Medicina Popular e Medicina Ameraba
Publicado originalmente no Suplemento Literário do Diário de Notícias de 31 de maio de 1959
Théo Brandão
Conquanto nossa Medicina Popular seja preponderante de origem ou influência europeia, não se pode desprezar inteiramente a contribuição que lhe deu o indígena.
Se os ensalmos, orações, filatérios etc. ainda hoje em uso nos meios populares procedem através de Portugal, do velho continente, conforme temos procurado documentar em anteriores artigos, a matéria médica popular brasileira, sobretudo a vegetal, possui larga cota de influência ameríndia.
Isso sem falar na imensidade de fármacos populares de origem animal que tanto se podem encontrar na América Pré-Colombiana quanto em várias outras partes do mundo, tais como saliva, fezes, urina, extratos e pós de vísceras; bem como naqueles processos terapêuticos elementares sobre os quais já nos referimos: trepanação, fumigações, sucção, sangria etc.
Carlos Friedr Von Martius que nos deixou em Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros um precioso repertório da matéria médica indígena muito bem afirmava que “é considerável o número das substâncias medicinais do reino vegetal que os brasis costumam empregar; vimos muitas em suas mãos; de outras, ouvimos dizer como eram usadas, e temos o direito de admitir que em diversas províncias do grande país, muito mais de 100 plantas são empregadas como remédio pelos ameríndios”.
Destas cercas de 59 a 75 drogas, entraram para a nossa farmacopeia moderna. O que não é de admirar-se desde que se sabe que os brasis estavam muito mais adiantados em matéria de botânica e terapêutica vegetais que o homem civilizado ocidental, não falando somente como o lembrava Bertoni, do povo europeu mas também dos sábios, cujo empirismo, tal vimos em artigos anteriores, oferecia ainda no século XVI os aspectos mais absurdos.
É bem verdade que o próprio Von Martius assinalou não terem sido todas as plantas medicinais de origem americana utilizadas, como tais, pelos indígenas, pelo menos no Brasil.
Não somente os portugueses fizeram e ensinaram aos índios o uso, após a descoberta, de muitas plantas nativas, guiando-se pela analogia das espécies locais com as já conhecidas na Europa e Ásia, mas introduziram no Brasil, na Alimentação ou na Medicina, plantas já utilizadas em outras regiões da América, mas aqui desconhecidas pelos amerabas, como foi o caso do Cacau (Theobroma cacau).
Recenseando a contribuição de nossa flora para a matéria médica indígena, assinalou Von Martius, em primeiro lugar, as chamadas plantas sagradas ou míticas: a mandioca, o aipim. O milho, o inhame, o amendoim, o mamoeiro, a bananeira, a goiabeira, o cajueiro, a mamoneira, a cabaceira, o pinhão branco etc., muitas das quais, além de alimentos, eram e são medicamentos importantes da medicina popular.
Depois, referiu-se às plantas medicinais silvestres que não eram cultivadas como as primeiras, mas então obtidas pelos índios, como ainda hoje pelo povo, em seu estado nativo, para uso medicinal, como acontece com o angelim, a capeba, a taioba, a ipecacunha, a copaíba, a salsaparrilha etc.
Algumas destas plantas — a salsaparrilha, o guaiaco, a copaíba, a jalapa — depois de terem sido fartamente utilizadas pela Medicina Oficial caíram em desuso e podem se chamadas de drogas mortas. Outras, que ainda até pouco tempo eram de uso constante na farmacopeia oficial, entraram agora em franco declínio com os novos recursos da indústria farmacêutica como é o caso da grindélia, do boldo da quina, da ratânia, bem como de várias outras que Ramon Pardal em sua Medicina Aborígene Americana chama com muita justiça de “balanço positivo da matéria médica aborígene”.
Como não temos a pretensão, nestas notas, de fazer história da farmacopeia brasileira, mas tão somente uma introdução ao estudo da medicina popular, é dispensável um estudo minucioso e acurado das diversas meizinhas e remédios utilizados por nosso povo, quanto à sua procedência, europeia, ameríndia ou até mesmo africana.
