A vingança da Cachaça
Estudo de Theo Brandão publicado originalmente na Revista Brasil Açucareiro de 1968
Theo Brandão*
Um dos temas ou motivos mais encontradiços na vasta literatura oral relativa à Cachaça, é o da Vingança da Cachaça, expressa em inúmeras trovas ou quadrinhas populares usadas geralmente como “lodaças” ou glosas de tomadores da “branquinha“.
Tanto em nossa coletânea, toda recolhida em nosso Estado de Alagoas, quanto nos trabalhos do folclorista sergipano, hoje radicado na Bahia, Prof. Jose Calazans Brandão da Silva ou nos do capixaba Guilherme dos Santos Neves, de Vitória do Espírito Santo, encontram-se quadras, trovas e outras formas poéticas, em que se exprime de diferentes maneiras, mas sempre com semelhantes figuras paralelísticas, a vingança da cachaça, deitando ao chão o bebedor que a derramara garganta ou barriga a dentro.
Numa primeira glosa, que é transcrição do texto folclórico de um poema do saudoso poeta nordestino Ascenço Ferreira, assim se expressa a vingança da cachaça:
Em jejum eu te arrecebo
Como xarope dos bebo,
Tu puxas, eu arrepucho,
Bate comigo no chão,
Bato contigo no Bucho.
Noutra recolhida por José Calazans na ribeira do São Francisco, ouve-se:
Gerebita, gerebitinha,
Tu puxas, eu puxo,
Tu bates comigo no chão,
Eu bato contigo no bucho
Ainda no citado autor, através de sua excelente e pioneira obra no gênero, CACHAÇA-MOÇA BRANCA, encontram-se outras quadras com o mesmo pensamento:
A cachaça e fia
Da cana soca,
Eu bato com ela na barriga,
Ela me bate na grota
Cachaça, moça branca,
Fia do veio Tiburço
Ela bate comigo no chão,
Eu bato com ela no bucho.
Cachaça, fia da cana,
Neta do véio Paixão,
Eu meto ela no bucho
Ela me mete no chão.
Na obra de Guilherme Santos Neves, sobretudo em seu CANCIONEIRO CAPIXABA DE TROVAS POPULARES, encontram-se igualmente quadras relativas ao mesmo assunto:
A cachaça e moça branca
Toda cheia de arrepuxo,
Ela dá comigo no chão,
Eu dou com ela no bucho.
Cachaça, tu não faça comigo
Como tu fez com Tiburço:
Tu deu com ele no chão,
Ele deu contigo no bucho.
Variantes destas trovas e quadrinhas são as seguintes colhidas entre os “irmãos da opa” de Alagoas:
Aguardente de alambique
É arva que nem capucho,
Ela bate comigo no chão,
Eu bato com ela no bucho.
A cachaça e moça branca
Fia do veio Tiburço,
Ela bate comigo no chão,
Eu bato com ela no bucho.
Aguardente é moça branca
Fia da cana caiana,
Eu bato com ela no bucho,
Ela bate comigo na lama.
A cachaça é moça branca
Fia da cana torta,
Quem puxa muito por ela
Fica caído na grota.
Aguardente caianinha
É feita da cana torta,
Bato com ela no bucho,
Ela bate comigo na porta.
Aliás, só na última “lodaça” de J. Calazans Brandão da Silva e nas três últimas de nossa coletânea, é que a imagem se torna lógica e adequada, pois que, realmente, a cachaça só se vinga, quando foi bebida; só bate com o bebedor ao chão, depois que este a tenha feito descer entranhas abaixo.
Pois, bem ou porque o tema ou motivo seja um “tropo” tradicional, uma imagem que tenha vindo passando através dos tempos e dos lugares, nas diversas literaturas eruditas ou populares dos países ocidentais, ou visto seja uma ideia elementar, uma “elementar-gedanke“, surgindo aqui e ali, no tempo e no espaço, não em consequência da transmissão ou do contato cultural, mas em resultado da própria constituição idêntica do cérebro humano, o fato e que essa imagem corriqueira e tradicional de nossos bebedores da “imaculada“, glosada de tão diferentes maneiras, fomo-la encontrar há 800 anos atrás, na Península Ibérica, ao tempo da dominação árabe, em terras de El-Andalus, num pequeno poema do poeta e médico Abu-Bakr-Muhammad Ben Al Malik Avenzoar, que aliás parece não ser senão o filho do célebre médico sevilhano Avenzoar, mestre do não menos célebre arquiatra muçulmano Averroes.
Numa pequena coletânea traduzida do árabe para o espanhol por Eduardo Garcia Gomes – POEMAS ARABIGO-ANDALUSES – (Colecion Austral) 1940, deparamos com o seguinte poema que transcrevemos na integra:
“DEPUÉS DE LA ORGIA”
Apoyadas las mejillas en las palmas de las manos nos sorprendió a ellos e a mi la luz de la aurora.
