Engenhos alagoanos no relatório de Van Der Dulssen de 1639
Manuel Diégues Junior
*Publicado originalmente na revista Brasil Açucareiro de dezembro de 1947. Título original: O relatório de Van Der Dulssen.
A José Antônio Gonsalves de Melo, neto, estão a dever as letras históricas brasileiras valiosa contribuição: a tradução do Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses (1639), de Adriaen van der Dussen. A esta tradução juntou ainda uma introdução e nada menos de 264 notas elucidativas ou de exame do texto. Um trabalho, pois, em que se revelam não só as excelentes qualidades de conhecedor do período holandês no Brasil, existentes no tradutor, senão também a erudição e a vasta documentação em que se baseia para analisar e comentar o relatório.
O relatório de van der Dussen é página capital para o estudo da vida econômica e social das capitanias ocupadas pelos batavos. Nada escapou à observação sagaz do holandês, e daí ter reunido, neste documento, magníficos informes sobre a região e as suas condições econômicas e sociais. Constitui, sem dúvida, o relatório de van der Dussen o mais importante documento a retratar o período de conquista holandesa no Nordeste.
Adriaen van der Dussen não foi figura de proa na ocupação holandesa. Não se coroou de glórias militares, com que pudesse ter o nome aureolado entre os generais mais ilustres nas façanhas guerreiras. Pouco se sabe de sua vida; apenas o bastante para afirmar-se que foi figura de pouca saliência, atuando, entretanto, em atividades que lhe permitiram escrever esse relatório que é, sem favor, um dos melhores informes acerca do período holandês. E’ hoje básico, fundamental, para conhecimento da ocupação batava no Nordeste do Brasil.
Registra, aliás, Gonsalves de Melo, neto, a escassez de documentos holandeses do século XVII, onde se possam colher informações sobre a história social da ocupação da área nordestina. São doze apenas as fontes arroladas pelo Autor, e por ele indicadas como as mais ricas em dados desta natureza. Destes doze documentos apenas cinco estão publicados, conservando-se os demais inéditos. O relatório de van der Dussen vem incorporar-se agora ao grupo dos publicados, pelo que é de aplaudir-se não somente o Autor da tradução, como igualmente o Instituto do Açúcar e do Álcool, que proporcionou este ensejo, através do convite feito a Gonsalves de Melo, neto, pelo escritor e também historiador Barbosa Lima Sobrinho, então Presidente do Instituto, de facilitar aos estudiosos da história nacional contacto com o notável documento de van der Dussen.
As notas com que foi enriquecido o texto, servem para esclarecer e também documentar as afirmativas de van der Dussen, e ainda para o estudo comparativo com outras fontes, holandesas ou nacionais. Cada assunto anotado é, deste modo, discutido e esclarecido, o que permite maior desenvolvimento do estudo a quem queira, mais profundamente, examiná-lo. Apesar da pobreza da documentação sobre os engenhos não só de Pernambuco, para o que o Autor chama a atenção, mas de toda a região, pode, entretanto, encontrar-se no relatório e nas notas uma série de pistas e sugestões bem expressivas.
Da leitura a que me entreguei, resultaram algumas notas às quais aqui dou letra de forma. O relatório, na parte que diz respeito aos engenhos de Alagoas e ao fabrico de açúcar, não me era de todo estranho. Gonsalves de Melo, neto, me havia proporcionado cópia para leitura, quando preparava meu estudo sobre os engenhos alagoanos. Sobre estes, em particular, examinamos juntos várias vezes e, mais demoradamente, numa agradável manhã do Recife, em seu solar da rua das Pernambucanas, a localização de cada um, o nome dos proprietários, origens e evolução elementos que se tornaram úteis na elaboração do estudo em que trabalhava.
Deste modo trago, data vênia, algumas pequenas achegas que vêm corroborar ou ainda esclarecer algumas afirmativas que se encontram no relatório de van der Dussen. Dizem respeito, em especial, a aspectos alagoanos, no que toca aos engenhos ou à economia açucareira do período holandês em Alagoas.
