Crime no Senado

Testemunho do senador Auro de Moura Andrade, que presidiu a trágica sessão de 3 de dezembro de 1963 quando Arnon de Melo atirou em Silvestre Péricles e matou o senador Kairala

Arnon de Melo (PDV-AL) presta depoimento na 1ª Vara Criminal de Brasília Polícia durante o inquérito da morte do senador Kairala.

Senador Auro de Moura Andrade
Publicado no Jornal do Brasil de 17 de junho de 1984, extraído do seu livro Memorias inéditas.

Silvestre Péricles era um troglodita. Constituía ele um risco permanente as pessoas. Pertencia, porém, a uma família de grande prestigio nacional. Seu irmão fora Ministro da Guerra do Presidente Getúlio Vargas e nesse período Silvestre Péricles se tornara senhor de baraço e cutelo em Alagoas, governou aquele Estado umas duas vezes, fosse como interventor ou como governador.

Senadores Arnon de Melo e Silvestre Péricles, de dedo em riste, discutem no Senado antes da tragédia

Os fatos de que participou eram de tal forma incríveis, absurdos, cercados de uma violência sem nome, que se pode hoje dizer que seriam lendas, pois ninguém que não os haja conhecido neles acreditaria.

Não obstante esse temperamento, foi membro do Tribunal de Justiça Militar e, se não me engano, imortal de alguma academia, talvez em Alagoas ou no Distrito Federal.

Durante a primeira metade do seu mandato, os seus discursos se referiam ao Sr. Arnon de Mello por uma forma tão violenta e tão antiparlamentar que eu precisava censurar-lhe as expressões, conforme determinava o regimento interno. Ele não se conformava com isso, e foi-se tomando de um ódio mortal contra a minha pessoa.

Quando o Sr. Arnon de Mello foi eleito, Silvestre Péricles estabeleceu que o mataria no dia em que fizesse o primeiro discurso. Era impossível evitar uma desgraça deliberada. O Sr. Arnon de Mello também era alagoano e tinha sucedido no Governo do Estado ao Sr. Silvestre Péricles. Prestou juramento, e como havia uma missão interparlamentar a ser realizada na Europa, eu, sem nada dizer-lhe, o indiquei para ela, a fim de ganhar tempo, pois era absoluta a iminência do assassinato.

Regressou da Europa, mas foi mantido no Rio de Janeiro por seus amigos e familiares até fins de novembro. Depois disso, nada e ninguém conseguiu segurá-lo. De janeiro, quando tomara posse, até 3 de dezembro, Arnon de Mello se mantivera ausente do Senado. Não podia mais suportar essa situação. Havia resolvido enfrentar todas as consequências de um passado de ódios, que nasceram em Alagoas e se transportaram agora para Brasília. O Senado Federal ia transformar-se numa caatinga, no palco do mais despudorado cangaço.

Em 3 de dezembro de 1963, uma terça-feira, encerrou o prazo da licença do Senador José Guiomard. O General José Guiomard representava o Estado do Acre no Senado. Seu suplente era o senhor José Kairala. Foi, por isso, o último dia do Sr. José Kairala na cadeira senatorial.

Senador José Kairala, do Estado do Acre.

Terminada a sessão, o Senador José Kairala procurou-me na Presidência. Era um homem do interior do Acre, daquelas remotas e selváticas paragens do país. Seus pais haviam ido para lá construído uma numerosa família de que então se tornara chefe o filho José Kairala, nascido na Amazônia, e que granjeara o respeito e a amizade dos habitantes daquela região.

Quando ele chegou para tomar posse, em virtude da licença do Senador José Guiomard, trouxe uma porção de coisas da sua terra, com as quais presenteou os seus colegas. A cada um ofertou alguns cajus maduros e enormes, “que um só dava para fazer um copo de suco ou uma cajuada para quatro pessoas”, como informara.

Na ocasião em que se apresentou à Presidência, antes de prestar o compromisso, presenteou-me com uma faca de mato, fabricada na sua cidade. E durante o tempo em que permaneceu em Brasília pronunciou alguns discursos sobre a sua terra, a riqueza que nela existia, pediu para ela mais atenção do Governo e do Congresso. Tudo com a comovente simplicidade de um homem que se devotara ao lugar em que nascera, onde estava sepultado o seu pai, onde nasceram os seus filhos, onde pretendia viver e morrer.