En toda la noche habia cesado de escanciarles el vino e de beber yo mismo lo que quedaba en su propria copa, hasta que me embriagué al igual que ellos.
Pero el vino ha tomado bien su venganza: Yo le hice caer en mi boca y el me ha hecho caer a mi.
(Sevilla-1113-1199-Abu-Bakr Muhammad ben Abd Al – Malik Avenzoar)
É sem tirar nem por, no último versículo, a mesma imagem dos nossos “pés de cana“. Versículo que um curioso assim parafraseou:
Uma pena maior que a de Talião
Deu-me o vinho que a mente me fez louca:
Aos lábios o levei por minha mão,
Fi-lo descer dentro de minha boca,
E ele me fez cair por sobre o chão.
Variante da imagem estudada e esta outra glosa de um cantador anônimo, também pertencente à nossa coleção:
O sinhô e branco assim,
Maltratando a tôda gente?
Eu sou cabôco safado,
Bebedô de aguardente,
Larguei de bebê demais,
Que a cana puxa prá trás
E eu puxo para a frente.
E, ainda melhor, estoutra que há uns bons 30 anos atrás, ouvimos no então Engenho Boa Sorte, Viçosa de Alagoas, e dirigida a um ilustre convidado, meu amigo e compadre depois figura de projeção na política, como nosso representante no Parlamento, e que, em companhia de outros amigos e estudiosos de Maceió, lá fora assistir, promovida por meu tio Dr. Olegário Vilela, uma magnífica exibição de cantadores de coco, toada e viola. O amigo e compadre, como era natural em semelhantes ocasiões, sobretudo quando inda se é moço e forte, excedera-se um pouco na bebida e o provecto cantador e violeiro Manoel Nenen, que era um dos poetas populares presentes, assim, ao som de sua viola de pinho, numa magistral sextilha, aconselhou ao amante da “branquinha“:
Seu Doutô não beba tanto
Deixe a cachaça de mão,
Olhe que quem bebe um copo
Termina no garrafão;
Não beba tanto e conheça
Que ela sobe pra cabeça
E o sinhô desce pro chão.
No admirável poeta popular que ainda hoje se encontra vivo e a cantar, apesar de já carregar seus 84 longos cajus, a imagem, mercê das antíteses cruzadas dos dois últimos versos que chegam a tomar a feição de um verdadeiro quiasma (recurso poético em que Manoel Nenen sempre foi um consumado mestre), tornou-se muito mais vigorosa e bela do que a do médico e poeta muçulmano ou as das “lodaças” tradicionais dos amantes das “águas cambaleantes“, no pitoresco dizer do impenitente boêmio e notável tocador de cavaquinho viçosense – José do Cavaquinho.
É bem verdade que, no poema do filho de Avenzoar, há na segunda estrofe uma passagem que bem pode ser equiparada ao acontecido numa anedota popular da cachaça que assim pode ser relatada:
Em certa bodega de ponta de rua, o dono era tão ardoroso amigo da “caiana” quanto os seus numerosos fregueses. De tal modo que, todas as vezes em que um freguês pedia uma “lapada” de quatro dedos, o vendedor aguentava a mão e pingava sempre de menos. O freguês, é natural, reclamava:
– Só isso, então não quero…
O bodegueiro não se alterava com a reclamação. Recolhia o copo do balcão e simplesmente dizia:
– Tem nada, não. Se o sinhô não qué, a casa toma…
E virava a “bicada“.
O freguês ia embora. Dentro em pouco, chegava outro e a cena se repetia, tomando, ao fim, o dono da casa todas as “bicadas” pedidas pelos clientes.
À tarde, como o escansão do poema arábico-andaluz, o bodegueiro estava completamente “fardado“, “de talabarte e perneira“, como usa dizer o já citado José do Cavaquinho.
Num tamborete, à um canto da venda, mal podendo abrir os olhos, ao pedirem-lhe os fregueses:
– Tem cachaça?
Respondia o bodegueiro, língua empastada e grossa:
– É, cachaça tem. Não tem é quem venda…
Idênticas foram as vinganças, na Espanha muçulmana, do vinho, no Brasil de sua irmã menos nobre, a cachaça, expressas nas mesmas imagens e nos mesmos acontecimentos…
*Publicado originalmente na Revista Brasil Açucareiro de 1968.
Cachaça não é bebida para o homem beber ela, pois só a catinga dela torna-se aborrecida, faz um conversa comprida que todo cachaceiro faz, cospe no balcão alheio é isso é muito feio, já bebi não bebo mais.
Grande dr Téo Brandão
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