Ensaio a cerca da significação de alguns termos da língua tupi conservados na geografia das Alagoas

Publicado originalmente na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de Alagoas, nº 8, de junho 1876

Dança dos Tapuias em quadro de Albert Eckhout exposto no Museu Nacional da Dinamarca

João Francisco Dias Cabral

Les langues sont pour les ages prehistoriques ce que sont les fossils pour les ages antidiluvienes. – E. Littré.

João Francisco Dias Cabral

Foi sempre o estudo das línguas o recurso supremo às investigações que procuram ler na lápida de uma geração sumida a inscrição que perpetua a vitalidade de uma época, a história de uma raça.

Sabia disso o preclaro bispo de Calcutá, Reginald Hébert, antepondo aos cálculos ávidos da Inglaterra os tesouros da civilização da Índia; sabia Ellery Channing, pregando aos cidadãos da grande república o apego às línguas indígenas, para que se firmasse a literatura nacional, que é base à independência da pátria; sabia-o ainda o sr. dr. Couto de Magalhães, patenteando ao país absorto diante de tamanha dedicação o valor do vocabulário que a nossos maiores sérvio de arma de conquista e que será instrumento de separação, malgrado nossa pasmada indiferença.

Raro é o escritor nacional que tratando de coisas de casa estanque diante do estranho som de um nome que designa o regato, a colina, o vale, a esplanada em que assentará a aldeia, o antro de refúgio a perseguidos. Foge ligeiro a impressão e nela morre a tradução de um acidente local, a lembrança de um feito ignorado, o vestígio de uma catástrofe irreparável; passam as gerações sem escavar o solo, como o caminhante que teme o arremesso da tempestade ou a investida insidiosa do Beduíno no deserto.

Aos cuidados dos primeiros observadores são devidas as acanhadas noções de uma língua, desbotada por acontecimentos estranhos e quase perdida pela incúria. As desavenças cruentas que separaram a valente raça que do norte veio derramar-se no litoral do nosso território, a luta de extermínio entre os tupis e tapuias em tudo contrários, as oscilações do predomínio de diversos povos conquistadores, haviam de modificar as expressões da gente bravia, que no jugo perderia seus usos, sem pode-los impor á estranhos nas minguadas relações em que primaria a importância da parte mais culta. Juntem a isto a restrição imposta à língua geral pelas ordenanças do rei José I em 1755, e não será outro o motivo do pauperismo do vocabulário, já tão inçado de prefixas e sufixas da língua de Barros e Camões. Que não era rude o dizer daqueles que, segundo o poeta, têm no rosto a cor do sol, prova-o de sobejo o testemunho dos primeiros missionários da raça latina, cuja distinção se não assenta na cortesia á verdade, se prende a competência do juízo.

Afirma a tradição que a ensoberbecida tribo vitimada pela intolerância dos companheiros do Christovão de Barros, de marcha em marcha se achegando aos confins do norte, respondia aos curiosos que lhe indagavam da origem, apontando as paragens abandonadas e dizendo — Caetémata virgem —, para que soubessem que do mar ás selvas, de recuo em recuo, deixado havia a própria brenha, já desbastada pelo ódio do invasor. É difícil juntar os elementos constitutivos do íntimo viver de um povo que na prosperidade confiara ao sono seu futuro, pertencendo a vastidão do ermo o segredo de sua adversidade.

Não morrem as línguas, disse Villemain, e se conservam quer pela comunicação dos espíritos, quer pela isolação. Se o parecer do douto critico abrange a posição especialíssima de uma grande família, dividida, subdividida, frouxos os laços do parentesco, perseguida sem tréguas até reduzir-se ao esconderijo da fera, cumpre estimular o estudo, para que se aumente o pecúlio que deixou a velha geração, único presente que desarmará a desconfiança, se aos bosques formos chamar o selvagem a participação do bem, pedindo em troca nos explique o que dele cá ficou, entregue ao descuido da ignorância. Se tão arraigada não andasse no ânimo a indiferença as coisas da antiguidade, não suaria o topete a quem procura valer-se da paciência dos poucos utopistas que encanecem na ingrata tarefa de aviventar caracteres, símbolos e sinais já caducos. Embora tenham as circunstâncias da invasão e o desleixo alterado o amesquinhado o vocabulário túpico, é tempo de reunir o que por aí anda a esmo e se nisto não transparecer o reclamo do patriotismo, manifeste-se a simpatia ao caráter daqueles que preferiram exilar-se com a liberdade a permanecer no lar manchado pela servidão.