Em nota nº 121, sobre o engenho dos Alpoins, então arruinado, o anotador faz referência à idêntica informação encontrada no “Breve Discurso” (1). Seria, entretanto, interessante apurar quais os donos do engenho. Quem seriam estes Alpoins? Nas minhas investigações em Alagoas, nada pude encontrar; na “Nobiliarquia Pernambucana“, de Borges da Fonseca, igualmente não há nenhuma indicação (2).
Entretanto, aparecem nas “Denunciações de Pernambuco” (3) dois Alpoins, como fácil verificar. Um é vereador da Câmara de Olinda, onde reside: Cristóvão Alpoim; outro é morador na freguesia de Santo Amaro: João Alpoim. Note-se também que Johannes de Laet (4) cita um João Alpoim como senhor de engenho; aparece este Alpoim entre os senhores de engenho que em 1635 receberam intimação dos holandeses. Talvez se trate de uma só pessoa: o morador de Santo Amaro e o senhor de engenho em Alagoas.
Não estava o engenho arruinado? Se se arruinou, deve ter sido por abandono ou mesmo destruição. Assim, é de presumir que os irmãos Alpoins de Olinda tivessem erigido ou adquirido engenho em Porto Calvo, vindo para aí pouco depois de Cristóvão Lins, abandonando, porém, a propriedade à época da invasão holandesa. Ou mesmo antes, para voltarem a Olinda.
O engenho Santo Antônio (nº 109 do relatório, p. 59) é a atual usina Santo Antônio. Foi aí, às margens do rio Santo Antônio Grande, que Rodrigo de Barros Pimentel teve sesmaria, em 1608, doação que lhe fez Cristóvão Lins, senhor de todas aquelas extensas terras do atual norte alagoano e alcaide-mor de Porto Calvo. Em fins do século XVI, Cristóvão Lins já tinha engenho em Alagoas, ou precisamente em Porto Calvo; Rodrigo de Barros, porém, somente recebeu sesmaria em começos do século XVII, isto é, em 1608. O Santo Antônio deve ser o recentemente construído, a que alude o “Breve Discurso”, em 1638.
O São Francisco (nº 110, do relatório, p. 59) é, como anota Gonsalves de Melo, neto, o mesmo Escurial. Foi a nosso ver um dos primeiros levantados por Cristóvão Lins. Manuel Camelo de Queiroga foi o primeiro marido de Maria Lins, filha de Bartolomeu Lins e neta de Cristóvão Lins, o povoador; assim é de presumir que o engenho Escurial ou São Francisco (que deve ser a invocação da capela) tivesse chegado a Manuel Camelo por herança.
Presumo ser este, e não o Buenos Aires, como quer Cândido Mendes de Almeida (5) o engenho onde esteve Anthony Knivet, quando, em 1601, viajava em companhia do governador Salvador Correia de Sá. O Buenos Aires, de que hoje restam ruínas, ficava à margem do rio Camaragibe, enquanto o citado por Knivet ficava além do rio Manguaba, ou na margem deste. É o que se conclui pela narrativa do inglês, segundo a recente tradução de seu livro (6).
Passado o rio Santo Antônio, “arribamos depois a um rio amplo, o Camaragibe e continuamos em direção ao rio das Pedras. Daí partimos, rio acima, sobre uma jangada feita com três moirões secos amarrados juntos. Ao dia imediato desembocamos num vasto descampado onde se via grande quantidade de gado, e uma moenda de cana, para a qual nos dirigimos; o proprietário do engenho era um holandês a quem entregamos a carta do governador” é o que narra Knivet (7).
Cumpre esclarecer que, neste passo, diferem as traduções de José Higino e de Guiomar de Carvalho Franco; naquela não há referência de terem chegado ao rio das Pedras (hoje Manguaba), depois de atravessarem o Camaragibe. Geograficamente, porém, a descrição traduzida recentemente está certa, pois ainda hoje o Santo Antônio, o Camaragibe e o Manguaba são três grandes rios, no norte alagoano, nos quais a passagem se faz em balsas. A aceitar-se, pois, a tradução mais moderna, vertida diretamente do inglês, o engenho teria sido o Escurial ou São Francisco, e não o Buenos Aires; este fica na margem do rio Camaragibe, e a rigor não seria preciso subir o rio para atingi-lo, dada a sua localização. Pela versão de José Higino (8) porém, tendo sido o engenho encontrado logo depois do rio Camaragibe, seria realmente o Buenos Aires.
