Fernando Lopes: uma obra cíclica

Tríptico dos Evangelistas, obra de Fernando Lopes de 1963

Por Eduardo Xavier*

A produção artística de Fernando Lopes possui uma singularidade que o distingue da produção dos artistas de renome, a de ter sido cíclica. Pintor por excelência, e gostava de ser chamado de pintor, elogiou através de sua pintura sua cidade natal, São Miguel dos Campos, onde nasceu em 1934, no Povoado Bernardo Lopes — Bernardo era seu tio-avô —, hoje Usina Roçadinho.

Fernando Lopes nasceu em 1934, no Povoado Bernardo Lopes, hoje Usina Roçadinho em São Miguel dos Campos, Alagoas

Fernando Lopes foi um artista por vocação e um pintor por necessidade da alma. Para uma maioria de admiradores, sua obra vem à lembrança marcada pela figura humana nas representações das Madonas, dos Anjos e dos Santos, obras tão características dos anos 60.

No entanto, há de se lembrar de Fernando não apenas como pintor da figura humana, mas como o pintor das paisagens urbanas com seus exuberantes casarios e o das paisagens de sua terra natal.

O pintor das poucas naturezas mortas — pintou-as sim, mas muitas vezes como pretexto para compor o ambiente estético da obra —, das cenas circenses, o retratista dos personagens anônimos e de conhecidos, entre tantos amigos e amigas…

Não se pode olvidar o dramático criador de marinhas e árvores retorcidas ao final da sua vida artística (aí sua obra volta ao ciclo inicial de sua vida artística) e ainda o conhecido tapeceiro — em parceira com sua bordadeira-mor, Maria Ivo — produzindo obras insuperáveis da tapeçaria brasileira.

Santa Bárbara, pintura de 1963 de Fernando Lopes

Santa Bárbara, pintura de 1963 de Fernando Lopes

Seus primeiros trabalhos dos anos 50 vagueiam entre uma tentativa de revisitar o Renascimento e ao mesmo tempo o Expressionismo, como na dramática “Pietà” de 1953 em óleo sobre madeira pertencente à excelente coleção de seu irmão, Cláudio Jorge de Lima Lopes ou o desenho a bico de pena do mesmo ano dessa “Pietà”, em minha coleção. Esta “Pietà” é uma tentativa expressionista enquanto o bico de pena, um estudo da simetria renascentista.

A partir dos finais dos anos 50 criou seu idioma pictórico característico que o tornaria muito admirado: as exuberantes Madonas e os seus famosos casarios, inspirados pelos de São Miguel dos Campos, cujo belo conjunto arquitetônico do início do século XX desapareceu quase totalmente graças ao desamparo e despreparo cultural de gestores públicos que não o souberam dignamente preservar.

São também seus, os casarios que remontam àqueles da Rua da Aurora e os de outras ruas e becos na sua temporada recifense, orientado então por D. Gerardo Martins, galerista de renome.

Sem dúvida, a grande obra que tornou Fernando Lopes um artista respeitado é aquela dos anos 60 que expõe o inegável talento de um pintor jovial em vigor pleno de sua criação. O artista se apossou dos chãos floridos e dos drapejados de Fra Angelico e dos tecidos ricamente bordados à maneira dos nobres personagens de “Les très Riches Heures Du Duc de Berry”, obra prima do princípio do século XV francês e principalmente da imagética do Cinquecento italiano e flamengo. Tudo, ao final e ao cabo, transmutado e renovado ao sabor do Nordeste do Brasil.

Em sua obra dos anos 60, nada parece ter ligação com a sisudez invernal da Galícia de seus ancestrais paternos. “Seu” Pepe, homem de senso estético espontâneo era seu crítico constante, opinando sobre a obra de Fernando, apreciações brejeiramente rejeitadas pelo artista, mas, de certo modo, a posteriori, observadas com respeito. A obra de Fernando dos conturbados e felizes anos Sessenta denota um agradável frescor de ideias bem pessoais sobre a Arte e sobre o Brasil artístico e pictórico.

Sobrados é uma pintura de 1963

Sobrados é uma pintura de 1963

Fiel à linha, como Boticcelli, pintava a partir dela. Mudou o traço nos anos 70, intelectualizando-o e incorporando novos elementos pictóricos e plásticos à sua obra.

A partir daí, o naïf dos anos anteriores que encantou Jorge Amado, Aurélio Buarque de Hollanda, Adolfo Bloch, Lêdo Ivo e tantos outros intelectuais cedeu espaço ao pintor com densa carga dramática e expressiva.

