Maestro Valério e a épica batalha musical da Praça dos Martírios
Valério de Farias Pinheiro nasceu em Maceió no ano de 1848, informa Billy Magno, um dos pesquisadores da vida deste artista. Não se tem informações sobre seus pais e outros familiares.
As informações mais antigas sobre ele foram registradas pelo tipógrafo e jornalista Antônio Alves, que foi em 8 de janeiro de 1881 um dos três fundadores e posteriormente proprietário do Gutenberg, onde permaneceu até janeiro de 1892, quando vendeu o jornal para Euzébio de Andrade.
A partir de 19 de janeiro de 1896, Antônio Alves publicou no Gutenberg uma série de artigos sob o título Notas de Meu Canhenho, homenageando o maestro Valério, que falecera no ano anterior.
Ao historiar sobre como surgiram algumas danças, revela também informações importantes sobre a origem da quadrilha junina em Alagoas. Esta crônica foi escrita ainda em 1895, no Rio de Janeiro, onde o jornalista foi morar.
Mestre Torres
Em meados da década de 1860 surgiu em Maceió “um velho de tez bronzeada e lanoso cabelo grisalho, bigode curto e espesso, magro e muito alto”, que se estabeleceu em uma das casinhas da rua da Lama, afirma Antônio Alves.
Segundo o jornal A Estréa, de 16 de dezembro de 1878, era o baiano Joaquim de Santana Torres, que chegou a Maceió em 1854 como músico de um batalhão de linha que estacionou na capital. Como já tinha 50 anos de idade, pediu baixa por conclusão do tempo de serviço e resolveu permanecer onde estava.
Mestre Torres, como ficou mais conhecido, era um tipo esquisito, pouco comunicativo. Não fumava e nem aspirava rapé, mas tinha o vício de “fazer estalar a língua ao sabor voluptuoso de vermelhos e causticantes molhos de malaguetas, afirmando-se que também as ingeria uma a uma até completar dúzias, “com casca e tudo, como o fazem os sabiás”.
Com o correr dos anos passou a ser notado na cidade por ser bom músico e por suas maneiras exageradas. Passeava pelas ruas, sobraçando um chapéu de sol amarelo, “sempre barbeado e correto no trajar, aprumado como um prego, o andar pausado e solene, sustentando com hombridade o peso de seus sessenta janeiros”.
Quando era cumprimentado na rua, respondia com uma flexão e dizia “ilustríssimo senhor” e “continuava seu caminho, pé ante pé. procurando talvez poupar as solas das botinas lustrosas, botinas que tinha o cuidado de espanar com o lenço branco, e quando em quando, para livrá-las da poeira da rua”.
Em sua casa dava aulas de música e dança. Na sala mantinha ao seu lado “uma flauta de cinco chaves, uma trompa lisa — que diziam ser perito, métodos de dança e de música vocal e instrumental, antigas partituras para banda marcial e coro, inclusive a celebre Missa da Formiga, assim chamada pelo aluvião de fusas que bordavam os pentagramas da partitura”.
Lá estava também a Arte do Missurunga, da Bahia, “coisa rara e profunda, e também a arte do Thomaz Cantuária, de Pernambuco, a qual principiava assim: ‘Música é a ciência ou arte que nos ensina etc’; além de outros livros inestimáveis que estavam escondidos entre os alfarrábios e debaixo de chave para não serem folheados por profanos, livros em que existiam as regras dos contrapontos, os segredos da música, e outras coisas que não se andava a ensinar assim a todo o mundo”.
Sant’Anna, Dom Bento e a quadrilha francesa
Antônio Alves registrou que até essa época não constava ter existido em Maceió curso regular de dança, mas “várias pessoas, principalmente na alta roda, sabiam dançar a contradança francesa, embora com as regras assinaladas nos métodos do mestre Torres”, e que essa dança aparecera em Alagoas nos princípios de 1840.
