Arthur Ramos em 1937: “O negro ficou esquecido”
Entrevistado por José Condé para a revista O Cruzeiro de 30 de outubro de 1937, o médico alagoano Arthur Ramos fala dos seus estudos sobre a cultura negra no Brasil. Naquela época, Ramos já era reconhecido como uma referência no assunto, principalmente após lançar, os livros O Negro Brasileiro (1934), O folclore negro do Brasil (1935) e As culturas Negras no Novo Mundo (1937).
Como o repórter define a entrevista como uma palestra com o escritor, é o próprio entrevistado quem começa a falar:
“Estudou-se, no Brasil, para o papel do indígena na nossa formação histórica. Criou-se uma vasta literatura. Para o ameríndio, tudo: poemas, nomes de cidades, de ruas, de monumentos. O negro ficou esquecido. No entanto não há mais dúvida hoje em dia, de que a sua influência na formação social do Brasil foi bem superior à daquele. O indígena inadaptável ao trabalho da lavoura, recuou para o interior do país, enquanto nas fazendas, nas plantações da cana de açúcar, nas minas, enfim em todo o litoral foi o negro um elemento de grande atividade. O maior fator de solidificação da nossa sociedade colonial.”
Continua Arthur Ramos:
“Como é possível explicar semelhante silêncio? Diversos fatores influíram para que se consumasse essa injustiça: o preconceito de cor, a “inferioridade da raça negra”, por exemplo.”
O repórter pergunta quem é o precursor dos estudos sobre o negro no Brasil.
“Raymundo Nina Rodrigues, natural do Maranhão, e catedrático de Medicina Legal na Bahia, foi o precursor desses estudos. Criou uma escola notável, cujos métodos de pesquisa foram retomados agora. Desde 1922, reiniciei os trabalhos interrompidos pela escola do mestre brasileiro.”
— Qual o sentido que caracteriza os estudos afro-brasileiros? —, pergunta o jornalista.
“O sentido puramente científico da Escola Nina Rodrigues. Julgo que o interesse normativo, político ou social deve vir depois, quando houver leaders negros, que se utilizem do labor científico, objetivo, previamente realizado. Em nossos trabalhos temos visado demonstrar a importância das sobrevivências das culturas africanas na civilização brasileira, abordando o problema sem nenhum preconceito de ‘linha de cor‘ ou de doutrinas de ‘inferiorização‘ antropológica do negro.”
E prossegue.
“Tenho estudado o assunto longamente em meus livros. No O Negro Brasileiro estudei as sobrevivências religiosas, de origens sudanesas (yorubanas, malês, etc) e Bantus (religiões e cultos angola-conguenses). No O Folklore Negro do Brasil registrei as sobrevivências folclóricas: festas populares, cantos e contos, música e danças, etc, identificando as procedências respectivas. No meu último livro As culturas Negras no Novo Mundo lancei uma vista de conjunto sobre as sobrevivências culturais africanas no Novo Mundo para estabelecer cotejos com sobrevivências africanas no Brasil, corrigindo assim as deficiências do método histórico. Mostro, por fim, as resultantes da aculturação, isto é, as consequências que, para nossa civilização, advieram dos contatos de culturas europeia, africana e ameríndia. Coloco assim o problema em termos de cultura e não de raça, seguindo os mais legítimos métodos contemporâneos de psicologia social e da antropologia cultural.”
O repórter quis saber de Arthur Ramos se ainda existia no Brasil alguma religião africana em estado puro.
“Sim, na Bahia, o culto yorubá ainda se encontra em relativa pureza em alguns candomblés que guardaram as tradições africanas. Quanto às demais, a obra de aculturação (que no plano religioso estudei com o nome de sincretismo) prossegue a sua obra referida, provocando a fusão de cultos e religiões de origem africana, ameríndia e europeia.”
O jornalista José Condé relata ainda que o escritor mostrou a ele “diversos objetos da sua coleção. Desenhos de tipos africanos: negros yoruleanos e malês. Orixá: Xangô, Exu, Yansan. Instrumentos de música dos candomblés: atabaques, agogôs, chocalhos, colares e pulseiras usados pelas ‘filhas de santo‘. E algumas gravuras, inclusive um desenho notável de um escravo africano todo acorrentado, trabalho de um artista popular do Nordeste. Sobre uma das paredes, uma aquarela de Luiz Jardim: ‘Xangô‘.”
Ótima iniciativa divulgar trechos de uma entrevista de Arthur Ramos de 1937, ano de interdição da Frente Negra Brasileira enquanto movimento político partidário. Getúlio Vargas admitiu exatamente apenas atividades de cunho cultural, como me informou o Sr. Francisco Lucrécio, membro da FNB, em sua visita a Brasília , nos anos 1990, a convite do CEAB, Centro de Estudos Afrobrasileiros, já bem idoso, foi nosso hóspede. Arthur Ramos deixou ótima contribuição e alguns danos na imagem dos africanos.