Memória dos primeiros anos da guerra contra os quilombos dos Palmares
Pedro Paulino da Fonseca
*Publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1876. Título original: Memória dos feitos que se deram durante os primeiros anos de guerra com negros quilombolas dos Palmares, seu destroço e paz aceita em junho de 1678
Estendia-se pela parte superior do rio de S. Francisco, uma facha de mata brava a terminar no sertão de Santo Agostinho, correndo de sul a norte paralelamente à costa do mar.
Foi aí o teatro das grandes cenas de que vamos tratar, que se deram durante os primeiros anos de guerra contra os negros do quilombo dos Palmares, logo em seguida a paz com o inimigo externo.
Eram as árvores dessa grande mata na maior parte catolés, como ainda hoje [1876] aí se observa, que deram ao local o nome de Palmares, que tão propícias são para a vida do homem, que deles obtinham os numerosos habitantes vinho, azeite, sal e roupas; com as palmas tapavam e cobriam as casas de seus mocambos, das hastes faziam esteios e lenha, dos frutos e do palmito sustento, e das fibras exterioras do tronco amarras para todo o gênero de ligaduras.
Este palmeiral, abrangendo um espaço de 60 a 70 léguas, era dividido em tantos outros por bosques de diversas árvores, que os separavam, e em cada um deles haviam os negros assentado mocambos, mais ou menos independentes.
Num palmeiral, a 16 léguas NO. de Porto Calvo, existia o mocambo do Zambi (general ou deus das armas, na língua deles), e ao N. deste cinco léguas o de Acainene (este era o nome da mãe do rei, que assistia neste mocambo fortificado, a 25 léguas mais ou menos ao NO. de Porto Calvo, e a que chamavam Cerca Acainene por ser a fortificação com pau a pique).
Para leste destes havia o mocambo das Tabocas, e deste 14 léguas para o NE., o de Bambiabonga. A oito léguas ao N. do Bambiabonga existia a cerca chamada da Sucupira; ao N. desta seis léguas a Cerca Real do Macaco e ao OE. desta última cinco léguas o mocambo do Osenga.
A nove léguas da povoação de Sirinhaém para NOE. a cerca do Amaro, e a 25 léguas das Alagoas para o NOE. o palmar do Andolaquituxe, irmão do Zambi.
Entre todos estes, que eram os maiores e mais fortificados, existiam outros de menor conta de menos gente.
É opinião assentada que, desde que se introduziram negros cativos nas capitanias do Brasil, principiaram os habitadores dos Palmares, sendo certo que durante o tempo do domínio holandês o número deles aumentou consideravelmente.
Ao rei chamavam eles Gangasuma (senhor grande – termo híbrido, composto das vozes Ganga, angolense ou bunda, e assú, tupi), este habitava a cidade real a que chamavam Macaco, e era a metrópole entre as outras cidades ou mocambos; estava toda cercada também a pau a pique.
A segunda cidade era a denominada Sucupira (depois arraial do Bom Jesus e da Cruz, formado por Fernão Carrilho); nesta habitava o Gangasona, irmão do rei.
Como esta todas as mais cidades estavam a cargo de potentados e cabos poderosos, que assistiam nelas e as governavam.
A Sucupira, que era a praça de guerra onde se preparavam as forças para a defesa e guarda da confederação, também era fortificada, mas com pedra e madeira, e estendendo-se perto de uma légua continha em seu interior três altíssimos montes, e um rio que chamavam Cachingi, abundante d’água.
Depois da restauração da capitania de Pernambuco do domínio holandês, vinte e cinco tentativas se fizeram, com prejuízos grandes, sem sequer descortinar-se os segredos daqueles povoados bravios. Referirei as principais, que tiveram lugar desde o começo do intento.
A primeira foi a do capitão Braz da Rocha Cardoso com seiscentos homens. Pouco fruto se conseguiu nesta empresa pelas dificuldades do sítio, asperezas dos caminhos, e impossibilidade de conduções por terrenos não conhecidos; apenas serviu para orientar o que teria a vencer em outras tentativas.
Depois a do mestre de campo Antonio Jacomo Bezerra, que lhes produziu algum mal; e várias outras, inclusive de alguns que a fizeram por conta própria, o que mereceram louvor, e cujos nomes damos para memória.
Foram eles:
O capitão-mor Christovão Lins.
O capitão Clemente da Rocha.
O alcaide-mor Tibaldo Lins.
O capitão José de Barros.
O capitão-mor Gonçalo Moreira.
O capitão Antonio Cabral.
O capitão João Gomes de Mello.
Jeronymo de Albuquerque.
O capitão Alberto de Mello.
O capitão Cypriano Lopes Galvão.
O capitão André Velho Tinoco.
O capitão Domingos Antunes.
O sargento-mor Francisco Gonçalo.
O sargento-mor Vicente Martins Bezerra.
O capitão Antonio da Silva Barbosa.
O mestre de campo Antonio Dias Cardozo.
O mestre de campo Antonio Jacomo Bezerra.
O coronel Belchior Alves.
O coronel Zenobio Accioli.
Manoel de Abreu.
O capitão Sebastião de Sá.
O sargento-mor Manoel Lopes Galvão.
Entre todos estes se destacam, não só pelo valor com que se houveram nos encontros e pelejas, como por terem feito as despesas por conta própria, Tibaldo Lins, Christovão Lins, Clemente da Rocha e José de Barros, moradores em Porto Calvo.
Isto se passou durante o governo de Francisco Barreto, que restaurando a capitania do domínio holandês com a capitulação da praça do Recife em janeiro de 1634, iniciou logo a campanha dos Palmares, por julgar estes inimigos internos tão perniciosos, e mais bárbaros e temidos que aquele; mas teve logo, em março de 1657, de passar o governo a seu sucessor.
O governador Francisco Barreto viu que a ocasião era a mais favorável, aproveitando-se do valor das nossas armas vitoriosas, que haviam sacudido o jugo de um inimigo, que de fora nos veio conquistar e por tantos anos nos oprimiu, para destruir e vencer os contrários, que no interior nos ficaram, sem o que não era completa a paz, por não serem os danos por estes cansados menores que as hostilidades por aqueles praticadas.
