Chico Doutor: o homem que transformou o Sertão em chão de estrelas

Construtor bem-sucedido nos anos 60, 70 e 80, este empresário alagoano marcou época tornando-se o primeiro promotor de eventos do Estado a levar artistas do primeiro time da MPB e celebridades para o Sertão

Roberto Carlos ciceroneado por Chico Doutor (ao centro) na passagem do cantor pelo Sertão em 1973

Por Wellington Santos, adaptado pela editoria do História de Alagoas

Chico Doutor nos tempos de vacas magras no Rio de Janeiro, no fim dos anos 1950 (Foto Acervo de família)

Para muitos ele foi um mecenas, para outros um empresário bem-sucedido da construção civil que adorava festas e queria ver o povo feliz. Tornou-se o que se chama atualmente no show business do primeiro grande promotor de entretenimento de Alagoas.

Francisco Martins de Oliveira, conhecido por todos os recantos do sertão alagoano como Chico Doutor, nasceu em 1929 num povoado perto de Olho D’Água do Casado. Não teve uma vida fácil. Seu pai foi assassinado quando tinha apenas três anos de idade e a família perdeu todas as terras.

Nos primeiros anos da década de 1950 trabalhou como servente de pedreiro no início da construção da Usina Elétrica de Paulo Afonso. Ainda nos anos 50, pegou as economias, a mulher e em cima de um caminhão pau de arara foi tentar a vida no Rio de Janeiro.

D. Lenita, sua esposa, conheceu Chico ainda muito jovem: “nossas famílias eram amigas em um povoado aqui de Delmiro”. Ao lembrar dos primeiros anos com o marido, d. Lenita Martins de Oliveira disse que nunca achou ele muito bonito. “No Rio de Janeiro ele se vestia parecendo um lorde”, comenta e dá uma deliciosa gargalhada para em seguida se emocionar.

No Rio, como pedreiro, trabalhou em várias obras, inclusive na Rádio Nacional, onde via os maiores artistas do Brasil entrando e saindo daquela emissora sem perceberem a sua presença.

Foi ali que decidiu que um dia ainda iria conviver com aquele pessoal. A outra resolução, que já o impulsionava desde que saiu do sertão, era de adquirir todas as terras que tinham sido do seu pai.

Bom profissional, logo passou a mestre de obras. Sua dedicação ao trabalho era tamanha que foi convidado para ser sócio minoritário da firma onde trabalhava, a Gerbara.

De volta ao Sertão

Chico Doutor (ao centro), dono da construtora Ental, tendo a sua direita o maior seresteiro do Brasil, Altemar Dutra, que se tornaria um dos grandes amigos do sertanejo

Quase dez anos depois de ter deixado Alagoas, Chico Doutor voltou a passeio no início dos anos 60. Em Delmiro Gouveia encontrou com Pedro Ferreira, que dividia com o irmão Antônio Ferreira uma das mais importantes construtoras vinculadas às obras da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso.

Soube que havia carência de equipamentos e acertou com Pedro Ferreira que traria esses equipamentos do Rio de Janeiro para alocá-los na obra. Utilizou todos os seus recursos para pagar as primeiras parcelas do financiamento de dez caminhões e do restante do maquinário necessário.

Foi nesse período que voltou a se estabelecer com a família no Sertão, passando a ser proprietário da Ental – Engenharia e Terraplanagem Alagoana, uma das grandes da construção civil na época. Com ela, realizou obras na Hidrelétrica de Paulo Afonso, construiu rodovias e conseguiu bons resultados financeiros, garantindo o conforto para d. Lenita Martins de Oliveira e mais seis filhos.

Edson Martins de Oliveira, filho de Chico, confirma o cuidado que ele tinha com a família: “Tudo que ele não teve com o pai e que perdeu muito cedo, ele deu para a gente”. Fátima Martins Lisboa, a filha mais velha lembra que o seu pai chegou a ter 17 propriedades.

Sua fazenda, a “Flor-da-Serra”, e a “Casa da Piscina”, uma mansão com 10 suítes e duas piscinas, uma delas semiolímpica, foram projetadas para oferecer o melhor para a família e amigos.

Chico Festeiro

Chico Doutor, festeiro inveterado, fazendo pose com um violão rodeado de amigos caboclos sertanejos e uma ilustre companhia bem à vontade, sem camisa: Altemar Dutra, naqueles dias inesquecíveis em Piranhas

O amigo Rosalvo Machado Freitas lembra do Chico Doutor como uma pessoa alegre e amante das serestas. Aprendeu a gostar da boemia quando morava no Rio de Janeiro.

