Deve a professora casar?

O jornalista Craveiro Costa ocupou a direção de várias instituições de ensino em Alagoas

O jornalista Craveiro Costa ocupou a direção de várias instituições de ensino em Alagoas

Craveiro Costa*

Uma disposição da legislação escolar de Santa Catarina, em vigor desde 1917, estatui que

as candidatas ao magistério, que se matricularem na Escola Normal, quando diplomadas e nomeadas professoras, perderão o cargo, se contraírem casamento.

Ultimamente, no Congresso de Ensino Primário que se realizou na capital daquele Estado, o assunto interessou vivamente aos congressistas. O meu querido amigo, Professor Flordoaldo Cabral, dentre as muitas sugestões que apresentou no sentido da eficiência da inspeção escolar, que ali exerce com devotamento e grande brilho, lembrou que aquela medida fosse extensiva às professoras complementaristas e provisórias, que exercem o magistério sem passar pela Escola Normal.

Pelo que li, essa sugestão teve o mérito de animar o Congresso, livrando-o da banalidade exclusiva da aprovação de moções congratulatórias ao governo e a aparatosa inocuidade de tais assembleias. E já foi alguma coisa. Discutiu-se acaloradamente e com elevação a tese sugestiva, intervindo na discussão, para prestigiar a extensividade alvitrada, o próprio governador do Estado.

O assunto é deveras interessante.

Deve a professora casar e continuar no exercício do cargo? Acho que não.

O magistério primário, quando bem compreendido na sua alta missão social e exercido com a convicção profissional de um sacerdócio, exige renúncias de quem o professa. Uma delas, a meu ver, é o matrimônio. Porque o casamento, dando à mulher os encargos do lar, que se não limitam a “limpar os olhos dos filhos e fazer a comida do marido”, mas que são encargos graves, múltiplos, árduos e indelegáveis quase todos, dentre os quais este, que a todos sobreleva — a criação e a educação dos filhos — o casamento é um entrave ao desempenho cabal das obrigações que o professorado exige da mulher.

"O magistério primário, quando bem compreendido na sua alta missão social e exercício com a convicção profissional de um sacerdócio, exige renúncias de quem o professa."

“O magistério primário, quando bem compreendido na sua alta missão social e exercido com a convicção profissional de um sacerdócio, exige renúncias de quem o professa.”

O assunto não requer, como se disse, para a sua elucidação, a convocação dos “embaixadores mais graduados de todas as ciências humanas”; não é um assunto que faça “pensar e reconcentrar sociólogos, filósofos, médicos, pedagogistas, higienistas, patologistas e economistas”, e a sua importância não põe em risco a “inviolabilidade da constituição republicana”.

É um assunto batido, que se tornou corriqueiro em muitos países da Europa e nos Estados Unidos, que aceitam o princípio da substituição no cargo à professora que contrai casamento.

No Brasil, porém, país de povo sentimental, que antepõe as razões lacrimosas do coração às severas imposições do cérebro é que assunto dessa natureza precisa andar, para defini-lo e solucioná-lo, do congregamento “dos embaixadores mais graduados de todas as ciências humanas”.

Não quero dizer que seja um assunto banal; é todavia, um assunto que pode ser tratado terra a terra, sem divagações de alta ciência. Porque a incompatibilidade é manifesta, ressalta. Não se podem conciliar as responsabilidades que pesam sobre a mulher casada: sobrevêm períodos mais ou menos longos que a impossibilitam de exercer qualquer profissão. Se essa mulher é professora, quando assaltada por esses períodos, tem de ser afastada do magistério. Licencia-se, o governo dá-lhe substituta, e quem lida todos os dias com as escolas não ignora quão prejudicial se tornam essas substituições à normalidade e à eficiência do ensino.

Contrato de Professores em 1923

Moralmente, do ponto de vista doméstico, o magistério, para a professora casada, se tem de dar a sua aula fora de casa, torna-se até um suplício, que nem a continuidade dos anos de exercício tem o poder de suavizar.

Diariamente, deserto o lar dos seus cuidados, durante cinco ou seis horas, com a obrigação de sair de casa às vezes em condições precárias de saúde, esse tempo escolar passa a ser para ela um sacrifício inaudito pelas apreensões resultantes do abandono da casa, entregue, comumente, a gente mercenária destituída da mais elementar noção do dever.

