Bibliografia carnavalesca
Raul Lima
*Especial para o Diário de Notícias de 23 de fevereiro de 1941.
Um aluno que escolheu o carnaval para servir de tema à monografia que devia escrever no curso, foi criticado pelo seu professor de sociologia, numa das nossas escolas superiores, por ter essa preferência parecido leviana e de muito mau gosto. No entanto, o assunto, não apenas nas letras do nosso país, chamado “País do Carnaval“, mas nas mais importantes literaturas do mundo, conta uma bibliografia suficiente para dar ideia da relevância que lhe é atribuída.
Em 1611, foi editado em Paris um “Tratado contra as máscaras“, de Savaron. Faltou razoavelmente ao tratadista a previsão de que, três séculos mais tarde, uma boa parte da humanidade teria no uso de máscaras o único melo do garantir a própria sobrevivência em certas ocasiões…
Na bibliografia do verbete Carnaval de uma enciclopédia francesa, pode-se ler a referência a um livro sobre o reinado de Momo, da autoria de B. Gastineau (Paris, 1855), e, mesmo, a um Der Karneval, de Fahne (Colônia, 1853), com que o cientificismo germânico contribuiu, de certo, para elevar o conhecimento da matéria com aprofundadas demonstrações filosóficas.
Na nossa Biblioteca Nacional, os amantes dos velhos livros poderão deliciar-se com um venerando opúsculo do D. F. Le Tellier, de Bellesons, Doutor em Teologia, intitulado “Sermons pour les prières de quaranteheures contre les debauches du Carnaval” (Chez Leonard Plaignard, Lyon). É dedicado “trés-haute et trés-puissante Dame Madame Catherine de la Chese-Daix, Abesse du Royal Monastère do Marcigni” e tresanda a uma fresca e pura inocência.
Seria impossível mencionar quanto se tem escrito sobre o carnaval; e nos limites, abençoadamente restritos, deste artigo, não se pretendo sequer tentar uma indicação considerável de páginas a que o carnaval deu motivo.
Nem mesmo se deseja recordar o que Goethe escreveu a respeito do carnaval de Roma, nem como Byron descreveu o clássico carnaval de Veneza.
Há, entretanto, um bocado de boas letras na nossa língua, particularmente dignas de lembrança nesta época tão oportuna também para os excelentes filhoses do nordeste.
Sem as máscaras, contra as quais Savaron escreveu, em 1611, o seu tratado, não teríamos aquele trecho que é dos melhores de Eça de Queiroz, em geral, e d'”Os Malas“, em particular: o fracasso de João da Ega, fantasiado de Mefistófeles e enxotado do salão de baile, sob as vistas de um urso e de uma tirolesa, pelo marido da amante, o Cohen, vestido de beduíno. Ega, mais tarde, sem os bigodes e as sobrancelhas ferozes do “maquillage“, com um largo paletó de Carlos da Maia dobrado na manga em vez do manto escarlate, um boné escocês no lugar da gorra emplumada e, por fim, vencido pelos bons vinhos do Craft, surge-nos inexcedivelmente divertido.
O nosso velho Machado do Assis, de caráter tão austero, nunca esqueceu, durante sua longa atividade de cronista, um registro amável ou, pelo menos, indulgente, do tríduo carnavalesco. No “Diário do Rio de Janeiro“, em 1862, convidava o leitor, ao fim de uma crônica, a ver passar os que se divertiam e, depois, “entreter o resto da noite com a leitura do livro que imortalizou Erasmo”. Em 1877, supunha o carnaval moribundo, condenado a uma morte próxima, mas não se regozijava com isso. Em 1893, tinha a galanteria de sonhar com uma chuva boa sobre a cidade, para que a folia tomasse conta do Rio, sob temperatura mais suportável.
Dai por diante, pode-se constatar mesmo uma evolução constante de Machado, no sentido de uma atitude simpática em face do carnaval. Por ocasião do de 1894, confessa ter ficado mortalmente triste quando leu que naquele ano não podia haver carnaval na rua. “É crença minha — afirmava, então — que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só “le propre de l’homme“… é ainda uma necessidade dele.
Chegado o carnaval de 1895, ocupa-se do mesmo em duas crônicas seguidas, sendo que na de 3 de março, depois de dizer que “a alegria é a alma da vida” e de traçar a filosofia do carnaval, faz um estudo sobre a etimologia dessa palavra.
No ano seguinte, o cronista d’ “A Semana” aparece no primeiro dia de carnaval começando por dizer que bem podia dispensar-se de comparecer a sua coluna, pois era evidente que naquelas horas, só se lia o itinerário das sociedades carnavalescas. Isso — é bom acrescentar — sem nenhum travo, continuando a falar sobre o grande assunto do momento. E no domingo seguinte, é assim que dá suas Impressões: “Ora ainda bem, minha boa e leal cidade, é assim que te quero ver, animada, jovial e ordeira, pronta para rir, quando for necessário, e não menos para venerar, quando preciso”.
Foi Machado quem fez a observação, ainda hoje atual, de que, apenas aparecem as folhinhas, muita gente corre a ver em que época é o carnaval.
Não fosse o carnaval e não teríamos o melhor conto, talvez, de João do Rio — “O Bebê de Tarlatana Rosa“. É de fazer estremecer, de causar arrepio de horror, o fim daquela narrativa tão bem conduzida, quando o galante Heitor beija os braços, o colo, o pescoço da companheira encantadora encontrada no turbilhão de um baile popular e lhe pede para tirar o nariz de papelão, o suposto disfarce. “De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando enquanto com a esquerda a enlaçava mais, de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente — uma caveira, com carne…”.
Na poesia, tivemos de Manuel Bandeira um dos seus grandes poemas, cujo conteúdo o sr. Orris Soares ainda há pouco resumiu nestas palavras: “Vibrações confusas, vertigens langorosas, ritmos vivos, ritmos surdos, estribilhos populares, troças, mordimentos humorísticos, caprichos irônicos, barulhos insólitos, sombras românticas, sombras ridículas, sombras graves, todo esse mundo que não é anedota nem alegoria, mas verdade cosmorâmica dos dias de máscaras, estruge, ri, chora nas páginas de Carnaval“.
Rigorosamente, nenhum romance brasileiro, cuja história tivesse uma duração mais menos longa, poderia deixar de ter episódios ocorridos durante o carnaval.
Érico Verissimo deu-nos, em “Um lugar ao sol“, um carnaval em Porto Alegre, com a trágica morte do jovem revolucionário Gervásio, a noitada no cassino onde Vasco dança com a estranha e generosa Anneliese, um pastor protestante à procura da pequena Lú, para retirá-la da folia, o conde Oskar olhando os pares e filosofando.
José Lins do Rego realizou, no “Moleque Ricardo“, uma excelente pintura do frevo pernambucano e, mais do que isso, a própria história do carnaval da gente dos mocambos, dos pobres homens que adquirem uma fugaz e irrecusável importância na chefia de um clube carnavalesco.
Ribeiro Couto, que já escrevera um interessantíssimo conto de carnaval, voltou ultimamente ao assunto no “Mistério de sábado” (ver “Largo da Matriz e outros contos”).
As citações não teriam fim. A bibliografia carnavalesca é mesmo vasta e, ao que parece a este leitor vulgar, de méritos nada desprezíveis.
Hoje não se escreve mais tratados, como o de Fahne, mas os cronistas, os poetas e os romancistas não consideram o carnaval um mau assunto, apesar da opinião do citado professor de sociologia.
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