Porém de março de 1657 a janeiro de 1674, data esta em que assumiu o governo da capitania D. Pedro de Almeida, não foi o descuido a causa de não se conseguir o intento, porque lodos os governadores até então, mais ou menos, trataram da empresa e nela se empregaram com cuidado; porém os obstáculos que os novos governadores encontravam em começo tornavam invencíveis quem o valor não fizera poderosos; os melhores guerrilheiros deste exército, os mais experimentados cabos da guerra holandesa, empregaram-se em seguida nesta, com imenso trabalho, porque padeceram muito e pouco o fruto que conseguiam.
Continuamente eram os moradores de Alagoas, Porto Calvo e Penedo, acometidos, e suas casas e fazendas roubadas pelos negros palmarenses, matando-lhes os gados e levando-lhes os escravos para engrossar seus quilombos, e aumentar o número dos defensores, obrigando os moradores e naturais dessas vilas a irem muitas vezes guerrear na distância de quarenta e tantas léguas, com dispêndio de suas fazendas e risco das próprias vidas, sem o que estariam os ditos negros senhores da capitania, pelo seu grande número que diariamente se aumentava.
Estavam as coisas neste pé, quando D. Pedro de Almeida, em janeiro de 1674, tomou posse da capitania, e logo tratou de continuar a conquista, sabiamente iniciada havia vinte anos por Francisco Barreto, e por seus sucessores frouxamente secundada. Preveniu com tino tudo quanto era necessário à primeira empresa, e entregou a expedição ao sargento-mor Manoel Lopes Galvão, cujo valor, zelo e experiência, muito abonavam e prometiam.
Aos 23 de setembro de 1675 achava-se o sargento-mor Manoel Lopes em Porto Calvo, com 280 homens, entre brancos, mestiços e índios, para tentar o cometimento, e aos 21 dias do mês de novembro, depois de dois meses de preparativos aí, internou-se nas brenhas e labirintos da mata, onde grandes foram os trabalhos, excessivas as necessidades e contínuos os perigos que sofreram.
Aos 22 de janeiro de 1676 deram numa populosa cidade de mais de duas mil casas, bem guarnecida, e depois de mais de duas horas de renhida peleja, com valor de parte à parte, puseram os nossos fogo a algumas casas, que sendo de madeira e palha arderam velozmente, tornando medonho o sítio; o pavor de que se apossaram os negros nessa ocasião obrigou-os à fuga, o que desastradamente fizeram abandonando a cidade.
No seguinte dia, em que reinava ainda o terror entre eles, então reunidos em outro sítio, foram aí novamente atacados, sofrendo considerável dano.
Estas duas vitórias seguidas serviram de muito aos nossos, porque não obstante os obstáculos dos caminhos a vencer, e sofrimentos lastimosos por que passaram, patentearam ao inimigo a resolução em que se achavam prosseguindo na peleja.
Sentiu o inimigo consideravelmente o revés; grande foi o número dos mortos e feridos que tiveram nestes dois encontros, procurando os outros guarida nas brenhas.
As povoações e vilas vizinhas experimentaram logo os efeitos deste grande sucesso: a terrível lição obrigou a muitos dos quilombolas a buscar seus antigos senhores por não se julgarem seguros entre os seus naqueles desertos.
Tudo supriu o zelo e boa vontade do sargento-mor Manoel Lopes; diz a história : “Assistiu o sargento-mor Manoel Lopes, com arraial formado, quase cinco meses, entre os segredos ásperos daquele sertão, padecendo indizíveis misérias, excessivos trabalhos e perigos grandes, até que seus espias alcançaram notícia de que os negros se tinham passado a 25 léguas além dos Palmares, nas fragosidades de uns carrascos e espinheiros, tão medonhos e impenetráveis que pareciam inexpugnáveis ao maior valor; porém não lhes valeu ainda assim aquela fereza, porque assaltados pelos nossos ficaram muitos mortos e os mais fugiram.
“Aí foi ferido de bala o general das armas, Zambi, negro de singular valor, grande ânimo, constância admirável e inimigo capital dos brancos; ficou vivo, porém aleijado de uma perna.”
Vendo-se então com pouca gente, e essa estropiada e cansada com tão duras e grandes dificuldades, que cada dia cresciam com a falta de tudo, ainda do mais necessário para poder-se conservar ali, então recolheu-se o sargento-mor com a glória destes sucessos, e com quarenta e cinco prisioneiros.
Pedro de Almeida, satisfeito com os resultados obtidos, e empregando nisto o maior cuidado, querendo aproveitar a desmoralização em que os deixara o sargento-mor Manoel Lopes e a experiência adquirida, envidou esforços para continuar a empresa.
Para isto enviou convite ao capitão-mor Fernão Carrilho, que se achava em Sergipe, e a quem a fama tinha feito conhecido pelos serviços alcançados na destruição dos mocambos de negros, e de aldeias dos Tapuias, que infestavam os sertões da Bahia. Este, aceitando com prazer o honroso convite, partiu para Pernambuco com alguns parentes e dependentes seus.
Com a notícia de haver Carrilho aceito o convite, dispôs D. Pedro de Almeida as coisas, como cuidado que a escassez dos recursos exigia; procurou ter abastecimentos em lugares apropriados para isso, que era o que mais cuidado lhe dava; providenciou logo mandando avisar a todas as câmaras da capitania para que dessem o concurso necessário a este intento; escreveu a todos os nobres e principais das povoações circunjacentes aos Palmares, estimulando-os com as honras daquela empresa para prestarem recursos e também algum pessoal.
De muito serviu o desinteresse com que D. Pedro se mostrou na partilha das glórias dos últimos sucessos para alcançar das câmaras e da nobreza daquelas partes seu desejo. Também maior ajuda e emulação trouxe à empresa o desinteresse quanto a joia que se costumava dar aos governadores, por ele oferecida como prêmio aos que melhor trabalhassem, dizendo, que só queria o prazer de ver aquela capitania livre dos sobressaltos contínuos e perigos perpétuos que levavam-na para sua ruína, e ajuntando que seu maior intento era o serviço que daí resultara a Sua Alteza, pois do contrário se seguiam duas monstruosidades indignas de se fazerem públicas no mundo: a primeira terem domínio nas melhores capitanias de Pernambuco negros cativos, e segunda, os escravos dominarem seus próprios senhores.
Nos recursos prestados tornaram-se salientes o da câmara de Olinda com dois mil cruzados, e o da de Porto Calvo com 500$, entre as mais que contribuíram com o que puderam.