Festeiro e alegre por ter realizado seus sonhos, este sertanejo também era um homem de negócios que soube identificar onde seus investimentos teriam melhores resultados. Sua filha, Maria de Fátima, lembra do pai como “um futurista, um homem à frente de seu tempo. Eu não conheci um homem que tenha sido tão feliz quanto ele. Foi feliz porque tudo que almejou, conseguiu”.

Promovia festas em suas propriedades para os amigos e, algumas vezes para as autoridades que eventualmente visitavam a região, a exemplo dos governadores Divaldo Suruagy e Guilherme Palmeira.

Chico Doutor sabia fazer amigos e cultivar relações sociais, que ajudavam a estabelecer bons negócios. Unia o útil ao agradável, trazendo artistas de renome nacional para valorizar seus eventos.

Assim também realizava o seu sonho de pedreiro no Rio de Janeiro, de conviver com grandes artistas. Por sua casa passaram Ângela Maria, Miltinho, Adriana, Agnaldo Timóteo, o grupo Casa das Máquinas, Luiz Gonzaga, além do jogador Mané Garrincha e do seresteiro Altemar Dutra, que se tornou seu amigo e deu nome à rodovia que interliga Piranhas e Olho d’Água do Casado.

Quando contratava estes artistas, sempre garantia que eles também se apresentassem em praça pública, para todo mundo. Fazia a festa para o povo sem ter pretensões políticas, contrariando uma prática muito comum.

Fátima, sua filha, recorda que ele trouxe “alegria e festa para cá, tudo gratuito, bancado por ele” e que hoje os mais jovens não sabem disso. Lamenta que o município de Delmiro Gouveia ainda não fez o devido reconhecimento a seu pai por estas realizações.

“Quando, em 1973, Roberto Carlos foi fazer um show no Clube dos Engenheiros da Chesf, em Paulo Afonso, o Chico Doutor ficou encarregado de buscá-lo no aeroporto e dar toda assistência ao artista”, lembra o vereador Júnior Lisboa, 55 anos, que à época era uma criança e muito amigo de um dos filhos do empresário.

Altemar Dutra

Altemar Dutra (à esq.) segura um peixe do São Francisco, enquanto Chico Doutor (à dir. de óculos) segura outra espécie: amigos para sempre em quase duas décadas de convivência e aventuras no Sertão de Alagoas (Foto: Arquivo de família)

Foram vários os artistas levados ao sertão por Chico Doutor, mas somente com um deles estabeleceu relação de amizade e foi tratado como se fosse um irmão.

Altemar Dutra esteve na região várias vezes e em todas elas se demorava mais que o acertado nos contratos. Ficava por se sentir acolhido. “O Altemar via a convivência com meu pai como se fosse um repouso, um descanso pra alma. Ele não queria saber de ganhar dinheiro, queria descansar, aqui ele se sentia protegido”, explica a filha de Chico, Fátima Martins.

“Altemar foi o visitante mais presente na chácara de meu pai. Era comum a gente, ainda criança e adolescente, ver a seguinte cena: ele, embaixo de um umbuzeiro, tocando o violão e cantando, acompanhado de uma cachacinha”, lembra Fátima.

Além da amizade com Chico Doutor, o grande seresteiro do Brasil ficou encantado pela cidade de Piranhas e com as pescarias no Rio São Francisco, para onde foi levado e apresentado a Rosalvo Machado Freitas.

O violonista Gilberto Pereira confirma essa relação de carinho que Chico Doutor tinha com Piranhas: “Ele era o que a gente poderia chamar hoje de grande empresário e promotor de eventos, tanto aqui como em Delmiro. Foi ele quem apresentou Piranhas para essas pessoas e artistas como Altemar Dutra”.

Sabendo o quanto Altemar Dutra gostava daquele município, o empresário chegou a construir uma casa na Ilha do Cidadão para recebê-lo.

O vínculo com Piranhas foi tão forte que o artista se transformou numa espécie de divulgador oficial da cidade e do sertão alagoano. Rosalvo Machado Freitas, que conviveu dez anos com Altemar Dutra, lembra que “a música que ele sempre cantava era uma que dizia Eu sei que vou partir, mas voltarei um dia”.

Vinte anos depois de muita convivência, um dia ele partiu e não voltou nunca mais.