Cita como origem da informação o coronel Pedro Paulino da Fonseca, que localizou esse surgimento por ocasião da sedição de 1839, que foi controlada uma força de linha vinda de Pernambuco e que ficou alojada em Alagoas, atual Marechal Deodoro.
Um cadete da Artilharia de nome Sant’Anna fez amizade com os filhos do major Mendes da Fonseca, coincidentemente um dos cabeças da sedição que tinha sido levado para o Rio de Janeiro.
Foi em sua casa, na rua dos Mortos, que diversos rapazes, “estudantes de latim — Jacob Leite, Sátiro Barbosa, um filho do alferes José Felipe do Rego e alguns outros que, em companhia dos filhos de Mendes — Hermes, Severiano, Manoel [futuro Marechal Deodoro da Fonseca], Pedro e Hypolito —, ensaiavam danças e representavam farsas e comédias em teatros que armavam no quintal e por mais de uma vez na rua”.
Afirma Antônio Alves que “foi Sant’Anna quem introduziu o uso das contradanças francesas aproveitando esses rapazes e ensaiando-os sempre que havia pessoal para quatro pares”. Foram essas danças que décadas depois se transformariam na quadrilha junina.
Entretanto, antes de Sant’Anna, um pernambucano conhecido como Dom Bento já havia levado a dança para a antiga capital de Alagoas.
Em Recife era reconhecido como exímio dançarino de solo inglês, gaivota e minuete. Sua destreza nos passos e agilidade nas pontas dos pés fizeram com que a sua fama chegasse ao palácio real em Lisboa.
Foi chamado a Portugal a pedido de D. Maria I (conhecida como “a Piedosa” ou “a Louca”, Rainha de Portugal e Algarves de 1777 até 1815), que demostrou interesse em ver dançar o pernambucano. E lá se foi o Bento para se exibir diante de toda a fidalguia lusitana. Foi muito aplaudido. Entusiasmada, D. Maria I exclamou:
— Bravos, Dom Bento!
Sem demonstrar qualquer perturbação ou acanhamento, Bento fez mais uma pirueta e cumprimentou a rainha dizendo que a palavra real não voltava atrás.
No fim da festa, para surpresa de todos, D. Maria I, que demonstrava alguma alienação mental, ordenou que seu ministro “lavrasse o alvará do título de nobreza concedido ao dançarino, com pensão, em vida”.
Vale lembrar que foi ela que iniciou seu governo proibindo terminantemente a promoção das artes no Brasil.
Já sendo oficialmente um nobre, D. Bento regressou ao Brasil, mas não quis voltar a Pernambuco.
Temia as perseguições que sofreria por ser um fidalgo negro. Optou por se fixar na cidade de Alagoas, onde permaneceu até sua morte, mas “desfrutando a pensão de algumas dezenas de cruzados novos que lhe eram pagos pela coletoria, por ordem de sua majestade a rainha”.
Quando desembarcou na atual Marechal Deodoro, D. Bento carregava com ele seus conhecimentos sobre música, arte dramática e as danças modernas de muitos pares.
Mestre Torres de volta
Tendo como antecedentes D. Bento e o cadete Sant’Anna, coube ao mestre Torres somente “a introdução do método e a divulgação de outras danças até então desconhecidas; podendo-se afirmar que depois de sua propaganda, encaminhada até a cidade de S. Miguel, foi que arraigou-se a predileção popular pela dança” em Alagoas.
A sala de aula do Mestre Torres era simples. No seu centro ele ficava de pé com uma tabica na mão ou sentado “em sua cadeira colocada num angulo da sala, trançadas as pernas, e fazendo soar a flauta, representava a orquestra, e essas funções duplas pareciam torná-lo mais respeitável, mais solene”.