Pedro, dotado de inteligência, tino e perspicácia, ativo e empreendedor, estudara mui particularmente o modo como se havia de fazer esta guerra, servindo-lhe alguns desacertos das tentativas passadas de corretivo para o acerto das futuras.
Consultou a tudo e a todos para escolher o melhor, e entendeu que o mais acertado seria fazer arraial no meio deles, e assim dispôs as coisas para daí assaltá-los sempre.
Empregando nisto o maior cuidado, ordenou a Fernão Carrilho que seu maior empenho deveria ser assentar e persistir com arraial fortificado dentro dos Palmares; e como parecia impossível assistir naquele denso bosque, quase impenetrável, pelo rigor das intempéries e grande falta de mantimentos, que não se poderiam suprir lá mesmo, proveu a força de tudo que lhe era mister, e dispôs pelas povoações adjacentes os recursos indispensáveis à manutenção, de sorte que nada faltasse a seu tempo aos que no projetado arraial assistissem.
Sem demora partiu Fernão Carrilho para Porto Calvo, onde o esperava o pessoal que das mais freguesias se tinha reunido, que segundo as ordens deveria ser quatrocentos homens; mas apenas acharam-se cento e oitenta e cinco entre brancos, mestiços e índios da gente de Camarão.
Vendo-se com tão pouco pessoal, pois era tão pequeno número dos seus em relação à multidão de negros quase bravios que tinham de combater, que o capitão-mor de Porto Calvo e a câmara duvidaram da conveniência e acerto da marcha, lembrou-se, vendo o empenho de D. Pedro, e que não era possível retroceder em toda e qualquer impossibilidade, de pedir que se fizesse algum ato religioso em louvor a Deus para abençoar e frutificar a empresa, na capela curada de Camaragibe; e aí cantou-se, em tenção da favorável jornada, missa ao Senhor Bom Jesus, escolhido advogado e protetor da conquista.
Com isto animam-se os homens, tornando-se capazes de afrontar os perigos e sofrer melhor os trabalhos.
Fernão Carrilho conduziu então, pendente ao pescoço, uma pequena imagem do protetor, que na capela havia, como prognóstico infalível da fortuna que esperava.
Sem embargo dos perigos, inconvenientes conhecidos e esperados, começou a expedição em 21 de setembro de 1677, a marcha da vila de Porto Calvo para o interior das selvas dos Palmares, acompanhando-a até ao entrar na mata o capitão-mor Christovão Lins e seu irmão Tibaldo Lins, como os mais experimentados naquelas marchas, e interessados no bom sucesso.
O capitão-mor Fernão Carrilho falou então à tropa, dizendo-lhe: “que o número não dava nem tirava o coração aos esforçados; — que só o valor próprio fazia resoluto os militares; — que, posto que a multidão dos inimigos era grande, era a multidão de escravos a quem a natureza criara mais para obedecer que para resistir; — que os negros pelejavam como fugidos, e eles os iam buscar como senhores; — que as suas honras estavam em perigo, pelos desmandos dos negros escravos; — suas fazendas pouco seguras, pelos seus roubos; — suas vidas muito arriscadas, pelos seus atrevimentos; — que nenhum dos de seu séquito pelejavam pelo alheio, e todos defendiam o próprio; sendo grande descrédito para todo pernambucano servirem-lhe de açoite os mesmos que tinham sido por eles muitas vezes açoitados; — que só mudavam da guerra o modo, e não o uso, pois tantos anos estiveram sempre com as armas nas mãos contra os holandeses e ainda de presente o estavam contra aqueles inimigos levantados; e se o modo de guerrear era diverso por não ser em campanha, era também mais fácil por ser de assaltos; — que ele não queria do seu trabalho outro prêmio mais, a não ser o bom sucesso da empresa, pois quem mais vencesse mais dominaria, porque as presas todas haviam de ser suas; — que o governador D. Pedro nem joia queria para si, reputando a melhor joia que pretendia, o fazer aquele serviço a Sua Alteza e solicitar a liberdade dos seus vassalos ; — que se destruíssem os Palmares teriam terras para as suas culturas, negros para o seu serviço e honra para a sua estimação; — e se ele tomava sobre seus ombros aqueles trabalhos, não sendo morador naquelas capitanias, era só pelo zelo do serviço de Sua Alteza, e para obedecer ao governador D. Pedro de Almeida; que, enfim, eles o deviam imitar e seguir como interessados em tudo, porquanto o seu intento era ir buscar o maior poder, porque queria ou acabar ou vencer, pois do contrário se seguia terem os negros notícia do pouco poder que levava e zombarem da guerra que se lhes fazia.
Assim falando, receberam todos com bom ânimo estas razões, e internando-se Carrilho pelo inculto daquelas brenhas em demanda da Cerca Acainene, mocambo fortificado 25 léguas ao NOE. de Porto Calvo, onde assistia a mãe do rei, cujo nome tomou o mocambo, levaram-nos tanto as mágicas palavras de Carrilho, que cada um se julgou invencível.
Logo que os negros os pressentiram, amedrontados ainda pelo terror infundido pelo sargento-mor Manoel Lopes, desampararam precipitadamente a cidade, e os nossos, no dia 4 de outubro, deram sobre os fugitivos com tal ímpeto, matando-lhes muitos e prendendo nove. A mãe do rei nem morta nem viva foi vista.
Não foi somente proveitoso este efeito em relação à considerável perda do inimigo, de uma cidade forte e grande número de homens: é que de muito serviu, fornecendo-nos guias e notícias. Pelos prisioneiros soube-se então, que o rei Gangasuma com seu irmão Gangasona, e todos os mais potentados e cabos maiores, estavam na cerca chamada Sucupira que servia então de praça forte, onde o rei nos esperava para pelejar em batalha; distava este mocambo 45 léguas de Porto Calvo.
Para melhor assentar o arraial pareceu a Carrilho que convinha tomar outro ponto mais central, e o Sucupira foi o objetivo.
Eram os melhores capitães de Carrilho, de quem no correr desta teremos de tratar:
Gonçalo Pereira da Costa.
Mathias Fernandes.
Estevão Gonçalves.
Manoel da Silveira Cardoso.
José de Brito Gonçalo de Cerqueira.
Domingos de Brito.
Gonçalo Rodrigues de Araujo.
Antonio Velho Tinoco.