Basta apontar a vol d’oiseau alguns remédios, recolhidos por nós em Alagoas ou registrados por outros pesquisadores em diversas regiões do Brasil, e que tiveram uso e vivência entre os nossos indígenas.
É natural tenham sido as doenças causadas pela selva e pelos animais que a habitavam as de maior contribuição para a medicina popular atual. São principalmente para as mordeduras de cobra, de maribondos, para feridas e ferimentos, os remédios oriundos dos silvícolas ainda existentes entre nós.
O professor Lages Filho, da Faculdade de Medicina de Alagoas, no seu hoje clássico trabalho sobre Medicina Popular Alagoana anotou como preventivo para mordeduras de cobras, o uso, ao pescoço, de um dente de jacaré. Von Martius (pág. 224) registrou igualmente a prática entre os índios “como preventivo contra a picada de cobras venenosas, trazem dependurados os dentes de jacaré; as raspas destes dentes são ingeridas com água contra mordedura de cobras”.
Para mordeduras do mesmo réptil, em sua obra Vida Roceira, Leôncio de Oliveira registrou o uso do Cipó de Cobra, não lhe dá o nome científico mas é de crer se trate do Piper marginatum, Jacq também conhecido sob o nome de Erva de Nossa Senhora e mais comente de Capeba, pois sob tais nomes vem também indicado para mordedura de cobras no Receituário dos Melhores Remédios Caseiros, obra de medicina popular editada pela Livraria do “O Pensamento”.
É possível que seu nome e sua indicação terapêutica derivem do aspecto serpentiforme do seu caule que na descrição de Guilherme Piso (De Medicina Brasiliense) “ora trepa elegantemente pelas árvores vizinhas, ora repta pelo chão como uma cobra”. Sem a menor dúvida vem seu emprego para tal fim dos amerabas, segundo o ensino de George Marcgrave em sua Historiae Rerum Naturalium Brasilae (ed. Museu Paulista): “esta planta só tem o cheiro erváceo; suas folhas constituem excelente remédio contra mordeduras de animais venenosos, como serpentes, quer nos homens, quer nos animais, quando se aplicam socadas às feridas, saram sem emprego de outro medicamento”.
Ainda para mordedura de cobras há um remédio popular alagoano cuja origem pode remontar à medicina ameríndia. Trata-se da ponta de veado que, entre nós, se usa para tirar veneno das mordidas de cobra. Conta-nos Von Martius (pág. 225) que “a armação do veado (Cervus palidosus Desm. Susuapara na língua tupi), em pedaços quadrangulares de uma polegada de comprimento, reduzem-nos quase a carvão, e neles gotejam aquela banha. Os pedaços do chifre, assim preparados, são amarados sobre as mordeduras de cobras das quais absorvem todo o veneno.
Para mordida de maribondos, Mário de Andrade, em Medicina dos Excretas (Namoros com a Medicina), registrou em Brodowski (São Paulo) o uso de urina de gente misturada ao fumo (Nicotina tabacum). Ainda hoje diz o professor Pirajá da Silva, tradutor e prefaciador da obra de Von Martius, aconselha-se a urina de gente para sedar o prurido causado pela urtiga e pelo cansanção (Urtica urens L).
Pois bem, o Conde Hermano Stradelli, no seu Vocabulário Nheêngatú (a referência é do professor Pirajá da Silva em anotação a obra de Von Martius) dizia que para mordedura de Tocandyra “grossa e comprida formiga preta, armada de um esporão, como o das vespas, cuja ferroada muito dolorosa chega a produzir febre” os índios usavam, e com eles muitos civilizados, para deixar de doer a urina de um indivíduo do sexo diferente.
Para o tratamento de feridas e úlceras, Leôncio de Oliveira registrou três meizinhas igualmente usadas pelos amerabas. Uma é a folha do algodão (Gossypium herbaceum) pisada; a outra é a banha do urubu (Catharthes foetens); a terceira é o óleo de Andiroba (Carapa guianensis, Aubl).
