Conceituação do folclore
Comunicado à Comissão Nacional do Folclore por ocasião da Semana do Folclore realizada em agosto de 1948, publicado no Suplemento de A Manhã de 5 de fevereiro de 1950
Arthur Ramos
Desde que a palavra “folk-lore” surgiu pela primeira vez no número de 22 de agosto de 1846, no jornal “The Athenaeum”, de Londres, proposta pelo arqueólogo William John Thoms, nenhum termo tem sido mais empregado e nenhum conceito menos bem definido.
A sua clientela é vasta e heterogênea: é recrutada entre cronistas de rádio, críticos literários, amadores de arte, antiquários, musicólogos (que muitas vezes se referem à música popular como “folk-lore”), gramáticos e filósofos, poetas, professores… E por isso mesmo, a exata definição desta hoje disciplina científica tem oscilado ao gosto disparatado de afeiçoados tão diversos.
As primeiras definições inglesas do “folk-lore” abrangiam o objetivo do que se considerava como sendo as “antiguidades vulgares” ou as “antiguidades populares”.
“Folk-lore”, o “lore” ou a “ciência do povo” era pois tudo que vinha da “common folk”, suas práticas coletivas, seus costumes, seus ritos e cerimônias, suas crenças, “old Rites and Cerimonies to the Burdening of the People… innocent Customs… Pleasures and Recrations”. Como está no prefácio do velho livro de Henry Bourne.
Certamente que não era qualquer um que se dignaria descer a se interessar por esses “inocentes costumes” e por isso o objetivo dessa disciplina parecia a muitos “dull” ou “trivial”. Só aos poucos é que o “folk-lore” se iria tornar “a mais atrativa e séria das ciências” no dizer de Andrew Lang. O “folk-lore” vai então transformar-se na “ciência que estuda a expressão, nas crenças populares, instituições, práticas, literatura oral. E artes e passatempos, da vida mental e espiritual do “folk”, do povo em geral…”.
Mas o objetivo principal do “folk-lore”, nos primeiros tempos da sua criação como disciplina autônoma era mais propriamente a literatura não-escrita das sociedades adiantadas. Era essa, pelo menos, a tradição francesa, já interessada de longa data num aspecto da literatura, que era o das “tradições populares”, significando mais frequentemente o conjunto da chamada “literatura anônima”, “literatura tradicional” ou “história não escrita”, de uma determinada sociedade, em contraste com a sua literatura oficial, perpetuada nos livros de autores conhecidos.
A coleta e estudo dos “contos populares”, constituem assim os primeiros e mais importantes objetivos do “folk-lore” europeu, principalmente francês. O seu domínio foi, assim, demasiado restrito, nesses primeiros tempos. Mas, pouco a pouco, os contos de fada foram considerados como sobrevivências de velhos cultos do paganismo romano, e assim o “folk-lore” conquistou profundidade, como destaca Van Gennep.
Ao lado disso o “folk-lore” estendeu-se em superfície. Dos contos de fada, passou a interessar-se pelas narrações dos camponeses, pelas legendas agiográficas, por uma série de processos rituais ligados à vida humana — nascimento, puberdade, casamento, morte… e que constituem o que Van Gennep chamou os “ritos de passagem”.
Mas o “folk-lore” foi se alargando nos seus objetivos. Interessou-se pela linguística e passou a estudar a origem das expressões proverbiais, as canções, as advinhas e fórmulas populares, as superstições.
Em 1866, Sébillot queixou-se que o domínio do “folk-lore” “parecia muito circunscrito; não compreende mais que os contos, as legendas, os cantos populares, os provérbios, as advinhas, as fórmulas, este conjunto que forma uma espécie de “cultura recreativa” para aqueles que não podem servir-se dos livros, por ignorância ou falta de tempo, a qual se pode designar pelo nome coletivo de “literatura oral”.
Já naquela época, Sébillot propunha acrescentar ao domínio do “folk-lore” o que ele iria chamar “etnografia tradicional”, termo impróprio porque, como ele mesmo reconheceu, seus limites não são “cômodos de traçar, e há sempre entrelaçamento entre as fronteiras desta ciência e as da etnografia propriamente dita e as da antropologia somática”.