Filippe de Mello e Albuquerque.
Com o sucesso último quis Carrilho aproveitar a vantagem alcançada, e aos 9 de outubro, prevenido do necessário, partiu em demanda da cerca Sucupira por picadas abertas na mata. Desta maneira, e com grande trabalho, encontraram os nossos o mocambo, e logo que o avistaram fizeram com todas as precauções de silêncio e sossego alto antes que os pressentissem. Oitenta homens saíram logo a explorar e descobrir o sítio, e a verificar a fortaleza da estacada, e voltaram com a notícia de terem os negros, aterrorizados, lançado fogo à cidade, que ainda em cinzas mostrava sua grandeza. É que Gangasuma, com a notícia que Fernão Carrilho os buscava aí, notícia levada pelos fugitivos de Acainene, preferiu perder a cidade, presa de chama, a pôr em risco a vida dos seus.
Logo que isto constou, com o prazer que além da vantagem considerável trazia a facilidade da realização do maior desejo de D. Pedro, a de fundar arraial no meio deles; empregando nisso o maior cuidado, apoderaram-se desse sítio os nossos, e nele Carrilho fundou arraial com o título do Bom Jesus e a Cruz, fortificando-o do melhor modo com baterias, depois de se ter reconhecido bem o lugar.
O abandono dos inimigos foi-nos de grande vantagem, e convencido disto expediu então a feliz noticia a D. Pedro, comunicando-lhe todo o ocorrido, e pedindo-lhe socorro de gente e de mantimentos.
Reconhecendo-se bem a paragem, mandou incontinenti bater o mato a fim de descobri-los. Esta expedição foi infeliz, e no fim de oito dias de amargas esperanças, sem alcançar o que buscava, regressou, com sua gente desunida e amotinada, e de menos vinte e cinco homens, que as duras privações e rigor do trabalho fizeram fugir. Daí a poucos dias, como pernicioso exemplo, outros tantos desapareceram do arraial, podendo mais o desabrido do sítio, para os fazer retirar, que o brio da empresa para os deter, pelo que achou-se então Fernão Carrilho aí apenas com cento e trinta homens. Nestas tristes circunstâncias, em que, além da desvantagem da retirada de um terço quase da força, o desânimo e impaciência apareciam, de tudo deu logo ciência a D. Pedro. O que há nisto de notável, é que, com esta perda considerável de pessoal, dissimulava prudentemente o caso, mostrando o valente Fernão Carrilho que não reconhecia perigos, no que não se iludiu.
Enquanto se passava o que temos referido não estava ocioso o governador D. Pedro em Pernambuco. Logo que de tudo isso teve ciência, convocou em conselho todos os cabos maiores que se achavam no Recife, e pediu que resolvessem sobre o modo como se havia de socorrer a Fernão Carrilho. Ventilada a urgência do caso e discutida a matéria, acordaram todos que um cabo maior dentre eles partisse, com trinta soldados pagos, a reunir gente pelas freguesias circunvizinhas e expedir os mantimentos necessários ao arraial. A votação recaiu na pessoa do sargento-mor Manoel Lopes Galvão, como o mais experimentado e entendido nesses negócios.
Provida a expedição de todo o necessário, partiu o sargento-mor com os trinta soldados em direção à vila das Alagoas, onde tomou quartel, para daí expedir os socorros de gente e de mantimentos. Despachou alguns próprios para os arredores, convidando os moradores para trazerem os víveres que pudessem, e para que tivessem muito em consideração a pronta execução desta ordem. Não se pode negar que o grande intento de D. Pedro, nesta parte, foi por todos secundado.
Com a notícia de estar tudo prevenido, e da ida de socorros, animaram-se os que se achavam no arraial do Senhor Bom Jesus, pelo cuidado com que o governador D. Pedro lhes provia do necessário para o sustento e lhes multiplicava os companheiros para o trabalho. E aproveitando ocasião tão favorável para sair da apatia, e dar sinal de vida e vigor ao audaz inimigo, o capitão-mor Carrilho designou os capitães Gonçalo Pereira da Costa, Mathias Fernandes e Estevão Gonçalves, com cinquenta homens, para de novo explorar aquelas matas em busca dos negros ou de notícia da sua paragem.
Mais feliz que a anterior comissão, seguindo um trilho que descobriram, tiveram um famoso encontro, e animados encetaram a peleja com grande vantagem, conseguindo-se em pouco uma assinalada vitória, que, levando os palmarenses de vencida com tal galhardia, fez-lhe uma grande mortandade; aprisionaram cinquenta e seis, no maior número mulheres, porque era ordem não dar quartel aos homens.
Além da vantagem obtida, não foi menos considerável o trazerem também prisioneiro o general (mestre de campo) Gangamuiza, de toda a gente de Angola, e genro do rei (casado com duas das filhas deste), negro muito temido nas nossas povoações, como muito ladrão, insolente, soberbo e atrevido nos seus cometimentos.
Os nossos soldados, pela notícia que de seus atrevimentos e insultos tinham, quiseram livrar-se logo dele, mesmo para impedir sua fuga; e pediram ao capitão-mor licença para o arcabuzarem, e parecendo que não alcançavam tal licença a tomaram por si, e numa ausência daquele executaram o Gangamuiza, bem como alguns outros não menos importantes, como fossem Gaspar, capitão da guarda do rei, João Tapuya e Ambrósio, capitães de fama entre aqueles bárbaros. O rei, que também estivera presente no começo da peleja, tinha fugido com a pouca gente que pode livrar da carnificina.
Tiveram os nossos o prodigioso sucesso como milagre do Senhor Bom Jesus, porque nele mais andou o favor do céu que a destreza das armas em um número tão desigual de combatentes; e a vitória sobre a multidão dos contrários entrincheirados foi por todos atribuída ao Senhor Bom Jesus e a cruz por ser aquele o Senhor das batalhas, e esta o estandarte das vitórias.
A notícia de tão feliz e grandioso cometimento foi do maior prazer e alegria no arraial, e disto sabiamente aproveitando-se o capitão-mor Carrilho, que prudentemente soube esquecer o ato praticado com os prisioneiros para tirar partido do ânimo então de todos, secundou a expedição, fazendo seguir os capitães Estevão Gonçalves, e Manoel da Silveira Cardoso, com uma nova leva de cinquenta homens descansados, no encalço do rei e dos fugitivos.
