Bonifácio Silveira: o Papai Noel de Bebedouro

Por Fernando Mendonça, da Academia Alagoana de Letras
*Publicado com o título “Papai Noel de Bebedouro” na Revista Semanal de 28 de dezembro de 1940.
***
Uma pergunta que nenhum alagoano aqui, no Rio, precisará de fazer agora, no rastro das festas do Natal, é se as festas, estas festas em homenagem ao nascimento de Jesus, teriam obtido, em Maceió, um aspecto brilhante, uma fisionomia alegre, um ritmo desenvolvido e boêmio.
Tudo, lá, na minha terra, poderá ir bem.
Bem poderá ir, mesmo o próprio mal, que é a política. O que todavia não oferece equívoco, o que é certo, irretorquivelmente certo, é que o Natal de 1936 foi menos comemorativo do aparecimento, na Terra, do Geômetra dos Mundos que do desaparecimento de quem enfeitava num recanto da Terra, lá na minha terra, o divino onomástico.
De feito, com a morte do major Bonifácio da Silveira, o Natal, em Maceió, só poderia ser um Natal, faça-se esta imagem, um Natal sem a sua Árvore.
Um Natal triste, desfolhado, sem pássaros e sem canto, sem rumorejo e sem orvalho; um Natal sisudo, silencioso, seco, de recordação cristã. Um Natal, apenas, evocativo do Vulto Máximo da Cristandade.
O major Bonifácio da Silveira era quem, com as frondes, folhas, frutos e raízes da sua alma encantadora e desperdiçadora de encantos, dava esplendor, luz, sonho, realidade à Festa Universal.
Para enfeitá-la, ele provocava, com o insulto envolvente de generosidade, o concurso de todas as almas da urbs; dava-lhe o movimento unânime dos seus esforços pessoais; adicionava-lhe o sacrifício satisfeito de todas as reservas da sua vida. Andava, corria, desmanchava-se, esgotava as últimas providências.
Curvava-se, toda vez, de coração agradecido, diante do tributo à sua catequese. Tinha, sempre, uma palavra veludosa para a excepção, longínqua, de uma recusa áspera.
Não havia cálculo que ele não fizesse para o êxito do esplendor da festa do menino Deus, festa que era, todo ano, a Deus, a Menina dos seus olhos.
Recorria, diga-se isto mesmo, ao fecundo milagre de se multiplicar.
Porque, efetivamente, ele sozinho parecia, nessa época, uma multidão, tal o acúmulo da boa vontade, do desejo violento de ser útil; da suprema disposição de continuar a ser bom; da coragem sorridente de contribuir e convencer; da fleugma infiltrante de atravessar e destruir todos os óbices.
Sozinho, ele ia de lar em lar, de estabelecimento em estabelecimento, de repartição em repartição, de município em município, promover, discutir, realizar a festa. E o que, sozinho, ele arrecadava para a construção da festa (e construção é bem o termo, até porque ele erguia, num pátio, uma pequena cidade), o que ele arrecadava mais parecia a determinação enérgica de um esforço coletivo, do que a providência isolada e tranquila de uma criatura.
Ele conseguia tudo.
Tudo para dar ao povo aquilo que ninguém lhe dá, se não através de plataformas, relatórios, livros, discursos e frases: — alegria.
Alegria verdadeira.
Essa alegria pura, sem retoque, sem dissimulação; essa alegria estranha e transbordante; essa alegria mágica, ingênua e inquieta; essa alegria que desabrocha e se alastra nos lábios, que pula e se equilibra nos gestos, que brinca e roda nas palavras; que se inflama e fulgura nos olhos; que voa e se desenrola nos cabelos; que palpita, gorjeia, arrulha e estronda nos corações; que, em suma, tem o poder infinito e a consoladora ternura de transformar todos os seres em crianças felizes.
* * *
Bebedouro, arrabalde da capital alagoana, era, pela comemoração do natalício supremo, a Cidade Brinquedo.
Uma espécie de Lanterna Mágica da Infância.
O que era belo e estonteante; tudo quanto opulentava o coração e distraía o espírito; o que parecia surgido de um sonho se fixado na realidade; tudo quanto era bom, ao alcance imediato do desejo; o que significava beleza simples, ventura espontânea; tudo quanto existia na vida de sadio e verdadeiro, de tocante e surpreendente, com o perfume e o sabor do contato humano, tudo se se desenrolava diante dos nossos olhos.
Com principalidade, o perfil da tradição.
A cidade, toda, corria fraternalmente para aquele centro, onde o predomínio da sua figura transbordava por toda parte, fixando-se no alto relevo da admiração popular.
Essa admiração, às vezes, chegava ao topo, porque, muitas vezes, centenas de criaturas atravessavam as primorosas e fervilhantes ruas de brinquedos que ele fizera; as avenidas de jogos desportivos que ele rasgara; desciam dos coretos de música e dos pavilhões de danças que ele erguera; desatracavam-se dos navios de chegança aportalecidos no pátio; distanciavam-se dos Arcos Luminosos e dos mastros soberbos onde trinta mil bandeiras, flutuavam; fugiam, por instantes, dos clássicos presepes, batuques, quilombos e reisados, e do Pequeno Teatro das Pastorinhas; paralisavam-se ao meio da praça coroada por milhares de lâmpadas policromas, com o objetivo de ver e aclamar, num possível encontro, o Proclamador e Consolidador da faustosa República do Contentamento.