Sébillot fazia entrar no domínio da “etnografia tradicional”: as operações da vida humana que se ligam às crenças não-oficiais tais como conjurações, a magia, todos os atos e crenças populares com relação ao mundo físico e animado, a que ele acrescentou depois toda uma série de fatos que chamou de “sociologia etnográfica”, e que muitos interpretaram como uma extensão abusiva dos objetivos de “folk-lore”.
Mesmo com esse alargamento desmesurado dos objetivos do “folk-lore”, seus limites ficaram contudo dentro dos aspectos que chamaríamos “não materiais” da cultura. Era ainda o conjunto das “tradições populares” o seu principal objetivo. E é por aí que enveredaram as principais definições do legítimo conceito do “folk-lore” destacando dois aspectos próprios: o da “tradição oral” ou da tradição não-escrita, e o da sua coexistência ou sobrevivência nos meios civilizados.
Os alemães alargaram, porém, mais ainda o âmbito da sua “Volkskunde” que além das tradições orais, ainda estuda vários outros aspectos da vida social e material do povo, como as profissões, alimentação, habitação, gênero de vida, etc. Era uma incursão audaciosa nos domínios da Etnologia, tornando mais difícil ainda estabelecer os limites respectivos exatos, que tanto preocupava Sébillot. Além disso, paralelamente ao estudo do “Volkskunde”, começou a desenvolver-se na Alemanha uma disciplina criada por Meringer, a qual, com o nome de “Woerter und Sachen”, invade o domínio da linguística e da dialetologia.
Essas interpretações abusivas acabam por saturar o domínio do “folk-lore”, cujos limites agora vão se tornar perigosamente imprecisos. Principalmente, quando se trata dos limites com a “Etnologia” e sua parte descritiva, a “Etnografia”. Um dos pontos mais controversos tem sido o da coleta e estudo de objetos e fatos da chamada “cultura material”. Organizaram-se mesmo, na Suíça, nos países escandinavos, museus de “folk-lore” com pretensões a completa autonomia dos museus antropológicos. Chega-se a falar num “folk-lore ergológico” (de ergon, trabalho) empregando-se um termo rebarbativo que Montandon aplicou à expressão tradicionalmente aceita, em Etnologia, de “cultura material”. Tratar-se-ia, neste caso, de estudar a economia, o fogo e a metalurgia, a habitação e o mobiliário, o vestuário e a ornamentação, as armas e a indústria, o comércio e meios de transporte, etc., o que constitui uma audaciosa intromissão nos domínios da etnologia e da geografia humana…
É por isso que se tem dado hoje o nome de “folk-lore” a obras de caráter muito diverso. Não parece que tenha razão aqueles que pensam com o folclorista belga A. Marinus, quando escreveu: “Não precisamos nos inquietar para saber onde começa e onde acaba o “folk-lore”. E Saintyves, que transcreve essa opinião, combate-a logo após, dizendo que “não se faz ciência deixando numa espécie de nevoeiro o objetivo que se tem em vista, e renunciando a toda definição precisa”.
Não quero dizer que o “folk-lore” não se interesse pelos objetos e fatos da cultura material, mas isto lhe é “acessório”. A chamada “ergologia” só pode interessar ao “folk-lore”, quando ligada aos fatos da vida tradicional, principalmente nas sociedades chamadas civilizadas. Van Gennep foi muito claro nesse sentido: “…uma limitação do “folk-lore” é necessária, sob pena de penetrarmos demasiado no domínio de outras ciências conexas.
Se o “folk-lore” se ocupa de fatos antigos, históricos ou arqueológicos, é apenas acessoriamente porque cada fato atual tem antecedente que é preciso tentar discernir para compreender. Mas o que interessa ao “folk-lore” é o fato vivo, direto… Está muito bem recolher em museus objetos em uso nas nossas diversas províncias: mas isto não é mais que um acessório do “folk-lore”, sua parte morta. O que nos interessa, é o emprego desses objetos por seres atualmente vivos, ou costumes verdadeiramente executados debaixo dos nossos olhos e a pesquisa das condições complexas, sobretudo psíquicas, desses costumes”.
