As Taieiras de Théo Brandão
Théo Brandão
Publicado no Suplemento Literário do Diário de Notícias de 20 de dezembro de 1953.
MACEIO, dezembro de 1953. — Talvez seja São Miguel dos Campos, em Alagoas, o último lugar onde ainda se realize um antigo folguedo dos mulatos — a dança das Taieiras. Sendo, evidentemente, como o sugeriu Artur Ramos em Folclore Negro do Brasil, uma fragmentação do Congo e Cucumbis, a mais antiga referência a tal dança ou folguedo é a de Teófilo Braga (O Povo Português, 1º vol.) quando transcreve da “Relação das Faustíssimas Festas” de Francisco Calmon a notícia de que, por ocasião das festividades do casamento da rainha D. Maria 1ª com seu tio, o infante D. Pedro, a 6 de junho de 1760, apareceram várias danças populares na vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro da Comarca da Bahia, e entre as quais – Mouriscas, Congos e índios, etc., executadas pelas corporações de ofícios (sapateiros, alfaiates, carpinteiros, etc.), o Reinado dos Congos, no dia 16, que “se compunha de mais de 80 máscaras, com farsas ao seu modo de trajar, riquíssimas pelo muito ouro e diamantes de que se ornavam. Chegando aos paços do Conselho, onde tomaram assento o Rei e a Rainha, lhes fizeram sala “os sobas e mais máscaras de sua guarda, saindo depois a dançar as TALHEIRAS e QUICUMBIS ao som dos instrumentos próprios do seu uso e rito”.
No ano seguinte encontraram-se também no Rio de Janeiro, segundo o mesmo Teófilo Braga, de acordo com o que informava a “Espanáfora Festiva” ou “Relação numérica das festas que na Cidade do Rio de Janeiro capital do Brasil se celebraram no nascimento do Príncipe da Beira”:
“Dia 19, saiu pela cidade o estado dos pardos seguido de danças várias na seguinte ordem… a dos Calhastros e dos Ambacas, a dos Moleques, cada uma com doze figuras; a de TALHEIRAS, a de negrinhas pequenas, a de moleques pequeninos de Angola e do Catupê, e, por fim a do Baile do Congo”.
Depois destas notícias sobre a existência das Taieiras já no século XVIII, voltamos a reencontrá-las no século XIX, através da notícia e descrição de Sílvio Romero, fazendo parte da Festa de S. Benedito no Dia de Reis no Lagarto (Sergipe), onde se podiam apreciar, segundo escreve o autor da História da Literatura Brasileira, “dois folguedos especiais, o dos Congos que é próprio dos negros, e das Taieiras, feitas pelas mulatas”. Estas, acrescenta o escritor sergipano, vestidas de branco e enfeitadas de fitas, vão na procissão dançando e cantando com expressão especial e cor toda original, versos onde se conhece a ação burlesca da raça negra.
Meu S. Benedito,
Não tem mais crôa.
Tem uma toalha
Vinda de Lisboa…
Indererê, rê, rê,
Ai Jesus de Nazaré.
Notícia esta que pode ser completada pela descrição que nos dá Melo Morais Filho da procissão de S. Benedito, no Lagarto, segundo “notas orais precisas” fornecidas pelo próprio Sílvio Romero como confessa na “nota indispensável” à segunda edição de sua obra Cantos Populares do Brasil: “Negras trajadas de branco, um rancho de mulatas Taieiras e muita gente faziam alvissareiro cortejo do mastro etc… ao canto dos Congos:
Meu S. Benedito
É santo de preto,
Ele bebe garapa,
Ele ronca no peito
e ao estribilho tangente plangente das Taieiras:
Idererê, rê, rê
Ai Jesus de Nazaré.
“De N. S. do Rosário o formoso séquito eram as Taieiras. Este grupo encantado e original compunha-se de faceiras e lindas mulatas vestidas de saias brancas entremeadas de rendas de camisas finíssimas e de elevado preço, deixando transparecer os seios morenos buliçosos e lascivos. Um torso de caça alvejava-lhes a fronte trigueira, enfeitado de argolões de ouro e lacinhos de fitas; ao cós viam-se-lhes trêmulos colares de ouro e grossos cordões do mesmo metal volteavam-lhes com elegância e mimo os dois antebraços, desde o punho até o terço superior. E uma das Taieiras, girando no ar a sua varinha enfeitada, acompanhando o andor cantava:
Virgem do Rosário
Senhora do mundo
Dê-me um coco d’água
Senão vou ao fundo.