“Meninas que mal sabiam o bê-á-bá, moças casadoiras e outras já chegando a tias, meninos de jaqueta e homens barbados, representando diversas raças e condições sociais, ali se achavam enfileirados, sisudos, respirando medrosamente, olhando-se a furto, muito atentos às observações do mestre, que arengava sobre as saídas e mesuras e os diversos modos de figurar”.
“As moças deviam, inclinando o busto para diante, arquear os braços e, com o polegar e o index, segurar de ambos os lados o vestido, pouco acima da curva da perna, de modo que, suspendendo-o na frente até a altura do tornozelo, deixassem ver os pés calçados em sapatinhos de marroquim vermelho, de entrada baixa, voltados para a direita um, para a esquerda outro, de acordo com as regras da arte”.
As danças eram as belas-flores, “com seus roubos de damas e numerosos giros de produzir tonturas, as imperiais com o solo e coroação das damas, a gaivota, a varsoviana, e até o respeitável solo inglês“.
Na calçada a “arraia miúda” disputava a melhor posição “para espiar aquelas coisas bonitas pelas frinchas da porta e de janela”. De vez em quando, alguém reclamava por ter os pés pisoteados e logo surgiam empurrões e socos.
“O galope não era conhecido ainda, e quando mais tarde apareceu foi excomungado pelo mestre Torres, por isso que os principais autores, cujos métodos ele tinha-os todos, não cogitaram de semelhante dança, que, conforme indicava o nome, bem ‘parecia uma dança de cavalos, era uma indecência’”.
Mestre Torres também era conhecido pela forma ríspida como punia os erros cometidos por seus alunos.
Os menores eram obrigados a “tomar-lhe a benção e de sujeitar-se ao relho e à palmatória, uma Santa Luzia de jacarandá, obra de gancho de algum aprendiz de carpinteiro, o diâmetro de uma bolacha grande, de dois vinténs, pesada como chumbo, feia, antipática, e que devia ficar horrível se a vestissem de saias no dia das férias”.
Mesmo punindo os erros com todo rigor, sua escola era elogiada por obter bons resultados, principalmente agradando as mães mais pobres, que viam ali a possibilidade de seus filhos serem dotados “com alguma coisa que os tornassem recomendáveis à posteridade”.
Elas citavam como exemplo os músicos da cidade que ganhavam algum dinheiro cantando nas igrejas ou dando lições em casas ricas. As meninas aprendiam a dançar, “para não passarem vergonha”, mesmo “era muito bonito saber arrastar os pés numa sala”.
Assim, por muitos anos Mestre Torres manteve sempre cheia sua sala de alunos de ambos os sexos e das diversas origens sociais, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento das artes da dança e da música em Alagoas
Segundo o jornal de Maceió A Estréa, de 16 de dezembro de 1878, Mestre Torres faleceu às 7 horas da noite de 11 de dezembro de 1878, aos 74 anos de idade.
Valério de Farias Pinheiro
O menino Valério aprendeu a música e a dança como aluno do Mestre Torres, mas a duras penas como registrou Antônio Alves.
“Foi ali, encurralado como um boi bravo, que conseguiram meter o Valério, rapazinho delgado mas cheio de saúde, muito vivo, ladino, endiabrado, e, dizia-se, impossível de corrigir com pancada, de que já tinha o couro grosso, ou conselhos que entravam-lhe por um ouvido e sabiam pelo outro”.
Mestre Torres fora prevenido que Valério era um menino travesso e não deveria “passar-lhe a mão pela cabeça”, e sim “puxar bem por ele para fazê-lo gente”. Assim foi feito: no primeiro dia na escola levou meia dúzia de bolos para “amansar”.
Daí por diante surgiu um longo embate entre o rígido professor e o aluno peralta.
Mestre Torres percebia que ele era “encapetado, terrível”, mas tinha boa memória, para resumir o que entendia como o talento que brotava do jovem Valério.
Era duro com os aprendizes, mas sentia-se orgulhoso em ver os resultados do seu trabalho. Uma noite, foi despertado por um concerto musical à sua porta. Eram antigos alunos que foram homenagear o velho mestre. Ele abriu a porta, abraçou a cada um e chorou como criança.
