediatamente seus advogados tentaram impugnar esse ato do ministro da Marinha.
No dia 28 de setembro, dia definido para seu internamento, o médico não amanheceu no Hospital. Fugiu utilizando uma corda do mastro da bandeira da Ilha das Cobras. Surpreendentemente, no dia seguinte ele se apresentou ao Hospital Nacional de Alienados, onde foi recolhido.
A Gazeta de Notícias (RJ), em 20 de outubro de 1906, divulgou nota informando que já estava em mãos do ministro do Interior, Félix Gaspar, os exames e laudos indicando que o dr. Câmara Sampaio não sofria, naquele momento, de “alienação mental”, pois não apresentava nenhum dos sintomas que poderiam caracterizar semelhante “lesão”. No dia seguinte o ministro informou que comunicaria à Marinha esses resultados. A alta do criminoso foi concedida no dia 22 de outubro, quando foi posto em liberdade.
Que relato! e que loucura deste jovem.
Mostra que a impunidade já campeava em solo pátrio.
E quando faleceu o criminoso?
Está no inicio do texto: “Faleceu às 21h30 de 20 de dezembro de 1915, “vítima de influenza complicada de arteriosclerose”. Estava na casa do seu tio, o dr. Barreto Sampaio, na Rua da Saudade, n° 25, em Recife. Já tinha sido promovido ao posto de capitão de fragata. Era solteiro e tinha 47 anos de idade”.
Prezado Ticianeli, que relato entristecedor!
Relato maravilhoso e que nos põe a pensar. Hoje temos a tecnologia e globalização. Mas as relações humanas e os seus desfechos continuam os mesmos. Violência doméstica, desigualdades de gênero, influência política, famílias tradicionais, forças armadas corporativas e abrigado pessoas com transtornos mentais, os perigos do porte de arma, a monocultura da cana de açúcar, entre outras mazelas sociais. Muito bom! Adorei.