Não havia propriamente especialidade da banha do urubu entre os indígenas porquanto todas as banhas animais eram usadas para o tratamento das feridas, consoante informa Von Martius: “Atribuem grande eficácia a diversas espécies de gorduras animais, para resolver tumores e dar melhores granulação às úlceras malignas”. Isto se refere não somente à banha do jacaré, mas também à da onça, do veado, do galo e da galinha (pág. 227).
Já os dois outros medicamentos apontados por Leôncio de Oliveira para tratamento das úlceras eram de uso perfeitamente igual entre os índios. O algodão era assim registrado por Von Martius (pág. 234): “as cataplasmas de algodão americano (Cossypium vitifolium) curam úlceras malignas crônicas, com a mais surpreendente rapidez”. O óleo de Andiroba é medicação referida por Thevet. Segundo Estevão Pinto, o cronista fez referências ao uso, nos ferimentos produzidos pelas flechadas, do Penabsou que não era mais do que “a nossa conhecida andiroba (Carapa guianensis Aubl.), aliás ainda em uso no amazonas, conforme registro de Mário Ypiranga Monteiro.
Ainda para o tratamento das feridas há um remédio popular que pode ter origem indígena. É a folha do Fumo (Nicotiana tabacum), usada sobre a chaga em compressas. O dr. Ramon Pardal registra o uso do Tabaco, especialmente pelos Guaranis no Sul do Continente.
Para reumatismo é meizinha muito conhecida no Brasil e registrada, entre outros, por Sebastião Almeida Oliveira em São Paulo, a banha de jacaré. Von Martius atestava o seu uso entre os amerabas dizendo: “empregam a banha fresca do jacaré em fricções nos tumores reumáticos e, em pomada, nas feridas” (pág. 225).
Para os vermes dois remédios populares, aliás usados durante muito tempo pela Medicina Oficial, têm origem indígena: o leite de mamão jaracatiá (Jaracatiá dodecaphylla Vell.) e a Gameleira (Ficus doliaria M.). Do primeiro nos diz Von Martius: “Os índios empregavam o leite dessas árvores (Carica papaya e outras espécies como C. digitada, Aubl. E C. dodecaphylla Vell. — o jaracatiá dos tupis) contra os vermes” (pág. 242).
O segundo remédio é assim abonado por Ramon Pardal, (Op. Cit.); “A medicina guarani empregava também outros anti-helmínticos entre os quais mencionaremos, por haver passado à medicina popular do Brasil, em primeiro ligar o látex de diversas espécies de Moraceae. Dominguez menciona entre elas o Ficus anti-helmíntica Mart. (Coajinguva em tupi) e Ficus doliária, Mart., conhecida em linguagem popular pelos nomes de Gameleira ou Lombrigueira branca, no norte da Argentina, sob o nome de Higuerón bravo, e em Guarani pelos nomes de Guapoi e Iba-pohy” (pág. 111).
Para impinges (Herpes circinado, Tinea corporis) dermatose causada por diversas espécies de Trichophyton e Microsporum, costuma-se, em Alagoas, colocar o leite do mamão (Carioca papaya). Era prática, senão dos tupis, pelo menos de outros ameríndios. Ramon Pardal nos diz que a Carica papaya se empregava no antigo Peru para tratamento de algumas dermatoses rebeldes. E cita Cobo que informava curar o leite que sai da Papaya verde as impinges e a sarna “porque queima como solimán” (pág. 175).
Para blenorragia, dois remédios populares (um dos quais mereceu durante algum tempo o endosso da medicina oficial) têm origem ameraba: a copaíba e a embaúba. Seu uso é muito divulgado no Brasil e entre outros registrou-lhes o emprego entre os caipiras do sul o sr. Leôncio de Oliveira (op. Cit.).