“Era o prazer dessas lágrimas que o mestre Torres queria ter também para com o Valério, cuja vocação para a música reconhecia com o coração cheio de afeto que o rosto sempre carregado não deixava transpirar”.
Valério sofreu muito com “a enorme férula e o bacalhau de três pernas, de couro cru, que se enroscava nos membros como serpente e arrancava a pele, como unhas de gato, e a que o velho galhofeiramente chamava o Tutú”.
Foi durante uma dessas pisas que Valério, cansado de apanhar, jogou o velho no chão e fugiu para a rua. Alguns disseram que o mestre fora vítima de uma cabeçada do menino.
Passou dias perambulando pela cidade até que foi agarrado e levado até a presença do Mestre Torres. “Fechadas as portas à chave, amarrado o Valério de pés e mãos sobre um banco de madeira, o corpo descoberto, começou então a vingança do mestre, que foi inexorável como um inquisidor romano”.
Valério rapaz
Mantendo suas características de criança, Valério se fez um jovem “folgazão, pilhérico, divertido, de modo que, em proveito próprio não procurava tirar partido de tudo quanto aprendera e que os outros invejavam”.
Livre das limitações impostas pelo velho Torres, “tinha sede de gozar a mocidade, e seu primeiro cuidado foi meter-se na troça”. “Valério expandiu sem rebuços sua alma de moço e de artista”.
“Dedilhou o violão e tangeu a flauta, em serenatas esplêndidas, com a ternura de um enamorado menestrel antigo; o eco de sua voz grave, melosa e homogênea, voz que o cultivo iria torná-lo capaz de prodígios, muitas vezes, quebrando a doce calma das noites enluaradas, foi longe acender desejos ou despertar saudade, ora modulando a música alegre da chula brejeira, ora interpretando com a probidade de artistas as inimitáveis modinhas de Joaquim Antônio, esse outro artista da expressão, do sentimento musical”.
“Apreciou as bambochatas nas paragens amenas e solitárias, lá para as bandas do Jacarecica, dos Remédios e Fernão Velho e sabia-lhe melhor, por ter o cunho indígena, o insolente saracotear de um coco do que todos aqueles passos e figuras das danças do mestre Torres”.
“Uma vez lembrou-se de dançar o solo inglês calçado de tamancos, no teatro, e com tamanho desembaraço o fez que, se fosse visto pela rainha de Portugal, ela se convenceria de ter sido lograda por D. Bento”.
“Tinha predileção pelo teatro, onde ser visto sempre ou fazendo parte da orquestra, e então se preparavam todos para ouvir um bonito solo de flauta, ou como simples espectador em companhia de João Caetano, Sampaio, Carlos Zanetti e outros belos rapazes, espirituosos trocistas daquele tempo, e, neste caso, a plateia não cessava de rir, ouvindo de instante a instante um espirro desconcertado, o cacarejar de galinhas, grunhidos de porcos, berros, latidos e um aluvião de chistes, cujo autor não era fácil descobrir”.
Mesmo levando a vida na troça, não se descuidava da arte. Continuava a cultuá-la, mas, como diletante. Não tinha maiores responsabilidades como profissional.
Suas primeiras participações em grupos musicais foram nas fanfarras dos Caixeiros e na de Santa Cecília, onde tocava flauta, seu instrumento predileto, mas executava com a mesma maestria trompete, clarineta, requinta, ofclide (fingle), instrumentos de corda e de percussão. Além disso, orquestrava, compunha e regia peças nas orquestras.
Em 1872 apareceu em Maceió a primeira companhia lírica, contratada pela província por dois contos de reis para apresentar o Trovador, Ernani, Barbeiro de Sevilha e outras grandes peças.