Sua obra ganhou em textura, com o uso de colagens e outras técnicas que denotam uma tensão emocional mais e mais evidente. Sua paleta desceu a tons abissais e se tornou menos colorida e brilhante, como provam as Séries Sépia e Negra (????).

Sua obra se transmutou por conta de um estado emocional sensível e doentio que o fez se refugiar em sua cidade natal a partir dos anos 70. Uma neurastenia constante e uma timidez profunda fizeram-no retrair-se mais e mais.

Era de outro modo, um intelectual de mente rara e brilhante capaz de entabular qualquer conversação com renovado sabor criativo. Profundo conhecedor da História das Artes, teria ele sido um naïf no sentido pleno da palavra ou um intelectual que burlava o meio artístico com uma falsa ingenuidade? Não, Fernando era um experimentador!

Pianista e músico, compositor esporádico — divertido era ouvi-lo falar de certo “Concerto para lata de goiabada e orquestra” que compusera, mas nunca executado em público! —, admirador de Mozart, Chopin, Brahms e dos espanhóis, leitor compulsivo e amante de Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Cecília Meireles e Marcel Proust, orientou o destino de muitos jovens artistas miguelenses e sua casa foi um centro particular de difusão cultural na cidade.

Escreveu cartas para si mesmo, de inegável valor emocional e literário, ainda inéditas. Amante das boutades bem humoradas — era, quando lhe subia a taxa de humor, um piadista indomável —, citava com frequência as do seu amigo e entusiasta, o pintor pernambucano Antônio Cavalcanti, como das mais inteligentes.

Em 1965, Fernando Lopes pintou a Virgem no jardim

Em 1965, Fernando Lopes pintou a Virgem no jardim

Conhecido e amado pela pintura naïf que o consagrou, retornou nos últimos anos ao mesmo caráter expressionista daquele dos anos 50, dando ênfase à cor. Aliás, ele nunca se afastou da cor, apenas lhe deu, de tempos em tempos, um distanciamento para experimentar o quase ou total monocromatismo.

Suas obras finais são extremamente coloridas, mas, como certas obras musicais em tom maior que sugerem certa melancolia em tom menor, estas obras são tristes e perturbadoras. Talvez um grito de solidão e desespero colorido, mais uma burla do artista?

Fernando debruçou-se nos retratos de anônimos e árvores que parecem querer abraçar os transeuntes que delas passem pelas cercanias, esmagando-os e digerindo-os, como plantas carnívoras!

Suas marinhas, visões especiais das praias de sua terra alagoana — pintou-as nos anos 60, muitas sob o pretexto de compor casarios praianos, contrapondo-se àqueles montanheses de Guignard — têm continuidade nos anos 2000, com penhascos, promontórios e rochedos que ora parecem se abrir, como fauces aterradoras que devorariam qualquer ser vivente que se aventurasse a navegar por suas bandas, ora como formações rochosas que parecem ser como a genitália feminina, entreabrindo-se à espera do objeto de desejo.

Todas são obras que causam estranheza ao primeiro olhar porque muitos o reconhecem quase que exclusivamente como o pintor das Madonas e dos casarios. Mas Fernando foi um pintor de muitos temas e os pintou de formas variadas: essa a sua inventiva, essa a sua grandeza. Suas árvores e marinhas são os últimos suspiros de um artista genial, seu canto do cisne. São, portanto, obras que devem ser consideradas no plano da mais alta qualidade estética: drama em formas, gestos e cores.

Sua iconografia está espalhada pelo Brasil e países desse mundão de Deus e de suas Nossas Senhoras, Anjos e Santos. Obra eternizada em dicionários e livros de arte, na Casa da Cultura de São Miguel dos Campos que tem um museu com o seu nome — e que deveria se chamar, com toda a justiça, Casa de Cultura de São Miguel dos Campos Pintor Fernando Lopes e não apenas Casa da Cultura de São Miguel dos Campos — e na Galeria Fernando Lopes do Cesmac que lhe prestou homenagem pelos cinquenta anos de pintura, pouco antes de sua morte.

Santana e Maria é de 1971

Santana e Maria é de 1971

A obra de Fernando Lopes atravessou quase inteiras seis décadas. É certo que parou de pintar aproximadamente entre os anos 2007 e 2009, como afirma seu irmão Cláudio Jorge baseando-se nas confissões do pintor e como anotou o amigo José Constantino Ferreira Maia sobre impressões colhidas em algumas visitas ao seu atelier.