Daí a pouco, uma excepcional sensação vinculava todos os espíritos.
Palmas, cantos, requebros mordentes. Um movimento acima e além de todas as expectativas. Dir-se-ia, ao mesmo tempo, um embarque e desembarque de tropas, à última hora.
Era aproximação do Homem-Menino.
Era o major Bonifácio da Silveira que, à frente do Estado-Maior da Alegria, composto de batalhadores juvenis, de exercitadas pequenas ba-ta-clan, invadia vitoriosamente o pátio imenso, enchendo de graça atrevida, da petulante de beleza de todas elas, em marchas sacudidas e afoitas.
E as pequenas cantavam, numa boemia próspera.
Bebedouro é sempre à frente
Tanto hoje como amanhã,
Bonifácio é nossa gente…
nossa gente é Ba-ta-clan.
As palmas aumentavam, os cantos eram mais intensos, os requebros eram cada vez mais perigosos.
Melhor, melhor
Não pode haver
Do que o Major,
Que é do prazer!
Tinha-se, pela colossalidade da confiança e do alvoroço, a impressão de uma espécie de aves que, partidas da prisão monástica de um viveiro, alcançassem, em voo largo, e em gorjeios livres, o panorama da amplidão, recebendo para logo, a homenagem restabelecedora da liberdade: — o beijo clorofilado e puro das árvores, o oferecimento doce dos frutos, o balanço espontâneo dos ramos, o reflexo do espelho límpido das águas, a música imediata do vento, o aplauso divino da trepidação das estrelas, a saudação fecunda de um raio de sol, a benção balsâmica de um projeção de luar, a ternura e o silêncio dos ninhos altos, tudo o que a Natureza possui, expõe e expande.
* * *
Lenço enorme enlaçado ao pescoço a se derramar pelo ombro, à maneira de flâmula; gesticulação vasta e contente, habituada ao delírio das multidões; sorriso florido aos lábios, flor sorridente ao peito, o Major alinhavava a festa, tão seguido e tão aclamado que parecia até que o natalício, que se festejava, era o dele.
______________
Editoria do História de Alagoas
Segundo o ABC das Alagoas, Fernando Mendes de Oliveira Mendonça, o autor do texto, era pilarense, onde nasceu em 2 de junho de 1895. Faleceu no Rio de Janeiro em 23 de dezembro de 1964.
Segue as informações do ABC das Alagoas:
“Poeta, jornalista, policial civil. Filho de Francisco Mendes da Fonseca. Estudou no Colégio 15 de março, em Maceió. Matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, mas, no primeiro ano, abandonou o curso.
Em 1906, na cidade de Penedo, fundou a revista A Escova. Neste mesmo ano, e ainda nessa cidade, com Carvalho Filho e Gonçalves Fialho fundou O Fonógrafo, do qual foi redator.
Voltando a Maceió, foi jornalista do Correio da Tarde e colaborou na revista Argos. Colaborou, assiduamente, ainda, em O Alagoas.
Com Gilberto de Andrade, Aurino Maciel, Armando Wucherer e Pio Jardim, redatoriou o Diário do Povo. Em 1925, juntamente com Nwerbert Costa, fundou o Jornal de Maceió, semanário do qual foi redator político. No ano seguinte, com Oseas Rosas, fundou O Grito do Povo. Colaborou, ainda, no Jornal de Allagoas, Jornal do Comércio e no Correio da Tarde.
Em março de 1927, residia em Recife, onde era secretário do periódico O Norte do Brasil.
Foi para o Rio de Janeiro, após revolução de 1930. Ingressou na Polícia Civil do Distrito Federal.
Membro fundador da AAL, sendo o primeiro ocupante da cadeira 35. Pseudônimo: João Aroldo.
Obras:
Sombras, Recife: Casa Record Editora, 1913 (poesia);
Canção das Azas, Maceió: M. J. Ramalho Editor, 1914;
Alma Nova, Recife: Tipografia J. Agostinho Bezerra, 1915 (crônicas) MMS ??;
Tragédias Interiores, Maceió: Tipografia da Livraria Fonseca, 1920;
13 Decassyllabos, Maceió: sem tipografia, 1922;
A Delícia de Sofrer, Maceió: Tipografia da Livraria Machado, 1923 (pensamentos);
O Triste Poema das Criadinhas, ?? 3ª. ed., Maceió: Livraria Fonseca, 1924, Desenho de J. Azevedo Filho;
A Mulher; Decepção e Milagre da Vida, Maceió: Imprensa Oficial, 1933 (poesia);
Antonia, Maceió: Tipografia da Livraria Fonseca, 1927 (poema);
Segundo Moacir Medeiros de Sant´Ana, o autor, em suas obras publicadas, anunciou a impressão, que não chegou a fazer, dos seguintes trabalhos:
Os Livros de Alt`-e-Malo (crônicas); Namorar; Lama da Elite (prosa); Flertar (conferência); Rosa de Cabaré (romance); Lábios Cheios de Aroma e de Veneno; A Abandonada (romance); Os Outros e Eu (inquérito literário); Tédio de um Boêmio (versos).
Fantástico! Parabéns, prezado Ticianeli.
Muito bom vc histórias. Parabens