Era uma zarzuela, gênero lírico-dramático de origem espanhola. Seu maestro, Raphael Granados, tinha passado uma temporada em Recife, onde se anunciava, em outubro de 1870, recém-chegado à cidade, como professor de canto e piano, instrumento que também afinava, “tudo por preços convencionados”.
Também se oferecia para compor “tangos, habaneros, romanzas, canções hespanholas para piano e canto, por preço módico”. Quem pretendesse contratá-lo deveria se dirigir ao “Hotel Central, rua larga do Rosário n. 37, onde reside”.
Quando chegou a Maceió no início de 1872, Granados contratou alguns músicos para a apresentação de sua companhia, entre eles ganhou destaque o jovem Valério, que a partir de então passou a ter mais confiança como artista e a se dedicar com mais afinco à música.
Quando começou a ser reconhecido por suas habilidades musicais, foi insuflado por um amigo a tentar a carreira no Rio de Janeiro, onde conseguiria um público maior. Chegou a embarcar em um paquete fundeado em Jaraguá, mas quando deste se desatracava o último bote, desistiu da viagem ao descobrir que não suportaria viver longe de sua terra natal.
Em 1875, seu endereço como músico era divulgado como Rua do Palácio, nº 12. Era a continuação da Rua do Comércio, descendo para a Boca de Maceió, atual Praça dos Palmares. Dois anos depois tinha se mudado para a Rua da Praia.
Nesta época, provavelmente já estava casado com Maria Pastora de Farias Pinheiro. Não há registros de filhos do casal.
Em 1877, regia a Filarmônica dos Artistas, da Sociedade Recreio Filarmônico Artístico, que tinha sido fundada em 15 de agosto do ano anterior.
Em janeiro de 1882 anunciou no Gazeta de Notícias que afinava pianos e ensinava música. Morava na Rua do Macena nº 42. No ano seguinte era o escrivão da irmandade de São Benedito, que tinha como juiz Joaquim Alves de Carvalho e como tesoureiro, Guilherme Moreira da Silva.
Quando da criação do Montepio dos Artistas em 11 de agosto de 1883, Valério foi o vice-presidente do Conselho Provisório daquela instituição. O presidente era Manoel Menezes. Naquele mesmo ano foi contratado para assumir a regência da banda de música da União Musical Euterpe Pilarense, do Pilar, onde passou a morar.
A batalha musical da Praça dos Martírios
O famoso confronto musical ocorrido na Praça dos Martírios começou na noite de 28 de outubro de 1887, uma quarta-feira, e somente terminou às 10 horas da manhã do dia seguinte, quando o pau quebrou entre os partidários da Filarmônica dos Artistas, regida pelo Maestro Valério (tinha voltado a morar em Maceió naquele ano), e da Filarmônica Minerva, do Maestro Benedito Raimundo da Silva, o Benedito Piston.
Os dois grupos musicais foram escalados para tocarem na novena dos Martírios e já se sabendo da rivalidade existente entre eles, ficou acertado que após a festa, ambas se retirariam ao mesmo tempo. Esse acordo se deu numa reunião na delegacia de Polícia, às 11 horas da manhã de 28 de outubro, com a presença dos dois maestros.
A Filarmônica dos Artistas ocupou o tablado ao lado da Igreja, com seu público mais popular (sociedade do Zé-povinho, segundo o Gutenberg de 1º de novembro de 1887), e a Minerva se apresentaria no coreto instalado no centro da praça. Esta tinha como seguidores “cidadãos de certa posição social, com certa ilustração”.
O delegado de Polícia, assim que teve fim o evento, procurou os Artistas e pediu para que encerrassem a apresentação. Percebendo que no Coreto a Minerva continuava a tocar sem ter sido avisada para também parar, os Artistas informaram à autoridade que somente sairiam dali quando a concorrente também saísse. Corriam o risco do seu gesto ser entendido como de admissão de derrota.