A descrição de Knivet, na tradução recente, atende perfeitamente aos mapas da época; para chegar-se ao Escurial ou São Francisco seria preciso subir o rio das Pedras, ou Manguaba, seu nome mais comum modernamente, embora já tenha sido também chamado rio do Porto Calvo. É o que foi feito por Knivet, permitindo assim localizar-se claramente o engenho. Apenas, o inglês considerou Cristóvão Lins holandês, quando era alemão.
Dois engenhos aparecem no relatório de van der Dussen como de Cristóvão Botelho (ns. 111 e 112 do relatório, p. 60). Ambos, arruinados; foram vítimas do incêndio de 1636, que atingiu a toda a região entre Porto Calvo e Paripueira. Um parece-me tratar-se do Buenos Aires, isto é, o mais antigo engenho da região e de Alagoas, fundado por Cristóvão Lins, nas últimas décadas do século XVI. É a “fazenda” a que se refere o depoimento de Arnal de Olanda, perante o Santo Ofício: “…averá ora quatro pera cinquo annos… …a igreja da fazenda do ditto seu pai onde então residião no Pôrto Calvo…” (9).
Arnal de Olanda, filho de Cristóvão Lins e D. Adriana de Olanda, depôs perante a Inquisição em março de 1595; logo, já em 1590 ou 1591, Cristóvão Lins tinha engenho em Porto Calvo. Porto Calvo — esclareça-se quanto antes — era assim chamada toda a região que hoje constitui o norte do Estado de Alagoas, do rio Santo Antônio Grande para cima, incluindo, pois, o território atual de Camaragibe, Porto de Pedras, Maragogi, etc.
A presunção de tratar-se do Buenos Aires baseia-se: primeiro, em já existir à época da invasão holandesa o engenho desse nome, sendo entre os dois de Cristóvão Botelho o que se pode identificar como tal; segundo, o facto de ser Cristóvão Botelho descendente de Cristóvão Lins; era filho de Baltazar de Almeida Botelho e de D. Brites Lins, esta, por sua vez, filha do povoador de Porto Calvo. O senhor de engenho era neto deste, portanto. De Cristóvão Botelho, lembra Borges da Fonseca ser “senhor de dous engenhos em Porto Calvo, que no ano de 1635 queimaram os holandeses” (10).
O segundo engenho de Cristóvão Botelho, que aparece com o título de “Novo“, creio ser o que se chamou depois Maranhão, nome com que ainda é conhecido, embora já destruído. Este engenho também construído, ao que suponho, por Cristóvão Lins, foi erigido dentro da sesmaria do Buenos Aires, ou seja o outro engenho que aparece como de Cristóvão Botelho. Esta conclusão comprovei-a não somente pelo exame de plantas do engenho Buenos Aires, como também em referências encontradas em velhos processos judiciais, nos quais, aludindo-se ao facto de ter sido erigido por Cristóvão Lins, adianta que o foi num pedaço de terra do Buenos Aires.
O engenho arrolado sob nº 113, no relatório, p. 60, como de Bartolomeu Lins de Almeida, vim a identificá-lo como o engenho do Meio, depois Bom Jesus e hoje usina deste último nome. Encontro confirmação para esta afirmativa nos seguintes elementos: a) ser Espírito Santo a sua invocação religiosa, nome com que aparece localizado, no mesmo ponto onde está hoje a usina, no mapa do livro de Barleus (edição holandesa); b) ter encontrado em escritura de 1686 a declaração de José de Barros Pimentel de o haver recebido, quando então se chamava do Meio por doação de sua irmã, Brites Pimentel, viúva de Cristóvão Lins, o restaurador de 1645, que, por sua vez, era filho de Bartolomeu Lins. Verificou-se assim a sucessão hereditária do pai ao filho; e da viúva deste passou ao irmão, por doação.