“Lembro-me de que ele tinha agendado dois shows: um em Arapiraca e outro em Propriá, em Sergipe — continua Rosalvo Machado Freitas —. Ele ficou hospedado aqui antes de ir para esses dois compromissos e demorou um pouco mais que das outras vezes. E eu disse: Altemar, você tem dois shows para fazer rapaz, por que não se apressa? Era cumpridor dos deveres. Começou a cantar e se empolgou, continuou bebendo e demorou mais e mais… Aí ele começou a cantar a canção: Eu sei que vou partir, mas voltarei uma dia… Terminou de cantar e eu vi lágrimas descendo dos seus olhos. Me deu um abraço forte. Foi a última vez que a gente se falou. Alguns meses depois eu soube que ele tinha falecido em um show em Nova Iorque”.

Com a sua morte em 9 de novembro de 1983, Piranhas o homenageou erguendo uma estátua para ele no Centro Histórico de Piranhas.

O Anjo das Pernas Tortas no ninho do Chico

Garrincha também frequentou a casa do famoso anfitrião sertanejo que aqui aparece acompanhado do filho Marcelo

O jogador Garrincha também esteve em Delmiro Gouveia levado pelo Chico Doutor. No final da carreira, o craque mambembe, que foi o maior ponta-direita que o mundo testemunhara, jogou no alto Sertão de Alagoas.

Criticado por estar fazendo estas apresentações em times de amadores, Garrincha respondeu: “Eu faço isso para me divertir e me manter em forma”, explicando que nesses jogos não podia nem correr que quebrava o pé. “Os campos são cheios de pedras e buracos”.

Edson Martins de Oliveira, filho de Chico Doutor, lembra da passagem de Garrincha pela chácara de seu pai. “Ele era meio caladão. Quando falava dizia que não gostava de concentração e que gostava de beber”.

Edson recorda ainda de uma encomenda que Garrincha confiara a seu pai. “Ele gostava muito de passarinhos e meu pai comprou um curió lá de Atalaia para ele. Foram oito dias com papai e tudo bem tranquilo”, recorda.

O filho de Chico Doutor cita ainda outro episódio ligado àquela presença de Garrincha no Sertão. “Depois de jogar em Delmiro, Garrincha também fez uma apresentação em Paulo Afonso. Deram um tombo nele e se formou uma pequena confusão. Tiveram que explicar ao zagueiro durão que aquilo era só um jogo de exibição”, completa Edson.

***

Quando faleceu aos 72 anos de idade em 2001, vítima de uma pancreatite, Chico Doutor ainda trabalhava na administração de sua empresa. “Meu pai era tão trabalhador que não admitia nem se aposentar. Tanto é que morreu trabalhando, tomando conta de obras”, recorda Fátima, sua filha.

Deixou seis filhos, quatorze netos e viúva dona Lenita Martins de Oliveira, que também era muito popular por sua generosidade, sempre lembrada em Delmiro Gouveia pela distribuição de doces no dia de “Cosme e Damião”, uma tradição carioca iniciada quando ainda moravam no bairro de Bangu no Rio de Janeiro.

Chico Doutor deixou a vida e uma lacuna que nunca mais foi ocupada no Sertão das Alagoas.

*Publicado na Tribuna Independente e na Tribuna Hoje em 31 de dezembro de 2018 (original aqui: https://tribunahoje.com/noticias/cidades/2018/12/31/o-homem-que-transformou-o-sertao-em-chao-de-estrelas/)

 

Rosalvo Machado Freitas junto à estátua em homenagem ao amigo inesquecível de grandes histórias e noitadas de seresta, na linda e bucólica Piranhas

 

Altemar Dutra cercado por fãs em Piranhas nos anos 1970: carinho especial ao povo da terra que o seresteiro amou

 

Dedicatória do cantor ao casal que o acolheu por mais de dez anos nas suas idas a Piranhas

 

Os primos Ednaldo Pereira e o violinista Gilberto Pereira são os autores da seresta que entrou para o calendário de Piranhas

 

Altemar Dutra

 

Fátima, dona Lenita e Edson, parte da família de Chico Doutor reunida: muitas lembranças e saudades

 

14 Comments on Chico Doutor: o homem que transformou o Sertão em chão de estrelas

  1. José Vanderlei // 31 de agosto de 2020 em 19:08 //

    Prezado Ticianele, uma pauta especial do brilhante jornalista Wellington Santos, nos levou para Delmiro Gouveia e Piranhas, para levantar a vida deste desbravador do sertão, como vc. bem disse. Os frutos desta caminhada, virou um Doc. CHICO DOUTOR e um suplemento especial da Tribuna Independente(material e também foi para http://www.tribunahoje.com). O Doc. pode ser conferido neste link: https://youtu.be/Zbc5BGBXPcY – portal tribunahoje.