A partir de então, o que eram duas apresentações artísticas, passou a ser um embate de agremiações, cada qual com aproximadamente 300 partidários a insuflarem os maestros e seus músicos.
No desafio musical não se podia repetir uma peça sequer. Quem assim procedesse ou parasse de tocar seria considerado derrotado.
Mesmo com esse clima de competição em nível exacerbado, o delegado de Polícia, dr. Mendes, e seu chefe, dr. Leite e Oiticica, deixaram a praça e foram dormir.
Na manhã seguinte, as duas agremiações ainda estavam se digladiando. Algumas pessoas intercederam junto aos maestros para evitar algo pior, mas sem êxito. O maestro Valério tentou por várias vezes retirar seus músicos da praça, mas foi impedido pela torcida, que via nisso uma derrota inadmissível.
Perto das 10h da manhã, depois de horas e horas de provocações entre os partidários, teve início uma briga nas proximidades do Coreto da Minerva, com muita gente de faca na mão. O resultado foi dezenas de feridos e muito sangue no chão da praça.
A confusão somente terminou com a intervenção de alguns cidadãos, que conseguiram separar os combatentes e retirar a Filarmônica dos Artistas do local, que assistia a tudo de longe, ao lado da Igreja.
O cônego Júlio de Albuquerque, na época morador de uma casa ao lado da Igreja, escreveu para o Jornal de Alagoas, em 1954, que às 11h encontrou debaixo de sua cama um músico com seu instrumento, temeroso de ser linchado pelos adversários. “No dia seguinte, numas bananeiras no quintal, foi achado um bombardino com manchas de sangue”, lembrou o religioso.
O roubo da partitura
Antônio Alves, em sua crônica Notas de Meu Canhenho, de 1896, revela outro episódio entre filarmônicas na mesma praça dos Martírios e também envolvendo o Maestro Valério.
Desta feita a disputa musical se deu entre a Filarmônica dos Artistas e a Banda de Música da Força Policial, que se instalaram em palanques próximos.
Como sempre havia a possibilidade de surgir uma briga entre os torcedores, os boatos se espalhavam rapidamente dando conta que a polícia teria no local alguns paisanos para conter os intrépidos “Artistas“.
Quem primeiro ocupou seu palanque foi a Filarmônica dos Artistas, que rapidamente se preparou para iniciar sua tocata.
No outro tablado, tranquilamente o maestro da Força Policial arrumava as partituras nas estantes e não escondia um certo ar de superioridade, própria dos que se prepararam para vencer.
Distribuía as últimas partituras, quando os “Artistas” começaram a tocar. Rapidamente seu rosto passou a demonstrar desconfiança, depois espanto e logo raiva. Seus músicos trocavam olhares inquisidores entre eles, sem entenderem o que estava acontecendo.
No púlpito do palanque dos Artistas, o Maestro Valério se esforçava para conter o riso.
Quando os Artistas concluíram sua peça, fez-se silêncio e todos se voltaram para o palco da Banda de Música da Força Policial, de onde somente se ouviam murmúrios entre o maestro e os músicos. De repente, o regente pediu permissão ao comandante e se retirou com seu grupo.
O público não entendeu essa reação e muito se especulou sobre o motivo, mas ninguém chegava à conclusão alguma. Dias depois, Maceió passou a saber o que realmente aconteceu naquele evento.
O Maestro Valério, sabendo que seu colega da Polícia havia obtido de última hora uma peça inédita e muito bonita, conseguiu se aproximar sorrateiramente do local de ensaio e ao ouvi-la, concordou com a beleza da música e teve uma ideia.
Fez brotar o seu lado trocista da juventude e resolveu surpreender o colega.
No dia seguinte, com lápis e papel na mão entrou pelo brejo que existia atrás do Quartel, onde hoje fica a Rua Pedro Monteiro, se aproximou o máximo do local onde ocorriam os ensaios e passou a anotar sua partitura.
