Cyra Bezerra revela: “Meu marido matou Lampião”
A viúva do Capitão Bezerra descreve, em 1981, aquele dia de terror em que o Rei do Cangaço e seus companheiros foram fuzilados
Reportagem de Laércio de Vasconcelos para a Revista Manchete de 28 de novembro de 1981.
A saga de Lampião marcou a história nordestina. Sua trajetória violenta, seu desafio à lei o transformaram em figura mítica. Por outro lado, o homem que o perseguiu e o matou jamais foi reconhecido como herói, seu nome quase caiu na obscuridade.
O Capitão João Bezerra morreu na cidade de Garanhuns, em Pernambuco, em 1969, sem exigir recompensas de suas campanhas no comando de volantes, caatinga adentro, atrás de perigosos cangaceiros.
No Recife. vive ainda sua viúva [1981], Cyra Bezerra de Britto, 61 anos, alimentada pelas lembranças do tempo em que seu marido enfrentava o Rei do Cangaço. Em sua casa, D. Cyra guarda ainda o facão que degolou um outro capitão honorário: Virgulino Ferreira. Bezerra o chamava de O Cego, pois Lampião não enxergava de um olho.
Em contrapartida, o cangaceiro apelidara Bezerra de Cão Coxo, pois o capitão mancava de uma perna devido a um antigo ferimento a bala. Lampião tinha especial ódio a Bezerra, mas também o temia. Mandava-lhe bilhetes desafiando-o, mas sempre fugia de uma luta frente a frente.
Cyra recorda que sua vida de casada esteve sempre ligada ao problema dos cangaceiros e das volantes de seu marido. Diz:
“Quando me casei com Bezerra eu tinha 15 anos e ele 35. Temível contra os bandidos. meu marido era bom chefe de família. Seus soldados gostavam dele e o obedeciam cegamente. Depois de travar luta e acabar com vários bandos de cangaceiros, entre os quais os dos temíveis Gato e Corisco. Bezerra se dedicou especialmente à guerrilha contra Lampião”.
Após a degola dos cangaceiros, os soldados
dançavam e cantavam na casa do capitão
Os fatos se passaram há muito e D. Cyra não se lembra com certeza das datas certas, mas tem excelente memória para detalhes e os recorda com alegria ou lágrimas nos olhos. Principalmente quando ela fala naquele dia, quando seu marido se embrenhou no sertão, mais uma vez em busca de Lampião. Tudo começou assim:
“Eu nunca tive medo de nada, pois quando criança estava acostumada a me esconder no mato, fugindo dos cangaceiros que ameaçavam meu pai. Até que veio aquele dia em que meu marido, ajudado pelo tenente Ferreira e o sargento Aniceto, encontrou Lampião na serra de Angicos e o abateu, com outros dez cangaceiros, inclusive Maria Bonita.
Isso foi em 1938. Nós sabíamos que a família de Pedro de Cândida acoitava Lampião. Pedro ia sempre lá em casa, para colher informações e passá-las ao bandido. Certa vez, ele chegou, dizendo que Lampião estava para os lados de Moxotó, em Pernambuco. Era mentira e Bezerra logo percebeu isso.
Para despistar, meu marido foi com a tropa para a cidade de Pedra. O sargento Aniceto ficou em Delmiro Gouveia, à espera de notícias. Depois de Bezerra partir, chegou um caboclo amigo nosso contando que Lampião tinha sido visto perto de Angicos.
Imediatamente passei um telegrama para o meu marido e outro para Aniceto. em Delmiro Gouveia. Eles, imediatamente, dirigiram suas volantes para Piranhas, onde embarcaram em canoas pequenas, amarradas umas às outras com a finalidade de levar mais soldados.
Quando Bezerra saiu à caça de Lampião, a noite estava enluarada e bonita. Senti muito medo, mas confiava em meu marido e na sua vitória. Fiquei ao lado de um soldado doente, até as quatro da madrugada. Ele acordou esperou e me disse: “Dona Cyra, o Capitão Bezerra entrou em combate. Estou ouvindo o tiroteio”. A cidade entrou em polvorosa.