Filho e esposa do senador José Kairala

Naquele dia 3 de dezembro, porém, encerrava-se o tempo de seu mandato. Veio dizer-me que voltava para o Acre com mãe, a mulher e os filhos, pois trouxera todos para Brasília. Mas somente iria no dia 5, que era o dia em que havia melhor voo para Rio Branco. Ao final da conversa, quase timidamente, perguntou-me se poderia vir ao Senado no dia seguinte. E com receio de que eu recusasse, prosseguiu explicando o motivo: “que acreditava que o Senador José Guiomard não chegaria no dia 4; que não havia levado a família nenhuma vez ao Senado e queria que ela tivesse uma lembrança do tempo em que ele foi Senador”.

Eu lhe respondi que poderia permanecer no recinto no dia seguinte, desde que não fizesse uso da palavra nem votasse na ordem do dia. Perguntou-me se a família poderia ocupar a Tribuna de Honra, e eu lhe respondi que isto era natural, pois ele era um Senador e tinha esse direito. Explicou-me ainda que o filho havia ganho uma Kodak com flash, que ia tirar um retrato dele sentado no Plenário e, portanto, talvez precisasse mudar de lugar para facilitar a fotografia.

Eu lhe disse que fizesse tudo o que quisesse. Saiu da minha sala alegre e agradecido.

No dia seguinte, à hora regimental, já se achavam na Tribuna de Honra a mãe, o filho e a esposa. E ele conversava com os três animadamente, no momento em que me sentei na Presidência e fiz soar a campainha. Fiquei a observá-lo enquanto o Senador Gilberto Marinho procedia a leitura do expediente. Conversava com o filho e por duas vezes mudou de cadeira.

Momento em que o revólver de Arnon de Melo dispara e atinge o senador Kairala, que estava sentado ao fundo e expressa no rosto a dor pelo ferimento

O Senador Gilberto Marinho terminou a leitura do expediente. O primeiro orador inscrito era o Senador Arnon de Mello. Nesse instante o Senador Lino de Mattos sobe à Presidência e me avisa que o Senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro lhe dissera “que ia encher de balas a boca do Senador Arnon de Mello, assim que ele começasse a falar”.

Agradeci ao Senador Lino de Matos e me dirigi ao Plenário:

“O Expediente está encerrado.” — declarei: “O primeiro orador inscrito é o Senador Arnon de Mello“. E diante da informação que acabara de receber, acrescentei o seguinte: “Antes de dar a palavra a S. Exa., a Presidência precisa declarar que manterá a ordem e o respeito indispensáveis no Senado, nos limites máximos de sua força. Se, porventura, entre a assistência, ou nos corredores desta Casa, alguém perturbar a ordem, será posto imediatamente em custódia. Se, desatendidas as advertências da Mesa, houver qualquer delito, será imediatamente aberto inquérito e promovida a responsabilidade, inclusive com a lavratura do auto de flagrante indispensável e entrega às autoridades competentes”.

O Senado, porém, não era isto que eu estava dizendo. Parecia-me que eu estava a violentá-lo com estas palavras, pois aquela Casa sempre fora a de homens respeitáveis, que entraram para a história parlamentar ou do Brasil como patriotas responsáveis, honrados cidadãos que vinham com serenidade e patriotismo realizando o equilíbrio da Federação. Eu devia o máximo respeito aquela Casa, cuja representação era-me seguidamente confiada. Precisei, porém, falar com aquela energia, quase violência, do contrário seríamos destruídos pelo ódio, que armava cruelmente as piores mãos assassinas.

Silvestre Péricles sendo contido por senadores e Polícia do Senado

Terminada aquela advertência, dei a palavra ao Senador Arnon de Mello. Este apenas conseguiu pronunciar em atropelo as seguintes palavras: “Sr. Presidente, permita V. Exa. que eu faça o meu discurso olhando na direção do Sr. Senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, que ameaçou me matar, hoje ao começar o meu discurso”.

Ouve-se um grito colérico: “Crápula!

(Estampidos. Tumulto)

Transcrevo o que se seguiu:

“O SR. PRESIDENTE (Fazenda soar insistentemente as campainhas) — Os guardas retirem do Plenário os srs. Senadores Silvestre Péricles e Arnon de Mello.

(Pausa. Tumulto)

Atenção. Srs. Senadores! Lamentavelmente tenho a comunicar aos senhores que está ferido o Senador José Kairala. A sessão está suspensa para ser socorrido aquele Senador.”

Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, dá voz de prisão a Arnon de Melo

Determinei providências para que fosse socorrido o Senador Kairala, que foi removido com urgência para o Hospital Distrital de Brasília.

Dirigi-me ao Senador Arnon de Mello, que ainda se achava no Plenário, cercado de senadores e guardas de segurança. Dei-lhe voz de prisão, determinando que fosse recolhido ao Quartel da Aeronáutica. Em seguida dirigi-me à sala do líder da maioria, Filinto Muller, onde se achava o Senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, e ali também lhe dei voz de prisão, mandando que fosse recolhido ao Quartel do Exército.

Silvestre deu uma gargalhada selvagem. Sua fisionomia se decompôs completamente. Olhou-me com olhos vermelhos, injetados de sangue, e disse: “Não me mande para o Quartel do Exército, pois de lá saio assim que chegue, e volto para matá-lo“.

Silvestre Péricles deixa o Senado rindo nervosamente ao ser levado para o Quartel do Exército

Silvestre Péricles saiu, levado pelo seu condutor, e acompanhado dos guardas do Senado. Foi deblaterando, ria nervosamente: “Assim que voltar mato Auro, antes de Arnon“.

Designei o Senador Eurico Rezende, conhecido advogado criminalista do Espirito Santo, senhor de muitas vitórias judiciárias, penalista e processualista de mérito, para proceder a lavratura do auto de prisão em flagrante.

Tudo isso se passara entre 15h3min e 16h5min. Uma hora exatamente depois de haver suspendido a sessão, providenciado socorro ao infeliz José Kairala, e efetuado a prisão dos dois senadores e os mandado recolher, reabri a sessão, às 16h5min. Apenas para comunicar as providências adotadas.

“Está reaberta a sessão, esta Presidência comunica que efetuou a prisão dos senhores Arnon de Mello e Silvestre Péricles, fazendo-os recolher, o primeiro, ao Quartel General da Aeronáutica e o segundo ao Quartel General do Exército, em Brasília.

Neste instante estão sendo elaborados os respectivos autos de flagrância do delito, que são a base do processo a ser instaurado contra ambos. Uma vez ultimados, o Senado se reunirá em sessão extraordinária, secreta para tomar as providências indispensáveis. Esta Presidência, nos termos do Regimento Interno, vai destinar um membro da Mesa para presidir o inquérito relativo aos fatos verificados no Plenário desta Casa hoje”.

Kairala tinha sido baleado na última fila do primeiro lance, diante da Tribuna de Honra. Ele nunca se sentara naquele lugar. Havia escolhido aquela cadeira, depois de experimentar outras, porque era a que melhor convinha para a fotografia que o filho ia bater.

Senador Kairala recebendo os primeiros socorros ainda no Senado

A Casa estava deserta. Havia sangue no tapete e no mármore do hall. Já vinha chegando o pessoal da limpeza. chamado pelo diretor Evandro Vianna, para lavar os locais que já tinham sido fotografados pela polícia. Segui aquele rastro de tragédia. Ele chegava ao hospital, onde Kairala estava morrendo.

Áudio da sessão em que Arnon de Melo (PDC AL) discute com Silvestre Péricles (PST – AL) e dispara contra ele.

6 Comments on Crime no Senado

  1. Parabéns, caro Edberto Ticianeli, por tão brilhantes matérias que você tem divulgado no História de Alagoas, trazendo às nossas memórias acontecimentos que marcaram importantes momentos da nossa história.

  2. niraldo nascimento // 20 de novembro de 2021 em 19:14 //

    Parabéns pela matéria um resgate da nossa politica.

  3. Jose Nilton A. Lima // 19 de março de 2023 em 15:18 //

    Um resgate histórico da nossa politica, mas doloroso para nós, alagoanos, que ordeira e pacificamente respeitamos as regras da boa convivência entre os diferentes.
    Parabéns Ticianelli.

  4. Gostaria muito de saber como estão os filhos do suplente, como eles ficaram se tiveram alguma indenização. Se são políticos.

  5. Emerson Júnior Gonçalves da Silva Figueiredo // 30 de setembro de 2023 em 17:00 //

    Gostaria de saber se você poderia enviar a foto de José Kairala no flickr em Licença CC-BY-SA-2.0, pra ser utilizada na Wikipédia de José Kairala, pois o Senado não possui nenhuma imagem dele.

  6. aINDA BEM QUE ESSES LIXO HUMANOJA ESTOA NO FOGO DO INFERNO

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