Do engenho de Cristóvão Dias Delgado (nº 114, do relatório, p. 60) são pequenas as informações colhidas. Johannes de Laet faz referência a ele como sendo nas proximidades do Santo Antônio; em outro trecho, aliás, chama-o mesmo de Santo Antônio, o que me parece um lapso. O engenho, tudo o indica, situava-se em Paripueira e, ao que suponho, corresponde ao chamado São Cristóvão no mapa de Vingboons; ficava, pois, no vale entre os rios Getituba e Castanha, quase na margem mesma daquele.
Foi um dos incendiados na excursão do Arciszewsky em 1636, e como arruinado figura na relação de van der Dussen. Ao que parece não foi mais reparado, nem replantado, desaparecendo inteiramente. Uma comprovação desse facto e da localização do engenho, encontrei-a na carta de doação e sesmaria passada a Apolinário Fernandes Padilha e capitão Gonçalo de Serqueira, em 1699; no requerimento pediam duas léguas de terras, uma para cada um, “começando donde acabão as terras donde foi antigam, engenho de Christovão Dias chamado Gitihiba” (11).
Gitihiba é, fora de dúvida, deturpação de Getituba, e o fato de aludir ao local onde foi “antigamente” o engenho, mostra que este não se reconstruiu; e a referência na sesmaria vem confirmar a nossa suposição, já baseada no mapa de Vingboons, quanto à localização do engenho.
Cristóvão Dias Delgado foi morto pelos holandeses, ele e um seu filho, possivelmente em fins de 1635, como se depreende da seguinte passagem de Duarte de Albuquerque: “o inimigo”… “havia morto o mesmo Delgado e seu filho, pela razão de ter o nosso alferes Souto morto no mesmo engenho sete ou oito holandeses” (12). Do mesmo livro do donatário de Pernambuco infere-se que o engenho estava perto das fortificações e redutos holandeses em Paripueira, “ainda que — esclarece — um pouco para o interior.”
O engenho de Domingos Gonsalves Marjaen (nº 115 do relatório, p. 60) é o que constitui mais difícil enigma; não o identifiquei totalmente ainda. Marjaen é deturpação de Mazagão, assim apelidado Domingos Gonsalves, conforme se vê na já citada Nobiliarquia Pernambucana. Na “Lista dos devedores portugueses” (13) aparece como Domingo Gonsalvo Massagão, o apelido assim mais parecido com a forma portuguesa.
Chamava-se, segundo Borges da Fonseca, Domingos Gonsalves da Costa, apelidado o Mazagão, talvez por alusão à terra de seu nascimento em Portugal; era casado com Adriana Camelo, da família Alves Camelo, do rio de São Francisco. Tinha o título de cavalheiro da Ordem de Cristo. Sua ligação com os Camelos aproxima-o de Belchior Alves Camelo, que senhor de grandes currais na margem alagoana do São Francisco e celebrizado à época de Nassau como dono do boi que o governador holandês fez “voar” no Recife; era ligado, igualmente, aos Vieiras de Melo, com o que vem a ter laço de parentesco com o mais tarde herói dos Palmares e dos Mascates, Bernardo Vieira de Melo.
O Mazagão participou da Assembleia Geral convocada por Nassau, como um dos quatro representantes do povo da jurisdição de Porto Calvo. As representações compunham-se de seis pessoas, duas pelos escabinos e quatro pelo povo, todos portugueses. Domingos Gonsalves foi um desses quatro.
O engenho de Domingos Gonsalves afigura-se-nos novo à época do relatório de van der Dussen; não aparece arrolado no “Breve Discurso” (1638). Além do mais é um dos poucos que moíam, quando, na vizinhança, estava quase tudo arruinado. A única referência a este engenho, em documento também do período holandês, encontra-se no diário de Mateus van den Broeck, que é de 1645. “Passámos pelo engenho de Domingos Gonçalves Marzagão, e ao escurecer chegámos diz ao engenho de Santo Antônio Grande” — diz o “Diário” (14).