Quando amanheceu, todo mundo assustou-se com o estampido de um tiro. Será que o bando de Lampião estava tão perto assim? Corri para fora de casa e soube então que um homem ao carregar uma arma disparou-a acidentalmente, ferindo a mulher. Fui a casa deles e encontrei a coitada quase morrendo, suplicando que não prendessem o marido. Depois, ela apagou.
No meio daquela agonia, chegou um rapaz dizendo que vinha rio abaixo uma canoa cheia de homens. Pedi para ele ir até a margem do São Francisco, para ver se Lampião havia fugido. Nesse caso, ele deveria voltar e avisar a gente na cidade. Se desse tempo, nós fugíamos. Fui para casa e fiquei esperando os acontecimentos.
Já ouvia barulhos estranhos por toda a cidade. Eram tiros e gritos. Eu não entendia nada daquilo. Mas pensava: ‘Se o rapaz não voltou talvez Lampião o tivesse pegado e agora o bandido está entrando na cidade. Fui para a calçada da casa, à espera do pior.
Um grupo de homens surgiu no fim da rua. Na frente deles, eu vi Bezerra, caminhando todo ensanguentado. Atrás vinham os seus soldados, trazendo cabeças seguras pelos cabelos. Foi o quadro mais horrível que presenciei na vida. Corri para dentro, apavorada, e me debrucei no berço da minha filha. Não conseguia tirar as mãos do rosto. Foi quando senti entrar gente no meu quarto. Era Bezerra. Ele disse: ‘Minha filha, venci. O Cego está morto. Venha ver’. Mas eu não tinha coragem de tirar as mãos do rosto. Bezerra insistiu: ‘Você não quer ver? Olhe, eu estou ferido’.
Quando me levantei, os soldados já estavam no quarto, muito alegres jogando uns nos outros perfume encontrado com os cangaceiros. Dançavam e cantavam Mulher Rendeira.
Eu tinha uma sensação estranha, um arrepio me passava pelo corpo todo. Minha filha no berço e os soldados dançando e cantando em volta dele. Tudo cheirava a suor e a perfume. Aquilo me sufocava. Peguei a minha filha e corri para a sala. Lá, uma tia minha, vendo o meu sofrimento, agarrou a menina e a levou para a sua casa. Foi então que me acalmei e passei a tratar dos ferimentos do meu marido e dos seus comandados.
Lá fora, a cidade inteira dava tiros para o ar, cantava e comemorava a morte de Lampião. Nossa casa foi invadida. Todo mundo queria ver as cabeças decepadas.
Bezerra, mesmo ferido, gritava e dava ordens pedindo que passassem um telegrama para seus chefes, contando que o Cego estava morto. Depois, olhou para mim e disse: ‘Quero ver se você se lembra da cara de Lampião. Quando menina, você o conheceu, não é verdade?’.
O cheiro de sangue agora dominava o ambiente. Espalhados pelo chão se achavam os apetrechos dos cangaceiros. Onze cabeças decepadas e ensanguentadas se apoiavam no chão, contra a parede. Uma delas era a de Maria Bonita. A seu lado estava a de Lampião, com uma expressão de desespero.
Naquele momento, me lembrei de seu rosto. Quando o vi pela primeira vez, eu tinha 11 anos. Então eu estava na Fazenda Lagoa dos Patos, de meu pai, o Coronel Antônio Menino, o homem mais importante da região. Eu gostava muito de montar a cavalo e de visitar as fazendas próximas. Num desses passeios, fui parar na Fazenda do Poço. Aí percebi que havia festa na casa-grande.
Parei no pátio e vi homens rindo e conversando, sentados num banco. Não me interessei por eles. Fiquei olhando pela janela o pessoal que dançava dentro de casa. Era muito bonito o arrastar de pés daqueles homens, acompanhando o ritmo de um xaxado. De repente, um dos quatro que estava no banco pegou as rédeas do meu cavalo, me olhou e disse asperamente: ‘Saia daqui e não volte, menina’.