O primeiro — Copaífera sp. Já descrito por Jorge Marcgrave e por Guilherme Piso (op. cit.) era assim indicada por este último: “também estancam os fluxos femininos, os cursos do ventre e as gonorreias” (pág. 65). A embaúba ou embaíba (Crecopia adenops – Mart.) foi largamente usada pelos brasis e no capítulo de sua obra — Do mal venéro — Piso, entre os vários símplices utilizados incluiu esta morácea: Contra as retenções de urina e inflamações, depois de uma unção fria no dorso do períneo, fomentam com emolientes as partes genitais, isto é, com decocção de ramas de Basurinha e Imbaíba, etc. e “O suco espremido dos rebentos, dotado de faculdade refrigerante e adstringente, metido em papas de Tapioca, estanca o fluxo quente do ventre. Detém as menstruações de curso excessivo e as fluxões virulentas dos genitais” (pág. 81).
Outro remédio popular muito usado entre nós é a Jurubeba branca — Solanum paniculatum, indicado quer para doenças do fígado e registrado para tal fim no Ceará por Eduardo Campos, na Bahia por José Lima e em Alagoas por nós e por Lages filho, que como diurético para várias doenças do aparelho urinário. Dela dizia Piso (op. cit) pág. 95: “A sua raiz excede todas as outras pela virtude e eficácia e é muito mais amarga, sobretudo a do macho cujas partes são muito tênues. Pois a sua só decocção e educente das urinas retardadas. Aplicam-se muitas vezes com sucesso em lugar das raízes aperientes, para eliminar as obstruções do fígado e das parastastas”.
E assim vários outros remédios: o Mentrastro (Ageratrum conysoides) para corrimentos, já abonado por Piso (pág. 37); o Camará (Lantana camará e outros) para catarro e bronquite, também encontrado em Piso no capítulo dos Catarros (pág. 24); o Araticum do rio (Anona spinacens) indicada por Marcgrave como cicatrizante dos abcessos e usada pelos caipiras, segundo Leôncio de Oliveira, para tratamento das feridas: o Pinhão de Purga (Jatropha curcas), conhecido e muito usado purgante popular, referendado por Ximenes (apud Marcgrave página 97) na Nova Espanha para o mesmo fim; o chá das folhas de goiabeira (Psidium guajava), remédio caseiro de tanto utilidade desta forma indicado por Marcgrave (pág. 105): “Alguns dizem que o cozimento é proveitoso e aquece o ventre lânguido por causa fria. Das folhas de uma e outra espécie prepara-se um xarope utilíssimo contra o fluxo ventral”.
Contudo nem sempre se pode garantir, a não ser em uns tantos vegetais de origem americana que a prática médica popular, embora também encontrada entre os brasis seja realmente de origem indígena. Isso porque os remédios foram obtidos em contatos anteriores com os brancos. De modo que poderiam ter eles aprendido com os europeus algumas de suas práticas médicas. É o que acontece, por exemplo, com o uso da urina de vaca para a tuberculose. É remédio usado em algumas regiões do Brasil, inclusive entre nós em Alagoas. Pardal refere que os Aztecas empregavam nos estados consuntivos do aparelho respiratório uma droga composta de urina (não especifica se é de vaca), lagartixa e carvão vegetal.
Acontece, porém, que a droga foi dos remédios indicados por Plínio, o Antigo, em sua célebre História Natural e foi largamente usado na Medicina Medieval.
Poderia a meizinha — como tantas outras excrementiciais — ter sido uma invenção paralela: ao mesmo tempo entre os astecas e os romanos. Mas é mais fácil pensar que tal prática médica popular nos tenha vindo dos romanos, através de Portugal, que dos antigos mexicanos.
Sem falar no tratamento da ASMA que envolvia desde chá das sete porteiras (o individuo arrancava uma talisca de sete porteiras e fazia o chá para dar ao asmático),chá de asa de vaga-lume (o problema era encontrar e tirar as asas do vaga-lume),chá de cocô de capivara (fazia um chá e dava ao asmático – lógico, sem ele saber o que era), chá de cobra cascavel (mata a cobra, tira o rabo e a cabeça e do meio, faz-se o chá colocando pedaços e dá ao asmático). Fabulosas estorias descritas em Gazeta popular a algumas revistas médicas. Lógico – são folclores!