A última aula do professor Sebastião da Hora
Jorge Barros*
Ele proferiu a última e mais impressionante aula no seu último dia de vida. Estava no Clube Fênix Alagoana, o elegante clube da cidade no final da década de 50, numa reunião entre amigos. Era uma tertúlia que sempre se seguia após lauto jantar. Alegre e com a euforia expansiva que lhe era tão característica, declamava trechos de sonetos enquanto elogiava o bom vinho de origem portuguesa, liberando sonoras gargalhadas.
Entre generosos goles, formulava também suas dúvidas sobre a bioquímica dos ácidos graxos saturados na gênese das coronariopatias, em tempo que defendia a excelência de uma peixada alagoana, tanto pelo maravilhoso sabor, quanto pelo bem que fazia à saúde.
De vez em quando repreendia a todos por silêncio, para melhor poder ouvir os acordes da bela música que irradiava no ambiente e, mergulhado em cálculos e meditações, parava numa atitude beneditina absorvendo os efeitos da melodia em enlevo e beleza. Lá pelas tantas, vira-se para um amigo ao lado e diz:
– Estou infartando.
No seu rosto se percebiam as fácies de uma angústia sufocada, de um sofrimento súbito e reprimido. Apontava a dor que o incomodava como tenazes pelos escalenos e cortava impiedosa a sua excursão respiratória. Seu pulso era tenso e desritmado.
– É infarto, e é um infarto grave… Repetia.
Os amigos, aturdidos, não entendiam o que se passava. Ele, entre dores e náuseas, recomendava:
– Papaverina no SAMDU, Eletrocardiograma do Hospital do Câncer, Demerol, Peritrate, tenda de oxigênio e chamem minha família.
Fez algumas últimas confidências e um comovente inventário de suas últimas vontades. Sentia-se agora sereno, absolutamente consciente que a morte iminente o esperava. Resoluto e conformado, aguardava os minutos finais para a longa viagem para o outro lado. E a cada momento, ia descrevendo com detalhes as instruções necessárias, apesar de ineficazes. Falava como se estivesse em sala proferindo mais uma aula para seus diletos alunos de do curso de medicina, profissão que abraçou com extrema dedicação e competência toda sua vida. As extra-fístoles, a irradiação da dor toráxica, os sinais faustos do colapso insidioso, a bipertermia que se esboçava, as náuseas que se avizinhavam. Minutos depois, o eletrocardiograma confirmava a extrema gravidade do mal e a exatidão do diagnóstico auto-proferido.
No dia seguinte, seu corpo repousava tranquilo no solo da província que tanto amava, a sua terra das Alagoas. Alagoas perdia um filho, um homem incomum, um professor, político, mestre de medicina, médico cardiologista, intelectual de alta estirpe e ser humano de valores e princípios elevadíssimos. Ele deu aos amigos, familiares, médicos e enfermeiros que o atenderam em suas últimas horas, uma aula inesquecível, amargurante e bela, uma autêntica lição de um sábio que até o último minuto de vida fez questão de educar e transmitir o legado do seu conhecimento para a sociedade.
Morria assim, em 05 de Dezembro de 1959, o meu avô materno: Professor Doutor Sebastião Vaz Pereira da Hora, que hoje ainda tanto nos ensina pelo exemplo que deixou como pessoa e profissional destacado nos ofícios aos quais se dedicou.
*Texto baseado em relatos de familiares e inspirado no artigo publicado na Gazeta de Alagoas pelo seu amigo dileto, Professor Nabuco Lopes.
Obrigado pelo destaque a essa publicação sobre meu avô, Ticianeli. Fico feliz que haja um meio de comunicação como este que valoriza a história, preserva a memória e dá vida ao legado de pessoas que verdadeiramente construíram Alagoas.
Adoro seu site/blog. Sempre carregado da nossa história, contada e escrita muito bem com detalhes imperdíveis. Obrigado.
A sensibilidade humana superando a realidade. PAZ e BEM.
É muito bom conhecer a história do meu avô a quem aprendi a amar e admirar, mesmo sem ter convivido com ele.
Espero que as futuras gerações possam um dia escrever com tanto orgulho as histórias de alagoanos de agora, como o fazem hoje nossos nossos conterrâneos saudosistas.