O instinto maternal leva-lhe, a cada momento, o coração e o cérebro para os filhinhos que ficaram a esperá-la, órfãos dos desvelos que só as mães sabem prodigalizar, e, enquanto o espírito vagueia ao redor dos filhos na casa erma da sua solicitude, ela, mecanicamente, sem o menor entusiasmo, alheia em absoluto à grandeza da sua missão social, procura cumprir o seu dever, olhos fixos no relógio, que lhe parece parado, – a classe, em franca indisciplina, entregue aos excessos da infância, as lições alinhavadas, o ensino à matraca, a educação em desordem, todo o tempo consumido improficuamente, em pura perda dos fins tutelares do Estado.

Prejuízo duplo: perde a escola e perde a família.

Há exceções, mas é esse o quadro geral.

"Moralmente, do ponto de vista doméstico, o magistério, para a professora casada, se tem de dar a sua aula fora de casa, torna-se até um suplício, que nem a continuidade dos anos de exercício tem o poder de suavizar."

“Moralmente, do ponto de vista doméstico, o magistério, para a professora casada, se tem de dar a sua aula fora de casa, torna-se até um suplício, que nem a continuidade dos anos de exercício tem o poder de suavizar.”

Se a professora casada tem a sua escola na casa em que mora, então só quem perde é a instrução. A cada momento a professora abandona a sala de aula, seja para dar ou reiterar uma ordem, seja para, ela mesma, tomar uma providência qualquer, seja para atender as exigências da maternidade…

Ao fim do dia letivo, todas essas interrupções, durante as quais a meninada ficou em plena e perniciosa liberdade, somadas, importam em duas ou três horas tiradas ao cumprimento do dever profissional.

A família, é certo, nada perdeu, mas as crianças que o Estado lhe confiou para o duplo mister da educação e da instrução, essas perderam.

São duas hipóteses banalíssimas e de fácil verificação. Mas a banalidade não lhes diminui a importância.

Não quero avançar a proposição de que pelo fato de ser solteira a professora seja ela uma cumpridora rigorosa dos seus deveres. O cumprimento do dever escolar depende de muitas outras condições, das quais aquela é uma das mais importantes, senão a principal. Também do que venho alegando se não infere que não haja professora casada que se não devote à sua profissão até com mais entusiasmo que algumas solteiras. Mas são exceções…

O ideal seria que nem o Estado perdesse, nem a família. Como livrar a instrução desses inconvenientes, que ressaltam, que estão à superfície do assunto, dos quais só podem ajuizar os que, no exercício da fiscalização escolar ou à frente de uma casa de ensino público, estão em comunicação diária com a vida íntima das escolas?

A providência é aquela mesma já em parte adotada em Santa Catarina. Lá, onde se cuida seriamente das coisas da instrução, se não com o aparato de S. Paulo com igual desvelo e seriedade, o problema marcha para uma solução completa. Lá, a moça que se candidata ao magistério, fazendo o curso da Escola Normal, sabe que, nomeada professora, deixará o cargo, se matrimoniar-se. A exigência, porém, é restrita; não alcança as candidatas que, sem aquele curso, são nomeadas para as escolas [trecho ilegível no original — p. 58].

"Lá em Santa Catarina), a moça que se candidata ao magistério, fazendo o curso da Escola Normal, sabe que, nomeada professora, deixará o cargo, se matrimoniar-se."

“Lá em Santa Catarina), a moça que se candidata ao magistério, fazendo o curso da Escola Normal, sabe que, nomeada professora, deixará o cargo, se matrimoniar-se.”

A lei catarinense, porém, não devia excetuar. A exceção como que fecha as portas da Escola Normal à maioria das professoras. O casamento é ainda e será sempre uma aspiração legítima da mulher. E como pela lei de 1917, o casamento seja uma incompatibilidade para o exercício do magistério, resulta que as candidatas neutralizam a exigência legal, habilitando-se para professora fora daquele estabelecimento, donde devem sair as verdadeiras capacidades profissionais.

Essa exceção, além do mais, odiosa, desapareceria com a aprovação da medida sugerida pelo Professor Flordoardo Cabral. Em todo caso, naquele Estado, a professora que recebe um diploma da Escola Normal já sabe que o casamento a incompatibiliza para o magistério. Se casar terá de deixar a profissão. E até não é mau que assim seja para ela própria, porque afasta do redor de si a casta numerosa dos que, sem profissão, casam com professoras só pelos vencimentos…

É uma guerra inteligente aos “Quincas”…

*Sem referências, por conta das condições precárias do documento de onde o texto foi colhido, sabe-se, porém, que foi de uma “REVISTA DE ENSINO”, publicada provavelmente em 1927, a se considerar a data da correspondência recebida pelo autor.

Extraído do livro Instrução Pública e Instituições Culturais de Alagoas & outros ensaios, de Craveiro Costa, Edufal, 2011.

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