E todos em coro, nas danças saracoteadas, nos requebros mais graciosos, respondiam, cantando também
Idererê, rê, rê,
Ai, Jesus de Nazaré
Meu S Benedito
Não tem mais coroa
Tem uma toalha
Vinda de Lisboa:
Coro:
Idererê, rê, rê,
Ai, Jesus de Nazaré
Virgem do Rosário,
Senhora do Norte
Dê-me um coco d’água
Senão vou ao pote.
Coro:
Idererê, rê, rê,
Ai, Jesus de Nazaré.
Ao anoitecer a procissão se recolhia, havia “Te-Deum”, a esplanada iluminava-se e os ranchos de Congos e Taieiras dispensavam-se indo dançar e cantar em algumas casas”.
Ainda em outra oportunidade referiu-se Mello Morais Filho às Taieiras infelizmente em volume que não possuímos (Quadros e Crônicas) para recensear a dança, juntamente com os Congos, entre os Reisados, com o que não concordava Mário de Andrade, segundo nos informa a respeito em “Danças Dramáticas do Brasil” (Boletim Latino-Americana de Música, pág. 79).
Não transcreve o autor de Macunaíma o trecho de Melo Morais Filho, mas talvez prende-se a afirmativa ao registrado por este último em Festas e Tradições, embora sem nomear as Taieiras:
“Dessa noite em diante, os cantadores de Reis percorrem a cidade cantando versos de memória e de longa data… Estes grupos compõem-se de moças e rapazes de distinção; de negros e pardos que se extremam às vezes e se confundem comumente. Os trajes são simples e iguais, calça, paletó e colete branco, chapéu de palha ornado de fitas estreitas e compridas, muitas flores em torno; as moças de vestidos bem feitos e alvos, de chapéus de pastoras; precedendo-os na excursão habilíssimos tocadores de serenatas. Levando-lhes talvez vantagem pelas ondulações do andar, pelo arredondado das formas lascivas, pelos dentes de pérolas em bocas de ônix, ou orvalhos matinais nas rosas do amanhecer, as crioulas e mulatas acompanham os seus pares tremendo-lhes o seio por baixo de um nevoeiro de rendas finíssimas, estralando a chinelinha preta e lustrosa, atirando com negligência o pano da costa matizado caríssimo”.
Não serão estas mulatas, que tomam parte com os outros ranchos nas cantatas de Reis, as Taieiras que Sílvio Romero viu em Lagarto? E não serão elas, destarte, apesar da opinião contrária de Mário de Andrade, verdadeiro Reisado?
Julgava-se até aqui que afora Sergipe, onde segundo me informou pessoalmente José Calazans Brandão da Silva, ainda esporadicamente eram dançadas até cinco anos atrás [1948], não existissem ou tivessem existido as Taieiras em outros Estados.
Contudo é necessário esclarecer que em Alagoas existiram e ainda existem as Taieiras.
Nicodemos Jobim, na sua preciosa História de Anadia (pág. 114), faz referência as festas que se celebraram em tal cidade em 1824 e 1832 por ocasião da fundação da Irmandade do Rosário dos Pretos e inauguração da sua igreja “com festas e dança das Taieiras, eleição de seus Rei e Rainha como era costume”.
O mesmo historiador registra a existência da dança das Taieiras dentre outras do Natal, na vila de Sertãozinho de Anadia (idem pág. 81).
Em Viçosa, através de informações de pessoas amigas, assevera Aloísio Vilela (Folklore Viçosense, in Álbum do Centenário) que elas “tiveram seu tempo até 1840, desde quando não mais reviveram”.
Mas foi em São Miguel dos Campos que as Taieiras, contemporâneas das encontradas em Anadia e Viçosa, conseguiram resistir, embora com hiatos, ao passar dos anos e sobreviver até nós.
Ao Padre Júlio de Albuquerque, correspondente da Comissão Alagoana de Folclore naquele município e vigário colado da freguesia, cabe o mérito de ter revelado em comunicação que fizemos publicar no Jornal de Alagoas a existência de um folguedo por todos os focloristas julgado desaparecido do Brasil, e do qual, ao lado de sucinta descrição, assinalou a sua tradição no local: “É um dos divertimentos populares mais antigos — o das Taieiras. Meu pai, que aqui residiu, quando menino, me dizia depois de velho assistiu mais de uma vez nas festas natalinas ao brinquedo das Taieiras”.