Não é outro o intuito da apresentação do minguado trabalho que aí vai, assistido de todas as imperfeições inerentes as dificuldades apontadas e ainda sobrelevadas pela incompetência do quem o coordenou. Vão os nomes segundo a ordem alfabética e pronunciação de hoje, seguindo-se a decomposição dos termos e logo a acepção tanto exata como presumida.

Uma arapiraca em Arapiraca

Arapiraca: ara — periquito; peyr — visitar; aca — ramo, galho. Galho que o periquito visita, arvore do lugarejo da vila de Anadia, em que de pouco foram encontradas as igaçabas —contendo esqueletos de indígenas. A aca correspondem outros significados, mas sem aplicação no caso vertente.

Batinga: ba em vez de pau; tinga — branco.

Boassica: boya ou moya — cobra; ycica — grude, resina. Grude de Cobra.

Cuípe: caa — mato; ype — no rio. No rio do mato. Decomposta a desinência — y pe — vesse que y diz — rio ou água e pe é partícula posposta aos nomes de lugar.

Cajaíba: cajá ou acajá; yba — árvore. Árvore do cajá ou cajazeiro. Tem o termo yba outras significações, mas de todas é esta a mais adequada ao caso.

Cajuípe: cajú ou acajú; ygpe — muitos. Cajueiros.

Camaragibe: camarálantana aculeata; iby — terra. Terra do camará.

Camaratuba: camará — arbusto conhecido; tuba ou tygba — frequência, abundância. Sítio abundante do camará.

Comandatuba ou Comandatiba: comandá — feijão; tuba ou tygba — abundância. Sitio abundante de feijões.

Sapo-cururu, sapo comum ou sapo-boi são nomes atribuídos popularmente a algumas espécies de sapo da Família Bufonidae, do Gênero Rhinella

Coruripecururu — sapo; ype — no rio. No rio do sapo.

Gurjahú ou Grajahú: guajá — arbusto conhecido; u — rio. Rio do Guajá.

Gurugi: gury — bagre; yg ou y — rio. Rio do bagre. A esse confluente do S. Francisco poder-se-ia chamar bagre pequeno, se, respeitada a ortografia, ficar o i final como diminutivo.

Itiuba: ity’c — arremessar, derrubar; ubá — espécie de canas e de canoas. Justas podem ser ambas as traduções, aplicadas a um nome que designa — morro e rio, mas outra há que alterando a escrita reduz a expressão a Ita — pedra, juba — amarela. Não é profunda essa alteração, pois suprimido o a e dado ao y do seguinte termo o som, de i desaparece a dissonância. A topografia pertence, entretanto, decidir acerca do valor destes pareceres.

Jacaracica: jacaré; ycica — grude. Grude de jacaré.

Jacuípe: jacú — ave conhecida; ype — no rio. No rio do jacú.

Japaratuba: yg — àgua; apare — volta; tuba ou tygba — frequência. Água de muitas voltas ou sinuosidades.

Japú: ygapó — alagadiço.

Rua Sá e Albuquerque em Jaraguá com o início da praia da Pajuçara ao fundo

Jaraguá: jara — senhor; gua — enseada. Enseada do senhor. A tradução de enseada opõe o sr. dr. Martius a de campo, e assim se dirá — campo do senhor.

Jequiá: jequi — covo; a, demonstrativo. Este covo.

Juquiá: também é nome de um peixe d’agua doce, segundo Gabriel Soares em seu roteiro do Brasil.

Juigiá: rã do gemido — termo dado a esse batráquio em algumas províncias, como disse o sr. Varnhagen no comentário ao escrito acima.

Juçara: palmeira conhecida, cujo fruto entra na preparação do açahy.

Jurema: — espinho; rema — mau cheiro. Espinho fétido.

Manguaba: mangaba ou mã-guabeque tens para comer? Pertence esta tradução ao aludido doutor — em seu glossário brasiliense, e, embora sua autoridade, resta a dúvida acerca da colocação da partícula , que segundo as regras não se antepõe aos nomes.

Marituba: marú ou mariGeoff superba; tuba ou tygba — abundância. Lugar de muito marú.