  2. Cicero Fortes // 31 de agosto de 2020 em 19:15 //

    Uma história dessa deve ser contada para todos o brasileiros que gostam e acreditam no bom do Brasil. Estive em Piranhas e tomei uma no bar que homenageia o grande Altemar e presenciei a amizade desta Cidade Altemar.

  3. José Vanderlei // 31 de agosto de 2020 em 19:34 //

    DOC. COMPLETO DO CHICO DOUTOR – https://youtu.be/5VwXl78NoZw

  4. Marcos ferreira // 31 de agosto de 2020 em 21:34 //

    Tive a honra e o prazer de conviver e partilhar momentos maravilhosos ao lado do grande Chico Doutor, homem simples e de grande inteligência, tomei muito banho de piscina em sua casa e ainda hoje sou amigo de toda família e posteriormente o recebi em Brasília em minha casa e o acompanhei a uma audiência com o presidente Collor! Um grande presente! Ex-deputado Marcos Ferreira!

  5. Vinicius Maia Nobre // 31 de agosto de 2020 em 21:38 //

    Estávamos em 1977; e como Secretário de Viação e Obras de Alagoas fui ao sertão representando o Governador Divaldo Suruagy para as Solenidades de Início do trecho a ser pavimentado da Al-220 entre Piau e Olho d’Água do Casado. O almoço foi na casa do Chico Doutor. Lá se encontravam lideranças locais e os deputados Guilherme Palmeira e José Bandeira de saudosas memórias. Também na casa do Chico estava Ângela Maria, a Sapoti, ajudando a servir os convidados. Observei que Zélia, minha esposa que me acompanhou, não reconheceu aquela famosa artista de maviosa voz, também alcunhada de Sapoti. Dito e feito, perguntou se era parente do Chico e ante a risonha negativa eu cortei a embaraçosa situação dizendo quem era ela! E assim a gentil Sapoti a convidou após o almoço assistir os preparativos para o show! A multidão que lotou uma praça de Olho d’Água do Casado foi uma festa que consagrou Chico Doutor e sua família!

  6. Pena que este homem que tanta alegria trouxe para os Delmirenses não seja lembrado hoje com uma justa e merecida homenagem. Delmiro tem que lembrar sempre desse seu filho que tanto amou nossa cidade !

  7. Não podia deixar de comentar, vivi essa época, uma história para ficar imortalizada para Delmiro, mais infelizmente não temos políticos sérios preocupados com a história e nem tão pouco com a população, mas a história fica na memória daqueles que a vivenciaram. Parabéns a ele 👏👏👏👏!

  8. Linda homenagem!!! Era criança e lembro dos grandes artistas que o Sr. Chico Dr. levou para Delmiro! No mínimo deveria ter um busto dele na cidade! Bons tempos, nada a ver com a Delmiro de hj!!!

  9. André Soares // 4 de setembro de 2020 em 07:52 //

    Ticianele você é um especialista em Alagoas. Parabéns 👏

  10. Hélio Martins // 8 de janeiro de 2021 em 14:51 //

    É verdade eu fiz parte desta história e me sinto muito feliz por isso.

  11. niraldo do nascimento silva // 21 de fevereiro de 2021 em 11:26 //

    pARABÉNS PELO TEXTO

  12. Cáramba,… Gostei deste Chico doutor, sou de s.paulo e amo o nordeste e seu povo maravilhoso, amo a Maceió, primeiro nordeste que visitei e apaixonei,… Por curiosidade fui ler esta história e achei legal. Agora sou fã do Chico Dr. Parabéns a família Dele.

  13. tenho 33 anos , não tive o prazer de conhecer Chico Doutor pessoalmente, porém será lembrado como um homem dedicado ao trabalho e sua família , sou muito fã da sua historia e que fez por Alagoas, quem sabe um dia conhecerei algum parente, ou algo que posso me engrandecer.

  14. Que maravilha de história de vida. Estive em Piranhas em 2018 e tenho as melhores lembranças dessa passagem pelo sertão ao lado do Velho Chico. Não conhecia todas as informações oferecidas aqui sobre Chico Dr. Muito agradecido por compartilhar. Deus ha de me permitir voltar a Piranhas em breve. Abraço ao maravilhoso povo nordestino.

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