A proximidade entre os dois engenhos era bem grande, gastando-se menos de um dia de viagem. No dia 22 passaram pelo engenho de Mazagão, e neste mesmo dia, ao escurecer, alcançaram os viajantes o Santo Antônio. Vê-se que o engenho de Domingos Gonsalves ficava ao norte do de Rodrigo de Barros, pois a expedição vinha descendo para o sul, tendo estado antes, no dia 21, em Camaragibe.
Resta examinarmos os engenhos das duas Alagoas — a do norte e a do sul. A respeito deles poderemos aditar algumas informações. Será assunto para o próximo artigo, dada a extensão que este já tomou.
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(1) “Breve Discurso sobre o estado das quatro capitanias conquistadas,” in Revista do Instituto Geográfico Pernambucano, nº 34, Recife, 1887.
(2) Borges da Fonseca, “Nobiliarquia Pernambucana,” in Anais da Biblioteca Nacional, vols. XLVII e XLVIII, 1925, Rio de Janeiro, 1935.
(3) Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Denunciações de Pernambuco. 1593/1595, São Paulo, 1929.
(4) História ou Anais dos Feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, trad. de José Higino e Pedro Souto Maior, Rio de Janeiro, 1916.
(5) Cf Memórias para a História do extinto Estado do Maranhão, vol. II, p. 22, nota 2.
(6) Vária Fortuna e estranhos fados de Anthony Knivet, versão do original inglês por Guiomar de Carvalho Franco, Editora Brasiliense Limitada, São Paulo, 1947.
(7) Vária Fortuna, cit., p. 115.
(8) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLI, 1.a parte, 1878.
(9) Denunciações de Pernambuco, cit., p. 423.
(10) Nobiliarquia Pernambucana, cit., I, p. 111.
(11) Livro de Sesmarias, MSS na Biblioteca Pública do Recife.
(12) Memórias Diárias da Guerra do Brasil, edição do Governo do Estado de Pernambuco, Recife, 1944.
(13) Relatório de van der Dussen, anexo II, p. 150.
(14) “Diário ou Narração Histórica de Mateus van den Broeck,” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XL, parte 1.2, Rio de Janeiro, 1877, p. 47.
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Ainda o Relatório de Van Der Dulssen
Manuel Diégues Junior
*Publicado originalmente na revista Brasil Açucareiro de janeiro de 1948.
Três engenhos na Alagoa do Norte e outros três na Alagoa do Sul são arrolados no relatório de Adriaen van der Dussen, cuja recente publicação pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, em tradução de José Antônio Gonsalves de Melo, neto, constitui precioso material para o estudo da economia nordestina na época da ocupação holandesa. De modo geral os autores holandeses e portugueses da época não diferem quanto ao número e aos nomes dos proprietários dos seis engenhos.
Na jurisdição da Alagoa do Norte havia um engenho arruinado: o que foi de Lucas de Abreu (nº 118, do relatório, p. 61). Pelo relatório de Walbeeck e Moucheron, sabemos que só estava de pé a capela. Nota-se, de modo geral, ausência de maiores informes sobre este engenho, o que dificulta a sua exata identificação.
Pelo mapa de Vingboons, vê-se que ele ficava entre os engenhos Nossa Senhora da Ajuda e Nossa Senhora da Encarnação, à margem do Mundaú. É a única pista mais acessível a conhecê-lo; ainda assim é impossível identificar o engenho. Na área vieram a existir, posteriormente, numerosos outros engenhos, conforme se verifica de um mapa das Alagoas, levantado na segunda metade do século XIX, e no qual se encontram assinalados os engenhos da então Província. Nenhum, porém, se apresenta com traços de antiguidade a ponto de considerar-se coevo dos outros dois. O único que a tanto poderia chegar, seria o engenho Batuba, mas ainda assim sem qualquer indicação fundamental para identificá-lo ao engenho de Lucas de Abreu.