Massagueira: moçaraiguera bôbo.

Merim: pequeno.

Mundahú: muudé — cilada; u — rio. Rio da cilada ou tortuoso. Rio do mandi, segundo o sr. dr. Martius.

Niqui: peixe conhecido.

Rua Epaminondas Gracindo na Pajuçara e a área da futura praça Manoel Duarte, com a Escola de Aprendizes Marinheiros ao fundo, atual Administração do Porto

Pajussara: pejussaraassoprador. Pau de jussara diz o referido doutor, ficando assim corrupto o nome.

Panema: U — rio; panema — estéril. Rio sem pescado.

Parahyba: pará — água, mar; hyba — braço. Braço do mar. Ao termo hyba pertencem diversas acepções — coxa, mastro, cabo e árvore. Milliet fê-lo adjetivo exprimindo objeto claro. Chamam também parahyba a simaruba versicolor de S. Hil.

Parangaba: porangaba — beleza.

Parauna: pará — água; una — preta.

Paripoeira: pery — junco; ou pora — partícula que diz — coisa contida; eira — abelha. Junco que contém abelha. Mencionando as crônicas o lugar que de muito auxílio foi a invasão holandesa dizem — Peripoeira, ficando deste modo a pronuncia conforme a procedência do radical. De modo diferente entendeu o ilustre viajante a quem já nos referimos, quando deu a pari o correspondente — hy pabe — rio entre, juntando ipueira — terminação portuguesa. Designou assim o rio, mas em referência a povoação escreveu — pery — junco ou campo húmido, permanecendo a final portuguesa — poeira — como se fossem cousas separadas e não pudesse um só nome abranger os acidentes de um limitado território. Se o vocabulário túpico não se prestasse à formação do nome em questão de certo passaria sem julgado a introdução forçadíssima de desinências portuguesas.

Peba: apeba — chato, plano.

Peroba: árvore conhecidaaspidosperma.

Perocaba: pira — peixe; caba — gordura. Gordura de peixe.

Persinunga: pará — água, rio; açununga — estrondar. Rio roncador. De outro decompõe este nome o erudito viajante já citado. Escreve ele: pira — peixe; cigie — tripa; nungar — parece. À vista disto caducou a insistência de alguns em juntar o adjetivo tining — seco — a pira, o que deve soar — piratining e não persinunga.

Piassabuçú: piassava — palmeira conhecida; oçú — grande.

Piauhy: piau — sardinha; y rio. Rio da sardinha ou piau.

Pioca ou Ipioca: py — pé; oca — casa — casa do pé; ipy — cabeça de geração, oca — casa — casa do cabeça da geração; pium — mosca, oca — casa — casa de moscas. As duas primeiras versões fundam-se no dicionário brasiliano; a última no glossário do sr. dr. Martius.

Pirangaçú: piranga — vermelho; oçú — grande. Cabe o título a serra Piranga chama também o povo à bignonia chica.

Piranha: pira — peixe; tanha — dente. Peixe dente ou tesoura.

Rio Poxim em sua foz na Praia do Poxim, em Coruripe

Poxim: puxifeio. Na teogonia túpica Maine Poxi ou simplesmente Poxi é o deus mau, rancoroso, segundo Thevet.

Pratagy: pará — rio; ita — pedra; gy — machado. Rio da pedra do machado. O autor do glossário brasiliense diz: paratigirio da ave tico.

Priaca: preácavia aperca; aca — corno, cabeça. Cabeça do preá.

Sapucahy: çapô — raiz; caia — queimar; ig — rio. Rio das çapucaias ou das arvores cuja raiz queimada concorre para denominá-las. É este o parecer do sr. Malta que provecto como é censura a ligeirice de alguns vocabulistas que escrevendo sapucai — grito, como acima está, dão-lhe diversa significação. Se é vazia de sentido a versão — rio do grito, mudei o nome que assim diz o S em Ç, para que a ortografia não autorize ambiguidades. Dê motivo a repulsa ou mesmo a controvérsia não servirá de certo a origem dessas vozes, sendo o guarany irmão do tupy.

Satuba: uça — caranguejo; tuba ou tygba — abundância. Lugar de muito caranguejo. Talvez seja outra a procedência deste nome, assim virá também de sauba — formiga de roça ou de outros radicais ignorados.