Estes, depois de 22 dias de afanosos trabalhos naqueles desertos, aos 11 de novembro, alcançaram a notícia de que o rei Gangasuma se achava com Amaro no seu mocambo, a nove léguas ao NOE. de Sirinhaém. Este Amaro, por suas proezas, insolências e atrevimentos célebres, era também muito temido dos nossos, e se fizera conhecido por suas correrias nas povoações circunjacentes. Habitava separado dos mais, como potentado independente. Seu mocambo, conhecido pelo seu nome, era fortificado com grandes e grossas estacadas, estendendo-se em comprimento pela distância de uma légua, contendo no interior mais de mil casas de habitação.
Foi aí que se deu por seguro o rei fugitivo, que ainda desta vez não escapou à vigilância e tenacidade dos nossos, que, animosos e ambiciosos de glória, pelo exemplo anterior de seus camaradas, divididos em duas partidas, marchavam com intenção de coroar o sitio, fechando-lhes a sabida do mocambo, que era uma apenas; mas, por felicidade ou por infelicidade, antes de ocuparem o vão da entrada, pressentida a intenção dos nossos, saíram os negros, mas ainda em tempo de serem batidos, ficando mortos e feridos por terra grande número deles, e aprisionando-se quarenta e sete, entre os quais duas negras forras, e uma mulatinha filha de um morador nobre de Sirinhaém. que tinha sido dali roubada. Prenderam mais, o Anajuba, dois filhos do rei, chamados Zambie e Jacainene, aquele homem, esta mulher, e outros em número de vinte mais ou menos, entre filhos e netos do rei.
No número dos mortos ficaram Tuculo, filho do rei, Pacasa e Baubi, poderosos chefes entre eles.
O rei tal foi o terror de que se possuiu, que ao ímpeto dos nossos fugiu, e tão desastrada e desorientadamente que deixou uma pistola dourada e a espada de que usava, constando ter sido ferido.
Destes encontros resultaram não só ânimo e reputação aos nossos, como também o terror ao inimigo, que cada dia mais descalabros e transtornos experimentava nos nossos encontros.
Este grande feito, por certo, desorientou totalmente os negros, que perderam de todo a esperança de se poderem conservar por mais tempo naquelas paragens, por isso que se achavam privados dos principais, e mais afeitos e atrevidos chefes, e viam-se por todos os lados enfraquecidos e cercados.
Maior ainda foi desta vez a alegria no arraial com o resultado desta segunda expedição; tudo, enfim, concorria para a exterminação do quilombo, sem outros recursos além dos da Divina Providência, atendendo-se ao número desproporcionado dos combatentes, e dos escassos meios com que os socorria o infatigável D. Pedro; mas, como então não faltava o valor aos nossos, ia-se suprindo com ele o mais que não tinham.
Quem refletir que com tanta desigualdade se combatia, não deixará de se convencer que se excedia ao possível de um modo sobrenatural, que bem caro custava ao inimigo.
Por isso quis então o capitão-mor Carrilho aproveitar o propósito do geral ânimo e boa disposição dos nossos, e do desassossego e fraqueza do rei Gangasuma, e em seu seguimento fez partir cinquenta homens com os capitães José de Brito, Gonçalo de Cerqueira, Domingos de Brito e Gonçalo Rodrigues de Araujo, para correr em todos os sentidos aquelas matas em demanda dos fugitivos restos do mocambo Amaro.
Quer fosse a sua muita cautela, quer os cuidados e prevenções na empresa, suprindo a tudo com ânimo e constância inquebrantável, viu seus esforços coroados do melhor êxito, como se fossem secundados ou ainda, inspirados, por uma ação divina.
Partiram estes, com infatigável cuidado de não ficarem aquém dos esforços de seus companheiros.
Não alcançaram notícia de Gangasuma, porém viram também coroados seus trabalhos da melhor sorte, por isso que tiveram diversos encontros com aqueles que vagavam sem domicilio certo nem descanso seguro, pelo temor dos nossos, e lhes fizeram trinta e seis prisioneiros, e muitos mortos, reconhecendo-se entre estes o Gone, filho também do rei, potentado entre eles, e temido pelos seus atrevimentos entre nós.
Saiu também em seguida o capitão Mathias Fernandes, com vinte homens, e tão feliz foi que descobriu logo uns poucos, que vagavam sem se atreverem a tomar assento; bateu-os, aprisionando quatorze e matando um maior número deles.
Assim, apesar de serem tão poucos os nossos, procediam com tanto valor em tão incapaz situação no que deviam e se esperava, que não desmereciam um ápice um do outro. Então era aproveitar fortuna tão propicia e parcial: cada soldado por si procurava sair em busca de glórias, e espalhavam-se por aqueles desertos como dominadores e quais verdadeiros senhores dos Palmares. Outra vez saiu ainda, animoso com sua tropa, o capitão Mathias Fernandes, e quis a sua boa sorte que se recolhesse com vinte e um prisioneiros, tendo feito muitas mortes; o mesmo aconteceu aos capitães Antonio Velho Tinoco, e Filippe de Mello e Albuquerque, que, tomando ainda para a parte do mocambo Amaro, os que encontraram prenderam ou mataram.
Já neste mesmo tempo, em que os nossos do arraial do Senhor Bom Jesus dominavam aquelas brenhas, cujas incultas vias nunca tinham sido por outros transpostas, por tal maneira se familiarizaram na divagação daqueles desertos, que demandaram-nos cheios de confiança em si, como quem não receava ser ofendido. Tudo vence o valor, tudo consegue a diligência, donde se colhe por ditame infalível que nenhum trabalho é inseparável à resolução intrépida, e nenhum soldado repugna os perigos formidáveis se a eles preside um coração animoso.
Como D. Pedro de Almeida era a alma que dava vida a estas empresas, com o seu exemplo aprendiam os soldados: do brio a serem constantes, da resolução a serem intrépidos, do zelo a serem diligentes, da sua vigilância a serem cuidadosos, e da sua disposição a serem prudentes.
