A saga bancária de Manoel Almeida

Sávio Almeida em foto de Ailton Cruz

Luiz Sávio de Almeida

Um beijo carinhoso em Eneida Padula, uma menina do meu tempo e que era muito bonita. E outro em sua filha Monalisa, uma bela amiga. As duas passaram a simbolizar a Bicas que recordo. Nada consultei para escrever o texto que irei apresentando. Nomes de locais e pessoas podem estar errados, embora estejam da forma como guardei na lembrança.

Minha cara Eneida

Segue a cartinha que prometi sobre nosso tempo em Bicas. Virou um cartão. Espero que tenha paciência e vá lendo devagar. Quando estiver no tempo de recordar, eu vou escrevendo.

Um abraço

Sávio

Luiz Sávio de Almeida

A saga bancária de Manoel Almeida

Eneida, eu não tenho uma imagem clara de quando cheguei em Bicas. Sei que desci em uma estação ferroviária; vinha da cidade de Penedo, na beira do São Francisco, nas Alagoas. E suponho ter ido em um DC3 para o Rio de Janeiro. Meu pai tinha pressa em chegar; era sua primeira gerência e ele sempre foi fissurado em sua carreira. Ele havia pleiteado a gerência de Penedo, não conseguiu; apareceu a chance de Bicas e ele não perdeu tempo. Era um desafio, um desastre de agência, com um imenso rol de dívidas em carteira, um verdadeiro abacaxi, mas do tipo que ele gostava de descascar e, descascando bem, na certa ganharia relevo em sua vida de satélite, quando o Banco do Brasil era um gerador de empregos e transformador de uma pequena classe média em bons maridos, partidos a casarem com moças de bom viver.

Sávio Almeida: "Suponho ter ido em um DC3 para o Rio de Janeiro"

Sávio de Almeida: “Suponho ter ido em um DC3 para o Rio de Janeiro”

O Banco pagava bem e passar em seu concurso não era mesmo fácil. Estava Manoel de Almeida saído da agência de Maceió para a de Pirapora onde seria contador. Voltou para Penedo na mesma posição, com a única vantagem tendo sido a de ter ficado perto da família na Capela e em Arapiraca. Na verdade, era o ramo de minha mãe cuja cabeça e vida repousavam nas histórias da Capela, mais chegada ao lado dos Albuquerques, embora filha de um Almeida. Caetana Maria de Albuquerque – conhecida por Dondon – era casada com o velho Fausto de Almeida, meu querido avô e a quem por ironia do destino, nunca conheci. Eu já era casado quando a minha avó morreu e ela está enterrada em Arapiraca. Meu avô quando morreu, mamãe era recém-casada, morava em Quebrangulo, onde meu pai tinha uma escola chamada Ateneu Quebrangulense e era secretário da Prefeitura do Município, depois de ter sido na Capela.

Seguir para enfrentar o desastre da agência de Bicas era um incentivo para meu pai, que chegou a passar uma temporada precisando, aqui ali, da caridade pública para viver. Foi o vexame de não ter o que comer, Eneida, que, em grande parte, deu-lhe a força necessária para não ter medo de enfrentar qualquer tipo de problema. Ele iria para ser gerente de uma agência de baixa classe com um problema interno imenso, e estava determinado a vencer e certo de que receberia uma melhor comissão. Foi por isto que largamos tudo em Penedo e pela primeira vez na vida, eu iria me afastar da maravilha das águas do Rio de São Francisco.

O caminho levava ao Rio de Janeiro e ao Hotel Ambassador, onde meu pai sempre teimava em se hospedar, bem ali na Cinelândia, na Rua do Passeio. Eu não me lembro de nada desta bendita viagem. Nem mesmo de quando saí de Penedo, arrancado de minha vida e tão móvel quanto era a carreira de meu pai. Sei lá quantos anos eu tinha… Minha mãe fazia pouco, tinha saído de um parto. Eu me lembro dela num quarto do Hospital de Penedo, lá no Cajueiro Grande. Não sei se tive medo de perdê-la. Parece que nada me passaram de temor, a não ser a incômoda sensação de ouvir dizer que eu iria ficar no canto, o que minha mãe rebatia e me dava segurança. Ela foi uma mulher fantástica, Eneida.

Minha irmã pequenininha, quase um nada, seguia conosco. Veja como é a vida: ela vai morrer assassinada em São Paulo. Pois bem, embarcamos na Estação Leopoldina e deveria ser de madrugada. Não sei quanto durava a viagem do Rio para Bicas. O tempo para Penedo não mais existia. Meu umbigo havia sido cortado. Existia um tempo novo que eu não podia dimensionar. Mas fico com o vagão na cabeça e devo ter criado… Não sei, mas havia um determinado trecho, subida de uma serra, que uma locomotiva especial puxava, tendo engrenagens em cremalheira. Volto a dizer: será que criei? Sei apenas que obrigatoriamente teria que saltar na estação e que uma procissão de esposa, filho, filhas e carregador seguiria meu pai para o Bicas Hotel ou Hotel Bicas, onde, na certa, tudo estaria reservado.

