Crônica de um Natal
Breno Accyoli
*Publicado na Revista Mocidade nº 6, de novembro e dezembro de 1946.
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Nas costas de um relógio que minha mãe me deu no dia da primeira comunhão, uma fotografia de uma velha gorda se amarelece num rosto que foi um enigma há muitos anos.
Apesar de pequena, velha, já me basta essa fotografia de cabeça cacheada, pois todas as vezes que a relanço, Mãe Doia toma corpo, se me depara tão real, como se a houvesse conhecido, presenciado os caprichos de sua vida.
Não sei como lhe ocorrera tamanha ideia, mas o certo é que num Natal de 1910, ano do cometa de Haley, Mãe Doia transformou o salão numa estrebaria e a incenso tresandava todo o sobrado sugerindo um enorme turibulo de pedra.
Ainda hoje quem for morar em Santana do Ipanema poderá escutar das netas da parteira Teodora esta história que se balança num ritmo de berço. Naquele sobrado, aonde, da varanda me ensinaram a distinguir ás cores lendo as faixas do arco-íris — no sobrado enorme como um navio, Mãe Doia fez instalar uma manjedoura, capim santo colorindo de verde o estábulo, a pender do teto a Estrela d’Alva se abrindo numa rosa de Flandres. Tudo a se harmonizar, em tudo a face da verdade e quem desconhecesse aquele delírio de Mãe Doia poderia até assustar-se ante a fidelidade daquelas coisas.
Foi ser menino-Deus um recém-nascido, abjurado pelo ventre materno ao berço frio de um batente.
José, e os três Reis Magos — símbolos nos ossos de Tiopompo, na cor parda de Agapito, no semblante mirifico do açougueiro de nome Rosendo.
Nossa Senhora na inocência de uns vinte anos que se chamava Abigail. E o cajado que floresceu depois de murcho fora um capricho de perfeição do marceneiro Josias. Mãe Doia queria uma coreografia do Natal e lá estavam todas as figuras, a caráter, que de pureza lhes lavava as faces, de ternura lhes beatificava os olhos.
Até o representante do burrinho de São José comportou-se direito, sem rinchar, sem escoicear nem fazer porqueira no assoalho.
Um autêntico Natal, puro como uma pluma, misterioso como o despertar de um dia.
O Rei Baltazar oferecendo mirra, incenso nas mãos do Rei Gaspar e asseguram que Agapito, fazendo as vezes do Belchior era a encarnação da virtude.
Abigail, um lago, sorrindo de leve como sorriem os lábios de certas estampas. Tiopompo embevecido, de olhos a neblinar, de mão direita a se florir no cajado como a de São José se floriu.
Mãe Doia mandou abrir a porta somente à meia-noite.
Lá em baixo, o povo se comprimindo nas paredes da escada, um barulhão de fim de mundo assustando baratas, pulgas, piolhos dos degraus.
Somente à meia-noite a multidão escutou os cânticos de rimas celestes, viu 12 meninas cirandarem em redor do presépio, aquele Natal tão estranho lhes arrancando do fundo peito mistura de conforto e êxtase.
Então, Mãe Doia começou a enriquecer. Ninguém que se esquecesse do presente do menino-Jesus. O porão do sobrado a se estufar de sacos de farinha, de metros de linguiça, de arroubas de algodão vindas de léguas no lombo de jumentos.
Todos a depositar aos pés da manjedoura as oferendas.
De tão cheio o porão a contorcer-se a maneira de uma barriga empanzinada. Quatro vagabundos encarregados de descer as oferendas para o porão, botaram a língua de fora.
Mãe Doia ereta no corpo de ombros de ferro, somente olhando, olhando aqueles fardos, aquelas cestas, aquelas mochilas de queijo fresco, chegando, desembarcando para o porão de seu navio adernando. Mãe Doia ficando cada vez mais rica. Mantimento para 100 pessoas durante todo um ano. E a matutada sem compreender nada, otária, engordando Mãe Doia,
Certa vez Mãe Doia inutilizou uma pergunta que lhe poderia tornar infeliz, respondendo com a luz da sabedoria.
— “Tudo isso é para o leilão. O leilão que dará o dinheiro para as torres da Matriz“.
A matutada como se tivesse mais fé a uma igreja que de cada lado duas torres figurassem dois chapéus! E toma saco de milho, tome madeiras de lei, tome notas de Floriano Peixoto [500 mil réis]. Mãe Doia um balão de tão rica, uma caixa-forte de segredo inviolável.
Passaram em favor de Mãe Doia escrituras de terras, de prédios; de tudo Mãe Doia recebeu. Vacas, zebus, éguas, poldros, galinhas, cavalos…
O que a matutada queria era ver em cada ombro da igreja o pescoço de uma torre de cabeça de pedra e cal.
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Não é preciso dizer que as torres da igreja de Santana do Ipanema ainda são traços de régua no pergaminho de cálculos de um construtor. As netas da parteira Teodora trancam a cara quando a narrativa atinge a este ponto. E nas feiras de sábado não é raro se escutar um matuto condenar as vantagens de uma transação aparentemente honesta lucrativa — uma pechincha — com o conhecido refrão:
— “De Dona Torre eu não sou parente”.
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Mãe Doia, ainda hoje, significa tanto para a matutada de Santana do Ipanema quanto para os astrólogos de 1910 significou a realidade da cauda, do corpo e da cabeça do cometa de Haley.
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Ambos deixaram atrás de si o eco de uma música, talvez motivo para uma canção, uma valsa, uma embolada de violinha.
Texto magnífico.