Com tais predicados do governador D. Pedro, e não somenos do capitão-mor Carrilho, e da sua tenacidade, conseguiu-se em quatro meses o maravilhoso sucesso há muitos anos intentado, filho do acerto deste, e do tino e prudência de D. Pedro, que, gastando três anos em dominar os impossíveis, em quatro meses, de 21 de setembro de 1677 a 29 de janeiro de 1678, colheu sazonados frutos desse trabalho ingrato. E teve, com este último desfecho prodigioso, como restaurada de todo a capitania, que, se na primeira venceu-se o inimigo estrangeiro, que nos ocupava a costa e dominava o mar, nesta aniquilou-se outro não menos temido, que dominava-nos o campo e ocupava o sertão.
Recolheu-se então em 29 de janeiro de 1678 para a vila de Porto Calvo, com felicidade, o capitão-mor Fernão Carrilho, faltando-lhe somente um soldado que morreu e dois que ficaram feridos dando por destruído os quilombos dos Palmares e por vencido totalmente o terrível inimigo; e como no número dos prisioneiros descobrisse um negro por nome Matheus Zambi e a mulher deste, Magdalena Angola, ambos de avançada idade, e que se diziam sogros de um dos filhos do rei, deu-lhes os mantimentos precisos para a jornada e mandou-os que se fossem embora para os seus, que ficaram dispersos pelos Palmares, e que lhes dissesse: — que se ele capitão-mor se recolhia era com intenção firme de voltar outra vez; — que esperassem por ele e seus soldados para exterminar os restos do quilombo; — que o seu arraial ficava fortificado, e nele os instrumentos com que se vive naquele sertão; — que não lhes tocassem nem mudassem coisa alguma, porque lhes pagariam caro a temeridade.
Com este recado partiram os velhos, e com sua tropa chegou Fernão Carrilho ao povoado, onde, recebido pelos moradores, encaminhou-se para a capela do Senhor Bom Jesus, e com a câmara da vila fez cantar missa solene em ação de graças ao mesmo Senhor Bom Jesus por ter vencido e dominado aqueles inimigos, tendo o sucesso antes como benefício do céu, só, do que conseguido pelo valor.
A resolução que tomou quanto aqueles dois velhos foi bem inspirada, e deveria ter sido de grande resultado.
Em seguida, e segundo as ordens de D. Pedro, foram logo os prisioneiros repartidos pelos soldados, depois de tirado o quinto para a fazenda de el-rei; distribuição presidida por seis dos mais desinteressados dentre eles, pelo que ficaram todos satisfeitíssimos, e pagos do insano trabalho e incômodos que padeceram, e por demais admirados do desinteresse do governador D. Pedro de Almeida em não aceitar a joia que era de costume dar-se aos governadores, ficando o capitão-mor Carrilho apenas com dois moleques para o seu serviço.
Ação foi esta de singular crédito para o governador da capitania, pois por ela se confirmou ser seu maior intento e cuidado prestar a el-rei um tão grande serviço, libertando os habitantes daquelas povoações do jugo tirânico que os oprimia, sem outra recompensa mais que a glória de o conseguir.
Julgou-se então, e com justiça, que se semelhante modo de proceder tivesse presidido as tentativas dos anteriores governadores, era de crer que há muito estaria terminada, ou prestes a isto, a conquista dos Palmares.
Só mandou o governador ir a sua presença a mulher do rei Gangasuma com alguns filhos e netos, que entraram nos quintos de el-rei, para os levar consigo aos pés de Sua Alteza, como confirmação irrefragável do muito que se tinha feito e alcançado neste negócio.
Premiando assim seus soldados, partiu de Porto Calvo o capitão-mor Fernão Carrilho a dar graças ao governador D. Pedro pelo acerto com que dispusera e sustentara aquela guerra de conquista, e os devidos parabéns pela grande felicidade que só para ele reservara o céu: foi recebido na praça do Recife, onde a população se havia reunido, com grandes sinais de alegria, e por D. Pedro honrado com singulares e extremas demonstrações de benevolência.
Em ótima ocasião se dava isto, porque neste mesmo tempo chegavam satisfatórias notícias da vila das Alagoas, transmitidas pelo sargento-mor Manoel Lopes, a quem, como dissemos, incumbira o governador da tarefa de auxiliar de mantimentos e de gente o arraial de Fernão Carrilho, de que mandando uma expedição de vinte e cinco homens, comandados por João Coelho e Manoel de Sampaio, a correr os campos de S. Miguel, o fizeram com tanto acerto e felicidade, que, encontrando com um grupo de negros, que fugia acossado pelos nossos do arraial do Senhor Bom Jesus, destroçaram-no, ficando alguns mortos e outros prisioneiros, por quem se soube que comandava-os o Gangasona (irmão do rei), negro poderoso e tido nos Palmares como rei também, o qual, desesperado da resistência e do aperto, que por todos os lados sofria dos nossos, se afastava precipitadamente, desconfiado da sua má sorte e infelicidade, para evitar perigo certo.
Também outra nova chegara a propósito, de máximo interesse, e foi que o capitão Francisco Alves Camello, com cento e quarenta homens, internando-se pelos mesmos campos de S. Miguel, pelo interesse próprio e do real serviço, fazendo as despesas da jornada por conta de sua fazenda e bens, fizera assento daquelas matas para daí com assaltos perseguir os negros que se retiravam, e que expedindo uma força de oitenta homens a descobrir campo e bater as matas, nas margens do rio Mundaú, que lava as fraldas de dois montes muito altos e incultos, encontraram com grande número de negros escondidos entre os penedos e matas, que o rio e os montes formam; porém a confiança em si dos nossos foi causa deles primeiros nos avistarem e darem uma descarga, ferindo mortalmente alguns dos nossos; pelejou-se então neste sítio cerca de quatro horas, ferindo-nos mais três homens; deles ficaram oito mortos e muitos feridos, e ficando nossa gente senhora do campo, onde acharam-se duas armas de fogo e algumas flechas.
Depois deste encontro queimaram os nossos mais alguns mocambos, e nestes prenderam-se vinte e seis negros, matando-se alguns, entre os quais dois chefes, sendo um deles sobrinho do Gangasuma, e o outro irmão do Bangola: também prenderam a mulher do Gangasona, com dois filhos mestiços.
Eram estes por certo o resto dos que fugiram dos assaltos dos nossos do arraial do Senhor Bom Jesus, e se espalhavam para o lado da villa das Alagoas, esperando encontrar algum descanso nessa paragem; porém o previdente governador da capitania havia tudo disposto para o total aniquilamento dos Palmares, querendo sua boa estrela que fossem as providências tomadas tão a tempo, que nenhum caminho deixou desamparado para combatê-los e conquistá-los.