Tal folguedo, que haveríamos de gravar no ano passado, através de suas ensaiadoras, vem sendo realizado desde há oito anos por duas mestiças, d. Albertina Mendonça e sua filha, constituindo, segundo elas próprias, uma tradição em sua família. Seu pai — Jacinto Andrade Mendonça, falecido há 35 anos [1918], ensaiou durante muito tempo a “função’ que havia aprendido de seus avós José Piaul Lopes de Miranda e Luíza da Costa, esta última negra escrava da família dos Braga de Faria, do mesmo município.
Segundo ainda nos informou d. Albertina, o folguedo é uma dança africana do tempo do cativeiro e o aprendeu, não do pai, falecido quando era menina de 4 anos, mas da preta Madalena, negra da Costa, Rainha das Taieiras, ainda no tempo da escravatura. Foi esta quem, ao lado da dança, lhe ensinou a música de algumas cantigas, havendo para outras cuja letra possuía em um caderno, atualmente desaparecido e que herdado do pai, adaptado novas músicas e até modificando a letra. Eis porque distingue ela muito bem em seu folguedo, que igualmente denomina de Africanas, duas espécies de cantigas: a das Taieiras que são as tradicionais, e a do Xangô, as adaptadas recentemente por ela. Assinala-se, todavia, não serem estas últimas autênticos cânticos ou toadas de xangô do Estado, mas adaptações de músicas sul […] de macumbas e candomblé que as rádios e os discos divulgam pelo Brasil.
Apresentam-se as Taieiras de S. Miguel dos Campos como os outros folguedos e danças Natalinas, de 24 de dezembro a 6 de janeiro. Não obstante, afora tal período, exibem-se também em duas outras datas: 18 de dezembro, festa de N. Senhora do Ó, orago da cidade, e 20 de Janeiro, festa do Mártir S. Sebastião, outra grande festividade religiosa local.
Os ensaios iniciados dois ou três meses antes do Natal, em casa da ensaiadora, à rua da Olaria, congregam meninas e meninotas, morenas e pardas (antigamente pretas) de condição modesta (filhas de domésticas, lavradeiras, trabalhadoras rurais) de 3 a 15 anos de idade, nos sábados, quartas e domingos.
Nos dias de exibição pública, mudam-se para um palanque armado em frente à casa da ensaiadora; tablado de madeira com um metro e meio de altura, coberto de samambaia ou palhas de Ouricuri, enfeitado de bandeirolas de papel encarnado e azul (como nos Pastores e Baianas: um lado para uma cor e outro lado para outra), gradil de ripas, bancos para orquestra, escadinha de madeira para subir ao palanque, iluminação elétrica.
O folguedo, que é gratuito, assiste-se de pé em torno ao palanque. Há uma pequena “festa” ao seu derredor em que velhas e meninos vendem doces regionais, roletes, amendoim torrado, sorvete raspados, “grogues”, etc. Não há jogo, entretanto, por “causa de briga”, informa d. Albertina.
A assistência é a comum de Reisados, Guerreiros e Baianas de outras cidades do Estado. Vez por outro aparecem, contudo, pessoas de mais prol da cidade — o padre da freguesia, velhos conhecidos, fregueses e amigos de d. Albertina.
São os seguintes os personagens e trajes dos figurantes das Taieiras de S. Miguel dos Campos:
REI — semelhante ao Rei dos Negros dos quilombos: calção, capa, e blusa azuis, em ciré ou cetim laqué, com galões e franjas douradas; peitoral dourado, enfeitado de espelhos; meia branca comprida; espada de aço, coroa de jasmim de lata, espelhos, pintura e areia brilhante.
RAINHA — vestido e capa amarelos e compridos, decorados com areia brilhante, a capa arrastando pelo chão ou suspensa do antebraço; peitoral de espelhos em lata; coroa do mesmo material.
MATEU — na indumentária mais pobre dos mateus de Reisadas e Bumba-meu-boi; calça comprida e paletó de chitão ou mescla azul, cafuringa (chapéu afunilado) enfeitado de espelhos; cara lambuzada a carvão ou tisna de panela.