Infelizmente o artista não catalogava as suas obras, assim é impossível precisar quantas produziu. Do seu espólio, quase duzentas obras foram divididas entre o irmão e quatro sobrinhos, filhos de sua irmã Vânia, falecida vinte e um dias depois do pintor. Saliento várias desse conjunto, muitas inéditas ao grande público e outras já apresentadas. Contudo uma das obras primas do espólio é a magnífica “Nossa Senhora das Dores” (1973) reproduzida no catálogo Cesmac e, infelizmente, desaparecida no trânsito de partilha.

É de salientar que Fernando, como de resto muitos artistas, guardava obras a sete chaves e nunca mostradas ao grande público, obras que, de fato, serviam para seu deleite pessoal, inclusive muitas dos anos 50 do século passado.

Construção, de 1975

Construção, de 1975

Fernando Lopes amadureceu, mas murchou isolado em Maceió. Sua vida pessoal resumiu-se quase comezinhamente a hábitos simples nos últimos anos fazendo eco àquilo que escreveu Mário de Sá-Carneiro: “a minha vida sentou-se e não há quem a levante” ou reverberando os versos de José Régio, “e eu fiquei só, desconhecido, mudo, pairando, estranho à minha própria vida, Per omnia secula seculorum…, amen.”

Mas a sua obra, embora rareada nos últimos tempos e por ele mesmo desprezada, renascerá a partir de pesquisas que venham a ser encetadas com o fito de reconhecer em Fernando um dos grandes artistas brasileiros do século XX. Assim, permitam-me parafrasear Mestre Aurélio Buarque de Hollanda e dizer que, enquanto dormia, o poeta velou e sonhou. E tanto velou e sonhou que adormeceu para sempre… e sua obra, inacabada pelo seu desânimo e cansaço da vida deve acordar do torpor no qual o próprio artista a colocou.

Quadro de Fernando Lopes de 1965, pertence ao Dr. Rogerio Adeilson. Foto enviada por Anna Paula Accioly

*Eduardo Xavier, 17 de Novembro de 2011 (texto original que serviria de apresentação a um Catálogo que homenagearia o primeiro ano de morte do artista, em junho de 2012, em exposição que aconteceria na Casa de Cultura de São Miguel dos Campos sob o patrocínio da prefeitura local, patrocínio depois retirado e jamais retomado).

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EDITORIA DO HISTÓRIA DE ALAGOAS

As imagens e informações abaixo são da revista A Cigarra.

Abril de 1966

 

 

Janeiro de 1968

4 Comments on Fernando Lopes: uma obra cíclica

  1. Eduardo Xavier // 20 de agosto de 2017 em 09:39 //

    Fiquei feliz em encontrar o meu texto aqui. Merece, ele, algumas correções, mas nada que abale seu conteúdo geral. Obrigado ao Ticcianelli.
    Eduardo Xavier.

  2. Eduardo Xavier, você tem espaço garantido no site. Se precisar fazer alguma correção no texto, pode enviar para mim no eticianeli@gmail.com. Abraços.

  3. Sou miguelense radicado em Brasília mas quando em Alagoas vivi, tive o privilégio de conhecer Eduardo Xavier o autor deste excelente texto e de mais alguns amigos de Fernando Lopes e também de Roberto Lopes que apesar de ser meus conterrâneos não tive o prazer de conhecê-los. Ao ler este artigo sobre Fernando Lopes um acontecimento me veio à memória:
    Uma certa feita um amigo comum a todos os citados, Ricardo Mendonça, indagou-me sobre as lembranças que eu teria de uma pintura muita antiga dada por um dos Lopes – hoje não me recordo se era Fernando ou Roberto à minha avô, dona Ester Paulino e que após a morte dela queria ele – Roberto ou Fernando – ter de volta, motivo pelo qual pedia minha intervenção. De fato, lembrei-me da pintura de girassol que enfeitava a parede da sala de entrada do hotel São Cristóvão, de propriedade de vovó da qual, infelizmente, não consegui obter qualquer informação sobre seu paradeiro. Espero que um dia ela apareça e que não tenha sido ingenuamente relegada ao entulhos do velho hotel São Cristóvão

  4. Luis Lopes // 5 de julho de 2021 em 23:08 //

    Eduardo Xavier, você está equivocado! Você quando o meu tio faleceu foram ao AP dele e você foi quem catalogou e colocou preço de peças e de obras de meu tio. então não venha com essa conversa mole que demos sumiço em alguma obra ok? Você foi quem esteve com o Claúdio Jorge irmão de meu tio e catalogaram tudo! Você deve saber onde se encontra tal obra citada aqui. Luis Carlos Lopes Cavalcante, sobrinho de Fernando e filho da saudosa minha mãe D. Vãbia.

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