Ainda sujo de lama, voltou à sede e escreveu as partituras para todos os instrumentos da sua Filarmônica. Assim, surpreendeu o maestro da Polícia, que ficou sem saber o que fazer ao ouvir a música que estava pronto para executar ser tocada pelo concorrente.
Bateu em retirada, derrotado pela malandragem do colega Valério.
O fim
No legado musical do Maestro Valério consta, entre outras peças, o Hino da Abolição, a Missa de São Benedito e o Dobrado Dias Cabral (1872).
Antes de falecer de malária em Maceió no dia 20 de janeiro de 1895, foi contratado como maestro da Filarmônica Minerva, sua antiga rival.
Valério morreu com 46 anos de idade, como consta de sua certidão de óbito. Segundo Billy Magno, foi “enterrado no cemitério de Nossa Senhora da Piedade ao pé da calçada do velho cemitério (no dizer de Virgílio Campos). Em 2019 tentei localizar sua lápide mas nada foi encontrado, nem na calçada nem em qualquer outro lugar do cemitério, assim como seu rival/amigo Benedicto Silva. Para completar o descaso, o antigo livro de registro de sepultamento da velha necrópole está desaparecido“.
Billy Magno também acredita que não é possível determinar se ele tinha feito 46 anos em janeiro até o dia 20, data da morte, ou se tinha 46 e faria 47 nos meses seguintes.
Ticianeli, parabéns por relembrar o Professor Valério, como era chamado. Ao que parece não existe uma única fotografia ou quadro dele e até mesmo o seu dobrado Dias Cabral, composto em 1872 que em 1966 fazia parte do acervo do IHGAL está desaparecido.
Tenho a certidão de óbito. Consta que faleceu vitimado por uma Febre Palustre (hoje conhecida por Malária) aos 46 anos de idade. Tendo falecido a 20 de janeiro de 1895, supõe-se que tenha nascido no ano de 1848 ou janeiro (até um dia antes da morte) de 1849. Sua esposa chamava-se Maria Pastora. Não há menção sobre seus pais ou filhos na dita certidão. Enterrado no cemitério de Nossa Senhora da Piedade ao pé da calçada do velho cemitério (no dizer de Virgílio Campos). Em 2019 tentei localizar sua lápide mas nada foi encontrado, nem na calçada nem em qualquer outro lugar do cemitério, assim como seu rival/amigo Benedicto Silva. Para completar o descaso, o antigo livro de registro de sepultamento da velha necrópole está desaparecido.
Muito interessante também foi a descoberta de quem finalmente era o mestre Torres e o ano exato da sua chegada a Maceió.
Linda história da música em Alagoas, Ticianeli! As fotografias são preciosas ilustrações do desenvolvimento arquitetônico das duas capitais alagoanas. Seu trabalho é da maior importância para quem vive ou viveu em Alagoas, principalmente agora, com o futuro desaparecimento de antigos bairros como Bebedouro. Meu amigo Bruno Cavalcanti me enviou a fotografia da arruinada casa onde viveu Dra. Nise Magalhães da Silveira. Agradecendo-lhe a gentileza, falei das conversas com a Dra, durante mais de 20 anos, quando ela me narrava a infância e adolescência naquela casa maravilhosa, onde sua mãe, a maior pianista de Alagoas tinha dois pianos de cauda na sala de música.
Luitgarde, o Bruno me mostrou a foto da casa. Foi uma descoberta importante. Agradecemos pelo incentivo!
Grata surpresa, parabéns à iniciativa de retratar a história da cultura da música em Alagoas. Vamos ajudar as atuais Sociedades Musicais que necessitam de atenção e apoio dos órgãos de fomento à cultura em Alagoas.
Na certidão de óbito consta a idade de 46 anos. Não é possível determinar se ele tinha feito 46 anos em janeiro até o dia 20, data da morte ou se tinha 46 e faria 47 nos meses seguintes.
Billy, acrescentei sua observação.