Quanto ao proprietário, Lucas de Abreu, encontram-se em Borges da Fonseca, na sua Nobiliarquia Pernambucana, algumas indicações. Sabemos, por exemplo, que era filho de Antônio de Andrade e Joana de Abreu; uma sua irmã, Maria de Abreu, casou com Henrique de Carvalho, procurador que foi de Diogo Soares, proprietário de vasta sesmaria na Alagoa do Sul. Desse consórcio nasceu Florência de Abreu, que casou com Gabriel Soares, filho de Diogo Soares.
Joana de Abreu era irmã de Antônio Bezerra, por sua vez pai de Joana de Abreu, que casou com Belchior Alves Camelo, grande possuidor de terras na zona sanfranciscana, e a respeito do qual já falamos no artigo anterior. De D. Florência de Abreu assinale-se ainda que, enviuvando de Gabriel Soares, se casou em segundas núpcias com Cristóvão Berenguer de Andrade. Este, por seu turno, era irmão de D. Maria César, esposa de João Fernandes Vieira.
De Lucas de Abreu os informes são escassos. Pouco se sabe de suas atividades. Foi senhor de engenho na Alagoa do Norte — e de nada mais se tem conhecimento. Nos cronistas holandeses ou luso-brasileiros da época nenhuma informação se colhe. Daí quase nada se poder afirmar acerca da vida e das atividades desse senhor de engenho.
O engenho Nossa Senhora da Ajuda (nº 116 do relatório, p. 61), dado como pertencente a François Cloet, é o engenho hoje conhecido como Mundaú. Sua construção data mais ou menos de 1613; este é o ano gravado numa inscrição da capela que, em escavações feitas no engenho, encontrou o Dr. Leite e Oiticica, seu proprietário durante muitos anos (1). Já àquele ano existia a capela, tudo fazendo admitir-se ser aquele milésimo o da construção do engenho.
Antes de Cloet foi proprietário do Nossa Senhora da Ajuda, Sebastião Dias, que, a nosso ver, foi o próprio construtor do engenho. Pelas indicações genealógicas de Borges da Fonseca, fica-se sabendo que este Sebastião Dias foi avô de seu homônimo, herói da guerra dos Palmares — Sebastião Dias Manelli. Assinale-se, aliás, que o engenho voltou à posse da família Dias, e isso possivelmente depois da restauração de 1645.
Em 1660 era senhor do engenho Mundaú o capitão Tomé Dias de Sousa, cujo pai se chamava Sebastião Dias Madeiro. Tomé Dias casou com Isabel Manelli, e deste consórcio nasceu Sebastião Dias Manelli. Ainda era senhor do Nossa Senhora da Ajuda em 1672, como se verifica de sua petição, pedindo traslado da provisão régia passada em favor dos senhores de engenho e lavradores (2).
Mais antigo que o engenho de Tomé Dias era o Nossa Senhora da Encarnação (nº 117 do relatório, p. 61), pertencente a Antônio Martins Ribeiro; era o chamado Garça Torta, nome com que foi conhecido durante muito tempo. Dele hoje só restam as tradições de ter sido o mais antigo engenho da região; em sua área, e com a colaboração de engenhos vizinhos, nasceu a Usina Central Utinga. O Nossa Senhora da Encarnação moía à época do relatório de van der Dussen e, localizado mais centralmente que os dois anteriores — o de Lucas de Abreu e o Mundaú — esteve quase sempre preservado do mais aceso das lutas.
Não esteve, entretanto, da influência dos negros palmarinos. De fato, ficava bem próximo dos Palmares e, em consequência disso, muito sujeito às incursões dos negros. Uma descida próxima à casa-grande do engenho era chamada ladeira do Zumbi, e isto pelo fato de por ela descerem os palmarinos capitaneados pelo célebre rei da Serra da Barriga.