Bicas Hotel

Bicas Hotel

Pouco me lembro do Hotel. Sei que havia uma escadaria que levava para o primeiro piso, e penso que abria em duas laterais. Na entrada, do lado direito, ficava uma bonbonière; não me lembro do lado esquerdo. O Hotel foi pensado simetricamente: os lados eram univitelinos. E ele era longo, bem mais comprido do que largo. Era uma frente que se tentava imponente, mas que jamais poderia ser pela pobreza da concepção: uma tentativa de fazer um grande em um pequeno. Após a entrada, pelo que guardei na lembrança, ficava o restaurante e depois dele, a cozinha.

Frequentei muito a cozinha, pois ia buscar água para o banho de minha irmã que dormia com minha mãe em seu quarto. Parece que a água era esquentada com uma resistência e eu subia e descia a toda hora que a higiene de minha irmã precisava. Na cozinha, depondo contra a higiene, circulava uma boa quantidade de porquinho da Índia e que parece ter sido a vara indu, do que imagino ter sido o filho do dono do hotel: suponho que o seu nome era Wagner. Dono, arrendatário, gerente, não sei.

Eu não tinha o que fazer e imagine o sofrimento de minha mãe, trancada em um quarto de hotel, aguentando o choro de minha irmã mais nova e minhas encrencas com minha irmã mais velha. Minha irmã mais velha sempre teve educação refinada; quando vivíamos em Pirapora, era interna no Sacré Couer de Marie, onde se rezava a Ave-Maria, falava-se francês e os talheres eram de prata. Ela iria continuar no Stela Matutina em Juiz de Fora e eu seguiria para um grupo escolar de Bicas.

O que fazíamos os quatro alagoanos na terra mineira? Ver o trem chegar era um divertimento. Ler revista em quadrinho, era outro. Papai tinha que nos tirar de dentro do quarto de hotel ou iríamos estourar. Normalmente, ele nos levava para passear e terminávamos numa lanchonete que ficava logo após o cinema. Ele comprava algum refrigerante e, invariavelmente, um chocolate. De tanto ouvir o pedido, guardei a palavra Cremona. Era pequeno e muito crocante. Acho que foi nesse tempo que conheci duas outras coisas importantes: Grapette e Chica Bom. Refrigerante e picolé de chocolate. Quem bebe Grapette, repete.

"Penedo, a cidade que me restou"

“Penedo, a cidade que me restou”

Para me divertir, deram-me o meu primeiro brinquedo de corda; era um jeep de guerra comprado se não me engano, na loja do seu pai, Eneida. Vivia com o jeep para cima e para baixo. Uma novidade para quem fazia seus próprios brinquedos com carretel, na vetusta, gloriosa e mui leal vila do Penedo. Eu ficava com ele no quarto, companheiro das horas sem fazer nada e para não abusar a minha mãe, coitada, carregando a lapada da vida que foi novamente deixar os seus, para meu pai confirmar-se como um grande homem do Banco do Brasil, como de fato terminou tendo uma carreira brilhante.

A solução seria alugar uma casa. Dificuldade. Onde conseguir uma casa em Bicas com urgência e capaz de dar uma satisfação mínima? Além do mais, os teréns não haviam chegado. Comprar tudo novamente? Quem vive para cima e para baixo carrega o mínimo de coisas; as principais, as de maior estima, o que é menos pesado. Tínhamos espécies de baús e parte vinha encaixotado, como os cristais de minha mãe que ela embalava com um cuidado impressionante, tanto que viajaram e viajaram e a coleção encontra-se em sua cristaleira que guardo em casa. Imagina o que era transportar uma quase casa para outro hemisfério; tudo sair quase da foz do São Francisco e ir bater na zona da mata mineira. Os cristais já haviam seguido de Quebrangulo para Maceió, de Maceió para Pirapora, voltado para Penedo e tomavam o caminho de Bicas.

Não tínhamos nada e de certa forma éramos indigentes, com a necessidade de roupas de frio, desde que a nossa era feita para o calor úmido da velha Penedo, a declamada Princesa do São Francisco. Como dizia minha mãe, o frio em Bicas era tão pesado, que saía fumaça da boca. Então, era aguentar o rojão de não ter para onde ir, adaptar-se à comida como se fosse um outro pequeno país. Feijão, modo de cozinhar o arroz, a gordura, tudo isto mexia conosco e comida do hotel ia cansando, tanto quanto cansava a correria neurastênica dos porquinhos da Índia nas bandas da cozinha. Éramos uma família de poucos metros quadrados, longe de casa e sentindo-se um pouco sem eira e nem beira. Éramos uma espera de trem e a degustação de um Cremona numa pequena lanchonete de interior, onde um dia eu vi o famoso Dequinha do Flamengo, mas é outra história.