Não gostei daquela maneira de me tratarem e olhei-o bem nos olhos. Ele, vendo que eu não o obedecia, chicoteou o animal com violência. O cavalo disparou e só parou quando chegamos em casa. Agora eu via novamente a cabeça daquele homem, Lampião. Disse comigo: ‘Nunca mais vai haver Lampião’. Sentia um grande alívio.
Depois, seguimos para Maceió, onde as cabeças decepadas pelos soldados foram entregues ao comandante da Polícia Militar. Finalmente, começamos a viver com mais tranquilidade. Bezerra foi nomeado delegado regional em São José da Lage, onde ficamos durante vinte anos.
Enquanto ele foi vivo, procurei sempre apagar aqueles fatos da minha mente. Nunca falávamos dos tempos do cangaço.
Sua recompensa foi uma viagem ao Rio de Janeiro, onde Bezerra se encontrou com o Presidente Getúlio Vargas. Depois, caiu no esquecimento. Tudo o que disseram sobre ele se baseia em mentiras, em acontecimentos deturpados. Até o filme sobre o cangaço foi feito de inverdades, mostrando os soldados como se fossem bandidos. Não perdoo esta injustiça feita ao meu marido, que sofreu e lutou tanto para acabar com o cangaço no Nordeste.”
O Capitão João Bezerra, em seu livro Como Dei Cabo de Lampião, editado em 1940, nega ter pessoalmente cortado as cabeças dos cangaceiros. Em certo trecho ele conta que após os soldados trocarem tiros com os cangaceiros ele ouviu a voz de um deles.
“’Capitão, o Cego morreu e Maria Bonita, também’. O local onde estávamos oferecia grandes dificuldades para sairmos e transportar o soldado morto e o ferido. Embora com sacrifício, devíamos levar o morto e não enterrá-lo ali. Quanto aos bandidos, o problema se apresentou mais difícil. Se fosse apenas um, poderíamos conduzi-lo, mas se tratava de onze. O único meio de transporte para esses corpos seria as costas dos soldados. E eles não comiam há três dias, a não ser rapadura com farinha.
O sol já estava alteando e as dores me chegavam mais e mais. (Bezerra tinha sido ferido na mão e na perna). Resolvi seguir na frente e deixei o resto a critério do meu auxiliar direto. Atingi a beira do rio, conduzido por dois soldados. Momentos depois, chegava o aspirante, com o resto da tropa e com as cabeças decepadas.
No começo eu quis reclamar, mas ele se justificou dizendo que o soldado morto e o ferido já pesavam muito e mais pesavam ainda os cangaceiros. Todos os soldados vinham carregados com os apetrechos dos bandidos. Assim, a condução dos corpos seria impraticável. Para transpor uma das barreiras — único lugar de acesso à beira do rio — fora preciso botar no chão, por duas vezes, os corpos dos soldados…
Fazer isso com os bandidos seria impossível. Por isso, dei razão ao tenente que trazia a cabeça dos vencidos. Mesmo porque precisávamos dar ao público uma prova de que os cangaceiros realmente haviam morrido. E necessário lembrar que a degola foi feita em corpos mortos“.
Enquanto continua viva no Nordeste a lenda de Lampião e Maria Bonita, suas cabeças, guardadas em formol no Museu Antropológico de Salvador, finalmente foram enterradas, em 1969, no cemitério da Baixas de Quinta. O sepultamento ocorreu em sigilo e os restos dos dois amantes estão em túmulos com inscrições simples: Virgulino e Maria Bonita.
Muito bom este artigo, bastante revelador.
pra entrar em angico foi fácil, mas pra sair era complicado. nem bezerra conhecia lampião? veja que estar na duvida quando pergunta a mulher. e por que não levar apenas o corpo de lampião? como dizia o grande Alcindo costa: ali só tem mentiras.
Se lampião morreu de velhice em Minas Gerais o tenete recebeu um prêmio que não merecia ficaram ricos com uma farsa que ao longo dos anos veio a ser descoberto