Seriba: sericancer fiuviatilis; yba — braço. Braço do seri. Pode ser diversa a tradução: cereiba, ciribá ou sereiba tingamangue branco.

Suassuhy: çuaçú — veado; y — rio. Rio do Veado.

Subauma: sumauma, vulgarmente barriguda, arvore de espinhos grandes e de lã finíssima.

Igreja do Senhor do Bomfim em Taperaguá, Marechal Deodoro

Taperaguá: tapera — cabana abandonada; guá — campo. Campo da cabana abandonada.

Taquara: espécie de cana brava.

Tatamunha: tatúdasypus, monha — correr — tatú correndo; tata — fogo, monhang —fazer — fazer fogo; tatúmonhangcriar tatú. Derivam-se as duas primeiras traduções do estudo do sr. dr. Martius; a última combina com a significação que ao verbo monhang pertence segundo a afirmativa do dicionário brasiliano.

Tibery: itaibyripedra ao longo do rio.

Traipú: tiapù — rumor, eco, zunido, ou ita — pedra, — ruído. Em oposição a designação de rio pedregoso dada ao território da vila banhada pelo S. Francisco há não só a negação da desinência, senão considerações valiosíssimas que se prendem a condições locais. Estreita a serra da Tabanga, (itabanga ou tabaanga — pedra ou aldeia cheirosa), o curso das águas do grande rio, e, neste canal fronteiro à vila, diz o sr. dr. José Vieira de Carvalho e Silva na sua viagem as cachoeiras de Paulo Afonso “o rio se encapela e fala, horrendo e grosso que parece sair lá do seu fundo”.

O talho que divide ainda essa serra em morro do Covão deixa escapar em tufões o ar, e assim se aí fervem as águas do encontro as pedras, sopram também os ventos, que à greta do penhasco se arrojam. Não são enganadoras estas circunstâncias: á rudeza atroadora da natureza na passagem aludida responde o vocábulo sem ornatos dos filhos das selvas — tiapúrumor.

Urucú: tinta vermelha do arbusto assim conhecido — bixa orellana.

Urucuba: urucú; tuba ou tygba — abundância. Lugar de muito urucú. Urucuba chamam também a um arvoredo de nossos bosques.

Utinga: U — água; tinga — branca. Água clara.

Com a última palavra aí escrita não esgotou-se a lista dos nomes dados pelos aborígenes as coisas que nos tocam, restando frases deslocadas que senão são eco da ignorância provam demasiado desleixo dos contemporâneos. Há de o estudo salvar tudo isto, enchendo o desprovido mealheiro, para que não continue o clamor a acusar o desbarato da opulência pátria. É ingrato o trabalho; não importa: a dificuldade é que estimula a fé. Ao futuro pertence o julgamento — se foi acerto mutilar uma raça; se obra meritória por em relevo apagadas lembrança, que estreitam os vínculos da união dos que cá nascemos. Seja ou não indiferente ao Estado a pesquisa que serve de base à regeneração dos condenados, deve a arte socorrer a ciência, a linguagem explicar a história, para que o ouro da nacionalidade não o deturpe o enxurro de paixões mesquinhas.

Maceió 15 de julho de 1873.

4 Comments on Ensaio a cerca da significação de alguns termos da língua tupi conservados na geografia das Alagoas

  1. Hermann de Medeiros Torres Filho // 10 de julho de 2019 em 20:17 //

    Gostaria de saber se temos dados históricos sobre o naufrágio do “Itapagé” em mares alagoanos, torpedeado pelos alemães na segunda guerra. Os sobreviventes foram atendidos em Maceió pela enfermeira e combatente na Europa Elza Medeiros Cansanção.

  2. André Soares // 11 de julho de 2019 em 19:22 //

    Mais um belo resgate da nossa história e cultura.

  3. Claudio Ribeiro // 14 de julho de 2019 em 18:22 //

    É entristecedor constatarmos que os Povos Aborígenes, que aqui viviam há séculos, tentam sobreviver com a sua língua, sua cultura, sua etnia etc. em reservas e não encontram o respeito que merecem. Tudo começou com a invasão das tropas portuguesas que deram início ao massacre dos povos que aqui encontraram. O mesmo fizeram as hostes espanholas ao invadirem a América do Sul com os povos que aí encontraram, e os ingleses, franceses, belgas, alemães etc. na África, na Ásia, no Oriente Médio.

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