Capela e o rio Paraíba

Capela e o rio Paraíba

Eu não tenho dúvida, que havia um pequeno drama familiar se desenvolvendo. Relendo as memórias do meu pai publicadas em livro, o seu esforço para acertar-se com a vida colocava a carreira em primeiro plano e a família ia se ajustando e ele gerenciando os novos cenários que se abriam. Minha mãe unia e sustentava tudo, mas ela sentia uma imensa saudade da família nas Alagoas. Na verdade, ela trazia Alagoas dentro de si e a revivia contando interminavelmente as histórias da família. Fui criado dentro do universo maravilhoso da Capela, tantas vezes contado e recontado por minha mãe. Há uma geografia refeita na cabeça migrante. Alagoas resistia em Bicas. Era como se fosse dito: meu filho, você está aqui mas é de lá.

A nossa noção de família era muito forte; tia Lurdes largou-se de Alagoas com o marido e vieram a Bicas; em torno de um nada que havíamos saído de Penedo, tia Lurdes e tio Waldomiro bicaram. Como o tio Joel, irmão de meu pai, que veio ficar uma temporada conosco. Ainda tenho foto do Waldomiro e da tia Lurdes em Maripá e Guarará, Juiz de Fora. Era o caminho da família, aquele mesmo grude que havia feito com que meu pai aceitasse comissão menor, para sair de Pirapora e ir para Penedo. E era aquele batalhão de gente na casa de minha avó na Capela, naqueles tempos de festa. Minha mãe e mesmo meu pai, traziam isto para Bicas; por mais que se pudesse gostar do lugar, ele não era o nosso e tudo se indicava pela falta do cuscuz. Os detalhes se maximizam em explicações, quando estamos fora e sentimos que estamos. Ali mesmo em Minas, pelos lados de Barbacena, construíram uma pergunta fantástica: Como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Minha mãe era um peixe vivo criada nas beiras do Paraíba e vivida no meio da cana de açúcar dos engenhos como Caborje que pertenceu ao meu avô Fausto, das canas de açúcar do Minhus que foi do meu bisavô, o Dindinho Néo, casado com a Dindinha Marquinhas, sendo ele Albuquerque Pontes e ela Sampaio.

Minha mãe tinha, o que antigamente se chamava de costados no rio Paraíba, no Paraibinha, no antigo e sumido Riacho Lavapés. Meu pai vinha do Monte Verde do meu bisavô José Francisco de Almeida, do Mumbaça do seu Manezinho, pai de meu pai. O Monte Verde nas vizinhanças do Riachão do Cipó, com esse Riachão do Cipó ficando na frente do Pitimiju, no caminho para os encantados do Arrasto de Santa Efigênia. Meu pai nunca esteve em Bicas: meu pai sempre esteve na agência do Banco do Brasil; minha mãe nunca esteve em Bicas: sempre esteve na sua velha Capela onde me batizei. E assim, todos nós chegamos onde nunca estivemos, mas vivemos. Bicas sempre foi tida como um provisório. Era uma passagem no roteiro de Manoel de Almeida.

Isso não significa que a cidade não nos interessou. Pelo contrário, foi uma boa experiência de vida, mas nós não estávamos preocupados em fazer o sul; estávamos interessados em fazer o Banco do Brasil. Vencer, era uma forma que meu pai encontrava para dar à família, aquilo que ele nunca teve. Ele foi um homem sem dúvida brilhante e profundamente ligado à família, dando-nos tudo de tudo. Ele também nunca havia saído de Alagoas. Toda sua vida consistia em voltar à Capela, onde o velho Seu Manezinho perdeu tudo o que tinha em uma das crises do açúcar banguezeiro. Manoel de Almeida, o meu pai, chegou a pedir dinheiro e comida para viver, apesar do irmão ser dono de uma usina de açúcar e considerado um dos homens mais ricos de Alagoas naqueles tempos.

Tanto Bicas me marcou, Eneida, que, faz pouco tempo, ao receber o título de Professor Emérito de minha Universidade, os lambaris do córrego que passava nas vizinhanças de nossa casa, surgiram claramente na minha cabeça. E eu vi que era também e humildemente, um pedaço daquele córrego que me parece era chamado de São Não Sei o Quê, ou talvez São João.

Qualquer dia, mando a segunda cartinha para você.

*Publicado originalmente no Blog do Sávio Almeida, em http://luizsaviodealmeida.blogspot.com.br/2014/07/um-beijo-carinhoso-em-eneida-padula-uma.html

2 Comments on A saga bancária de Manoel Almeida

  1. Hamilton Albuquerque montenegro // 12 de fevereiro de 2016 em 17:41 //

    Minha família, Sampaio, Albuquerque e Toledo! Era das banda do cambucar!

  2. Hamilton Albuquerque montenegro // 12 de fevereiro de 2016 em 17:43 //

    História, familiar fantástica!

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