CATARINA (desempenhada por um homem travestido de mulher) — na caracterização também comum a Reisados e Quilombos: pano branco ou de cor à cabeça, blusa da Costa (blusa branca, cabeção rendado, sem mangas), saia de chitão, colares e pulseiras de alfôjar ou contas de “Maria Pia”.
CRIOULA — boneca de metro e meio de comprimento, feita de cortiça, pintada de preto, trajada ricamente como “baiana”: torço, voltas, colares, cabeção rendado, saia rica, etc. É escultura muito antiga, sendo considerada a “dona” do brinquedo. Conduzida por um menino que é neto da ensaiadora, não possui nome próprio como no Maracatu. É denominada simplesmente “a crioula”.
FIGURAS ou AFRICANAS que se dispõe em dois cordões — azul e encarnado como, nos Pastoris e Baianas. Usam saia rodada em ciré azul ou encarnado, xale da Costa atravessado nos ombros e cruzado à cintura (atualmente de imitação com ciré de cor, a que se pregam franja de cores variadas em vista de não mais se encontrarem no comércio os antigos e legítimos, ou mesmo os nacionais), blusa branca, rendada, pregueada de fitas, troço azul ou encarnado, anáguas engomados que armam as saias. Estas, todavia, não levam rodas de arame. Enfeites, colares, pulseiras de aljôfar ou “Maria pia”.
Ao dançar no palanque, dispõem-se as Taieiras em dois cordões entre os quais, à frente, se colocam o Rei, Rainha e a Crioula, e atrás, Mateu e Catirina.
As despesas com a preparação vestuário das Taieiras (mais ou menos Cr$ 2.000,00) são financiadas pelos donativos do vigário, de pessoas amigas, do comércio local. As “figuras” lançam “sortes”, mas o dinheiro que assim recolhem é sua paga. A ensaiadora, d. Albertina, ao lado do prazer de levar um folguedo tradicional de seus antepassados, faz seus “bicos” no comércio de doces, “grogues” e refeições regionais que mantém em sua casa em frente ao palanque. Nunca excursiona fora da sede municipal.
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Nota da Editoria
O grupo de Taieiras de São Miguel dos Campos permanece em atividade (2021) sob a coordenação da Mestra Ana Paula Rocha Lins, que herdou a função de, Albertina Andrade de Mendonça, a Mestra Nair da Bertina.
Parabéns professor Ticianeli !!! Por descrever tão bem a história das danças folclóricas criadas p nossos escravos. Meu nome é Maria das Graças da Silva. Tenho 68 anos, faço parte do Grupo Coletivo Cultural Alagoano, coordenado p professor Elvis, funciona no Cenart. Danço Taieiras, sou do cordão azul. Sempre nos apresentamos nas festas de final de ano q prefeitura promove e em alguns eventos q somos convidados. Dançamos também: Pastoril, Baianas, Cocô de Roda, e outras danças populares. Gosto das suas publicações relembrando a história de nosso Estado e municípios. Um abraço.
Maravilha, Ticianeli! Saudade de Dr. Theo Brandão, um dos mais respeitáveis seres humanos nascidos em Alagoas. Como ele divulgou a grandeza do poeta de Viçosa – Manoel Nenen: “As águas do rio da vida, deságuam no mar da morte” !!!!!
Utilizarei esta matéria num debate online, de que participarei em junho, num Congresso da FOLKCOM/ INTERCOM, sobre o livro: “A Invenção do Nordeste”. Obrigadíssima pela matéria de hoje.
Ticianeli , matéria luminosa para os estudiosos do folclore.
Parabéns brilhante professor.
Surpreendente sua cultura alagoana! Ticianeli nos revela a pluralidade histórica de nossa Alagoas.
Parabéns pela revelação das “Taieiras de Theo Brandão”.
Fiquei curioso com a relação com os Cocumbis, que existiam nos carnavais do Rio de Janeiro.
Gostaria de ver fotos dos Cucumbis de Alagoas.
Abraço, Nireu Cavalcanti.
Essa matéria fez-me lembrar de minha avó, dona Ester , que quando menina dançava nas Taieras de São MIguel dos Campos lá pelos idos de 1930. Eu, miguelense migrado desde os dois anos de idade nunca tive a oportunidade de ver uma dança de Taieiras que achei já não existir mais. Que bom saber que o folguedo ainda sobrevive na minha querida São Miguel dos Campos e quero parabenizar a Mestra Ana Paula Rocha Lins pela resistência da herança de dona Albertina e de dona Nair.