Todas estas notícias recebeu-as D. Pedro justamente com a chegada ao Recife do capitão-mor Carrilho e do sargento-mor Manoel Lopes; e tomando em consideração todas elas, as opiniões dos dois distintos chefes, que muito conceito mereciam em seu juízo, concluiu e com razão, que os quilombos dos Palmares achavam-se destruídos, e o resto dos negros erravam sem destino, espalhados em desordem, e por isto projetou chamá-los a si, propondo-lhes paz para a pacificação total.
Do conceber a realizar esta ideia foi pouca demora, e para isso escolheu um alferes, acostumado aquelas marchas e conhecedor daqueles sertões, para procurá-los, e dizer-lhes que o capitão-mor Carrilho preparava-se para voltar a destruir seus restos e não deixar um só inimigo com vida; — que, se eles queriam viver em paz com os brancos, ele lhes assegurava, em nome de el-rei, toda a união e bom tratamento, e lhes concederia posição certa para suas habitações e terra para suas roças; — e se lhes entregariam as mulheres, filhos e netos, que estivessem prisioneiros e cativos, e os conservaria em seus postos e cargos, sendo que o denominado rei ficaria como mestre de campo de todos os nascidos nos Palmares, os quais. lograriam os foros de vassalos de el-rei para ficarem debaixo do auxílio de nossas armas, e para servirem às nossas bandeiras, quando a ocasião o exigisse, ficando livres do cativeiro todos os que nasceram na sua liberdade,
Diz a história: – Passados estes sucessos, alegres os povos com os triunfos alcançados, livres os soldados das marchas, sossegados os moradores dos insultos dos negros, e recebendo D. Pedro as felicitações, e parabéns por tanta fortuna e felicidade, correram os meses seguintes até 13 de abril em que D. Pedro teve de entregar o governo da capitania a seu sucessor Ayres de Sousa, época em que se confirmava a verdade do ocorrido, dando a este por conseguinte parte das glórias alcançadas por aquele; e de facto fazer guerra de tal gênero, com tal gente, com meios tão desproporcionados, é cousa admirável.
O rei Gangasuma, sabendo disto, ou por se julgar, com a própria experiência, incapaz de resistir a outros assaltos, ou se receando da adversa fortuna, ou por outras intenções que não podemos descortinar, aceitou a proposta de D. Pedro; e aos 18 de junho, em um sábado à tarde, véspera do dia em que na paróquia do Recife se fazia a festa de Santo Antônio de Lisboa, entrou na praça o alferes que havia ido naquela comissão, trazendo em sua companhia dois filhos do rei e mais dez negros dos mais importantes daqueles quilombos, que vinham, na forma da proposta, se prostrar aos pés de D. Pedro, enviados pelo rei Gangasuma para que em seu nome lhe rendessem vassalagem, lhe pedissem paz e amizade, e lhe dissessem que só ele pudera conseguir com felicidade aquilo que tantos governadores, e tantos cabos maiores intentaram e nunca puderam alcançar, o conquistá-los; — que eles ali iam render-se e sujeitar-se ao seu domínio; — que não queriam mais guerra, e só procuravam salvar as vidas dos que restavam; — que estavam sem cidades, sem recursos de alimentos, e, o que é mais, sem mulheres nem filhos; — que D. Pedro dispusesse deles conforme sua vontade o determinasse.
Este notável ato, a confissão assim do rei, era a confirmação dos serviços reais prestados por Carrilho e por Manoel Lopes, e da verdade dos feitos alcançados.
Notável foi o alvoroço que causou a vista daqueles bárbaros, porque vinham despidos, e apenas com as partes naturais cobertas: traziam uns a barba em tranças, outros com postiças barbas e bigodes, e outros raspadas e sem mais nada, todos corpulentos e robustos, armados de arcos e flechas, trazendo somente uma arma de fogo. Vinha a cavalo um dos filhos do rei por trazer ainda aberta a ferida de uma bala que na peleja recebera.
Todos foram se prostrar aos pés de D. Pedro, batendo as palmas como sinal de sua rendição, e em protestação de sua vitória pediram-lhe, como ordenara o seu rei, a paz com os brancos, como era da vontade dele e dos mais potentados que escaparam ao furor da nossa resolução.
Pedro de Almeida os recebeu com muito contentamento, e não querendo para si só as glórias de tão assinalado serviço os remeteu ao novo governador Ayres de Sousa para que tivesse ele também parte na realização da grande obra, prostraram-se também todos à seus pés, dizendo-lhe que não queriam mais guerra; — que seu rei os mandava ali solicitar a paz e concórdia com os brancos; que se vinham humildemente submeter-se às suas disposições e vontade; — queriam ter com os moradores comércio e trato, e aspiravam a ser vassalos de el-rei para o servirem em tudo que lhes fosse mandado, só pedindo liberdade para os nascidos nos Palmares, e que entregariam os que para eles tinham fugido das nossas povoações e fazendas, e abandonando os Palmares, e designando-se-lhes um sítio para suas habitações e roças.
Grande foi o prazer com que o governador Ayres de Sonsa os recebeu, e singular a complacência com que se viu adorado por aqueles inimigos; tratou-os com suma afabilidade, falou-lhes com grande brandura e prometeu-lhes tudo fazer por eles; mandou vesti-los e enfeitá-los com fitas vermelhas, com o que ficaram contentíssimos. O povo todo aplaudiu a felicidade de D. Pedro e a benevolência de Ayres de Sousa.
Marcou-se o seguinte dia, 20 de junho, para darem-se graças a Deus Nosso Senhor e ao glorioso português Santo Antônio, na igreja paroquial do Corpo Santo, do Recife, pela mercê alcançada com a obediência daqueles bárbaros inimigos a tanto tempo rebelados.
O governador Ayres de Sousa e D. Pedro, com grande séquito e acompanhamento de povo, levando diante de si aqueles mensageiros, na manhã do dia aprazado foram cumprir esse dever.
Estava a capela-mor da igreja ricamente adornada de sedas; o Senhor achava-se exposto em um trono vistosamente armado e muito iluminado; ajoelhou-se Ayres de Sousa e todos se prostraram em adoração ao Senhor. O povo em massas que concorreu a ver tão grande novidade, aplaudia e admirava tanta pompa: grandes, pequenos, brancos, negros, todos manifestavam o prazer da festa e da novidade, multiplicando-se as glórias pelos bens alcançados.