Registre-se ainda que o engenho Nossa Senhora da Encarnação ou Garça Torta ficava vizinho da sesmaria de Domingos Jorge Velho, que lhe foi doada em 1698, de acordo com o capítulo 6 das Condições ajustadas pelo mestre-de-campo para a extinção do Quilombo. É bem possível que servisse de limite, quando não mesmo caísse dentro da sesmaria (compreendendo-se os desconhecimentos geográficos da época e a ausência de mapas), pois o Garça Torta fica justamente na linha por onde deveria passar a descrição da sesmaria de Domingos Jorge Velho.
O engenho Nossa Senhora da Encarnação deve ter sido erigido em 1610; neste ano, a 13 de abril, Diogo Gonsalves Vieira, senhor da sesmaria da Alagoa do Norte, doou a Antônio Martins Ribeiro uma légua de terra para fazer engenho, dentro de quatro anos, sendo que àquela data já estava sendo levantado o citado engenho. É o que se deduz do traslado da escritura de 13 de abril de 1610. A doação abrangia uma légua de terras em quadro, e Antônio Martins Ribeiro devia “fazer o dito engenho e fazenda como de feito vae fazendo“. E mais adiante acrescenta o documento: “o dito Antonio Martins Ribeiro é morador e tem feito cazas e vae fazendo a villa e povoação e vae já fazendo o dito engenho” (3).
A povoação, que, aliás somente foi vila em 1830, é a de Santa Luzia do Norte, já assinalada numa das cartas do Livro que Dá Rezão de Estado do Brasil, existente no Instituto Histórico Brasileiro. Em Borges da Fonseca encontramos também a notícia de ter sido Antônio Martins Ribeiro o fundador da Igreja paroquial de Santa Luzia da Alagoa do Norte, nela jazendo sepultado. Vivendo ora em Olinda, ora em Garça Torta, Antônio Martins Ribeiro foi assim o fundador da povoação de Santa Luzia do Norte, não passando de lenda a tradição de ter sido a mesma levantada por um cego, tradição ou lenda a que a autoridade de Almeida Prado deu acolhida (4).
Dos engenhos da Alagoa do Sul, referidos por van der Dussen, temos notícias também em outras fontes, inclusive num documento importante para o estudo da região: o testamento de Gabriel Soares, cujo original li no arquivo do Instituto Histórico de Alagoas, onde foi recolhido por doação do saudoso major Bonifácio Silveira. Em 5 de agosto de 1591, doaram-se os terrenos da Alagoa do Sul a Diogo Soares da Cunha, o qual se encontrava em Lisboa. Constituiu seu procurador a Henrique de Carvalho, que veio a ser mais tarde sogro de seu filho Gabriel Soares. A este é que se deve o levantamento do primeiro engenho daquela zona — o engenho Velho. Onde foi este engenho ergue-se hoje a cidade do Pilar.
Na relação de van der Dussen (nº 120, do relatório, p. 62) o engenho Velho aparece como de Domingos Rodrigues de Azevedo. A este, que era seu concunhado, Gabriel Soares vendeu o dito engenho, como refere o relatório de Moucheron e Walbeeck e o confirma o testamento do vendedor: “Deveme Domingos Rodrigues de Araujo duzentos e cinco mil, novecentos e secenta reis e mais deveme do engenho Velho, por hua escritura quatro mil e quinhentos cruzados” (5).
Vendido o engenho Velho, Gabriel Soares passou a ser senhor do engenho Novo. Teria construído este engenho, a que, aliás, não se refere no testamento, ou o teria herdado de seu sogro Henrique de Carvalho? Esta última hipótese nos parece admissível, pois que no Breve Discurso (1638) Henrique de Carvalho aparece como senhor de engenho; entretanto, não figura na relação de van der Dussen (1639) nem no relatório de Walbeeck e Moucheron (1643). É de aceitar-se a hipótese de Henrique de Carvalho haver falecido neste espaço de tempo, ficando o engenho para sua filha e, consequentemente, para Gabriel Soares.
É certo que em seu testamento declara Gabriel Soares estar fazendo engenho, e a invocação religiosa é a mesma registrada por van der Dussen: Nossa Senhora do Rosário. Parece-nos, porém, que ele estava reconstruindo ou remodelando o engenho, o que se pode deduzir da informação, já registrada em Walbeeck e Moucheron, de que “A casa da moenda não está completa, nem a casa de purgar coberta.”