Esta imprecisão de limites foi antes de tudo o desconhecimento dos progressos das ciências antropológicas. Realmente, em fins do século passado e começos do atual, o “folk-lore”, como aliás a chamada “etnografia”, eram considerados disciplinas pitorescas, que tratavam de fatos “curiosos” ou “exóticos”. Isto foi a consequência do erro de visão do homem da cultura ocidentalóide, que se julgou colocado no topo de uma escala de valores, e padecia de um defeito de método que hoje chamamos de “etnocentrismo”. Tudo o que não pertencesse à sua raça, à sua casta, lhe parecia estranho, esquisito ou digno apenas de uma curiosidade benévola.
Vemos que o “folk-lore” surgiu como tentativa de sistematização, justamente numa sociedade hierarquizada como a inglesa, onde o “common people” jamais se confundiu com a casta aristocrática. O “folk-lore”, a “ciência do povo”, servia para dar uma visão da psicologia desse “povo” pelo conhecimento dos seus hábitos, dos seus modos de vida, dos seus cantos, da sua literatura, necessariamente “anônima”.
O desenvolvimento recente das ciências antropológicas e sociológicas veio colocar o “folk-lore” no seu lugar devido, com seus objetivos e seus métodos próprios. A Antropologia recobrou a sua antiga significação de “ciência total do homem”, considerando nos seus aspectos físicos e culturais. “Folk-lore” será assim considerado uma subdivisão da Antropologia. Ele estuda um dos “aspectos” da cultura, por uma necessidade de divisão de trabalho no imenso campo das ciências sociais. Vai estudar, não apenas as tradições populares no seio das sociedades adiantadas, não apenas as sobrevivências, como assinalou tão bem Renato Almeida, em artigo recente, mas aqueles aspectos da cultura que constituem um corpo de tradição e normas costumeiras de vida.
Chegamos assim à conclusão que há dois conceitos gerais para o “folk-lore”:
1º — “Folk-lore” é a ciência das tradições populares no seio dos povos civilizados (Sébillot, Saintyves), abrangendo a “literatura tradicional” e a “etnografia popular” (Sébillot);
2º — “Folk-lore” é uma divisão da Antropologia cultural que estuda aqueles aspectos da cultura de “qualquer povo”, que dizem respeito à literatura tradicional: mitos, contos, fábulas, advinhas, música e poesia, provérbios, sabedoria tradicional e anônima.
Se o primeiro desses conceitos é o dos folcloristas clássicos, o segundo parece mais consentâneo com o desenvolvimento atual da Antropologia, de que o “folk-lore” constitui uma das divisões mais importantes se cheias de interesse. “Folk-lore” está para a Antropologia cultural na mesma situação que a linguística, a arqueologia e outras subdivisões que estudam os vários “aspectos” da cultura.
É preciso que “Folk-lore” não seja confundido com Etnologia, ou com a “etnografia”, disciplina, esta última, “descritiva” da cultura. O “folk-lore”, embora com seus métodos próprios e seus objetivos definidos, deve sempre acolher-se à sombra larga da “Antropologia”, a verdadeira ciência do Homem, nos seus quadros naturais e culturais.
Um último aspecto — “last, not least” – a considerar, é o significado funcional de “folk-lore”. Ele não deve ser separado do conjunto da cultura de que é um dos elementos. E por isso não recomendável a sua coleta, quando feita separadamente do conjunto cultural de que é parte funcional.
Será uma das atribuições da “Comissão Nacional de Folk-lore” esclarecer aos seus associados que a tarefa de coleta do material folclórico deve ser acompanhada de outros dados que permitam uma visão da cultura total a que o “folk-lore” pertence. Ou que, pelo menos, seja dada uma ideia geral do conteúdo da cultura regional, ou da comunidade, onde foi colhido o material folclórico.
Viva o nosso rico folclore.
Parabéns.
Amigo Ticianeli
Mais uma vez venho a elogiar o seu importante trabalho.
A foto da Cavalhada, me traz muitas recordações do meu velho bairro, Bebedouro. A foto datada de 1955, foi tirada na Rua Cônego Costa. Eu tinha então 12 anos. Não dá para identificar, mas eu estava junto daquela molecada!!!!
Davi Rodrigues de Sena