Quis então o governador que eles se batizassem para que com a nova vida da graça começassem a lograr os benefícios da paz concedida; e como os próprios negros desejassem receber o batismo, foi prudente aproveitar a oportuna ocasião para que com maior ansiedade se empenhassem no intento a que vinham. Cantou-se solene missa, e, subindo ao púlpito o vigário da mesma paróquia, não falou em dar a Deus as graças que se lhe deviam, nem a Santo Antônio as glórias que lhe redundavam, nem também aos dois governadores os parabéns que eram merecedores.
Terminada esta ação de graças, recolheram-se todos na mesma ordem, cheios de prazer, e D. Pedro por ver realizado aos olhos de todos tão grande serviço: acima ficaram bastantes exemplos do quanto lhe custou alcançá-lo.
Os negros ficaram admiradíssimos do quanto viram, sumamente contentes do aparato da igreja, e admirados da grandeza dos governadores, da multidão do povo e do seu agrado.
No seguinte dia convocou o governador Ayres de Sousa todos os grandes a conselho, para que concertassem na resolução mais conveniente a tomar para assegurar a paz que se pretendia fazer, e achando-se presentes D. Pedro. O senado da câmara, o ouvidor-geral Lino Camello, o procurador da fazenda real João do Rego Barros, e os sargentos-mores Manoel Lopes e Jorge Lopes Alonso, consultou o governador sobre o requerimento do rei dos Palmares, em que pedia paz, liberdade, sítio para habitar, e entrega das mulheres e filhos. D. Pedro de Almeida, que tinha dirigido e encaminhado todo aquele negócio, que tinha experimentado e bem pesado todas as dificuldades e conveniências daquela conquista, discorrendo sobre o assunto, votou com singular acerto; parecer aceito por todos presentes, que, aplaudindo as ideias de D. Pedro, concordaram com sua opinião, e foi: que se assentasse a paz com o rei dos Palmares, aceitando-se a sua obediência; que se lhes desse o sítio que eles designassem ou escolhessem, capaz para as suas habitações e plantas; que a ele se recolhessem no espaço de três meses; que seriam livres os nascidos nos Palmares; que restituiriam todos os fugidos das nossas povoações; que teriam comércio e trato amigável com os brancos; que lograriam os foros de vassalos de el-rei; que ficariam obedientes às ordens deste governo; que o rei deles ficaria sendo mestre de campo de toda a sua gente, e que se lhes entregariam as mulheres do rei e dos mais potentados.
E duvidando-se em conselho se seria o rei Gangasuma capaz pelo seu poder de submeter ao nosso domínio, algum outro quilombola remisso, que vivesse distante dos seus mocambos, respondeu o filho que o rei conduziria a todos, e quando algum por insubordinado e insolente repugnasse a nossa e sua sujeição ele o conquistaria, e daria guias as nossas armas para que o desbaratassem; e em seguida assinalou a parte que desejavam como mais conveniente para sua habitação, que era uma dilatada mata, que jazia pelas cabeceiras de Sirinhaém e Rio Formoso, que chamavam Cucaú onde não faltavam palmeiras para o seu sustento. Com este parecer e explicações se assentou a paz, se concedeu o sitio desejado e se concluiu o conselho; e de tudo mandou o governador Ayres de Sousa fazer auto, para que os negros levassem por escrito o que se havia resolvido em conselho, e assim os despediu em companhia de um sargento-mor do terço.
Eis os felizes sucessos que se deram ao princípio no extenso teatro dos Palmares, e que de grande efeito deveriam ter sido para o país se o tino e boa vontade do novo governador da capitania fosse os do seu antecessor.
Até aqui acompanhamos um manuscrito de 1678 (Biblioteca Pública Eborense, cod.: CXVI — 2 — 13 — a n. 9), que nos deixou embalados em uma paz firmada com os chefes dos Palmares, que parecia duradoura e a contento de todos, concluindo-se assim com o cancro arruinador, que devastava a riqueza do país, internado em quilombos na melhor das florestas do Brasil; mas, longe de amadurecer não uma tentativa de ideia feliz, mas sim um fato consumado, como fora o acordo de 21 de junho, a paz aceita por todos, vemos estragado tudo quanto se havia feito, e a guerra continuar no governo de Ayres de Sousa mais sangrenta e desesperada do que nunca, mandando o próprio Ayres de Sousa e Castro, meses depois, no seguinte ano de 1679, uma expedição contra eles (primeira e única), dirigida pelo capitão de infantaria João de Freitas Cunha; tentativa infeliz que sofreu grandes danos nas marchas e tremendo revés no encontro, o que, dando ao inimigo toda glória e soberbia de ânimo, os tornou mais enfurecidos que dantes.
Seria traição de Gangasuma em aceitar a paz para assim obter a restituição de sua mulher, filhos e netos prisioneiros, burlando a intenção de D. Pedro de Almeida?
E assim estiveram assomados até 1695, em que o então governador Caetano de Mello e Castro, de acordo com o governador-geral D. João de Lencastre, fez marchar sete mil homens sob o comando do mestre de campo Domingos Jorge Velho, que foram também repelidos na primeira tentativa, com perdas consideráveis, fazendo então retirada sobre Porto Calvo. É que eles, melhor considerando, achavam-se todos reunidos em um só ponto, e com a paz de 16 anos e as lições bebidas na experiência se tinham tornado fortes.
Tornando-se então vergonhoso retroceder na tentativa, e reconhecendo-se que da falta de artilharia dependeu o bom êxito da empresa, foi mandado o capitão-mor Bernardo Vieira de Mello, com reforços e artilharia, que pôs termo à luta, abrindo com os projéteis as portas da fortificação para dar entrada aos nossos.
O desfecho ou conclusão desta campanha é já bastantemente conhecido dos homens que estudam a história pátria, e por isto fazem os aqui.
Caro Ticianelli, jamais havia lido uma análise geopolítica e histórica dessa natureza, na nossa Alagoas. Fiquei tanto estupefato, quanto entristecido com os relatos aterradores. Grato.
Por favor, podem escrever alguma página sobre a história do município de Belém, da região central de Alagoas, que, neste ano de 2022, completou 60 anos de emancipação política?