De Gabriel Soares sabe-se que não aderiu aos holandeses; ao contrário, resistiu-lhes, sendo pelos invasores maltratado, como se pode ler no Valeroso Lucideno. Os flamengos, depois de trateá-lo, deixaram-no com vida, a poder de dinheiro, assinala o padre Manuel do Salvador.
Quanto ao engenho São Miguel (nº 121 do relatório, p. 62), pertenceu a Antônio Barbalho Feio que o vendeu a Martis Mendes, em cujo nome aparece na relação. Não moía; deveria estar arruinado. No vale do rio São Miguel é o mais antigo engenho.
Trata-se do mesmo engenho Sinimbu, nome com que aparece em outras referências contemporâneas, inclusive no mapa de Barleus (edição holandesa); neste, tanto o rio como o engenho trazem o nome de “Sinimby“. Com o nome de Sinimbú é que se celebrizou na vida política e social das Alagoas; à sua existência está ligada a ação heroica de D. Ana Lins, mãe do Visconde de Sinimbu, nas revoluções de 1817 e 1824.
Do seu fundador Antônio Barbalho Feio escasseiam notícias, não se conseguindo informes suficientes acerca de sua vida e de suas atividades. O relatório de Walbeeck e Moucheron registra haver Antônio Barbalho Feio se retirado depois de vender o engenho; afigura-se-me que esta retirada foi em 1635, quando se deu o célebre êxodo guiado por Matias de Albuquerque. Assim Antônio Barbalho Feio teria ido para a Bahia. Realmente, os sobrenomes de Barbalho e de Feio desapareceram das Alagoas; e encontram-se na Bahia.
Estas pequenas achegas em nada contribuem, é certo, para maior valia do relatório ora traduzido, realmente valioso em si mesmo. A riqueza de informações que no trabalho de van der Dussen se encontra, como um dos mais expressivos documentos do período da ocupação holandesa, acrescentou Gonsalves de Melo, neto, com a profundidade de seus conhecimentos sobre aquela época brasileira, suas observações através de notas que ainda mais valorizam o trabalho ora lançado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool.
As observações e informações de van der Dussen sobre o elemento humano holandeses, colonos, portugueses, brasilianos, escravos — são magníficas, e constituem contribuição apreciável para o estudo demográfico da região; da região, e não apenas do período de domínio holandês. Quanto a este, em particular, permite evidenciar-se o contato das raças, o entrechoque étnico, verificado durante aquela fase da vida nordestina.
Quanto à parte sobre a fabricação de açúcar, é não menos valioso este relatório, contribuindo para o estudo não só da economia regional, como também de outros aspectos das condições de vida do Nordeste. Nestas páginas de van der Dussen se encontra evidentemente o melhor material para o conhecimento da economia daquela fase, reconstituindo-se em sua estrutura as condições econômicas das capitanias conquistadas. Trata-se, portanto, de documento cujo interesse para a história econômica e social do Nordeste merece sempre ser ressaltado.
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(1) in Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, vol. V, 1913.
(2) in Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, vol. XVI, 1932, p. 112/3.
(3) Traslado da escritura que fez Diogo Gonsalves Vieira a Antônio Martins Ribeiro, etc., in Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, vol. I, nº 2, junho de 1873, p. 25/26.
(4) Pernambuco e as capitanias do Norte, São Paulo, 1941, tomo 2, p. 439.
(5) O testamento de Gabriel Soares encontra-se no arquivo do Instituto Histórico de Alagoas, por doação feita pelo major Bonifácio Silveira, que o publicou em sua secção “Documentos Históricos,” da Gazeta de Alagoas, de Maceió. Em virtude de pequenos lapsos na publicação, confrontamos este com o original.
Parabéns, Ticianeli.
Fraternal abraço,
Claudio Ribeiro
Excelente trabalho! Sabe se é possível ter acesso à tradução do relatório de van der Dulssen a qual é citada no artigo?