A Legenda do Grito do Ypiranga
Aurino Maciel
*Publicado na Revista ABC de 18 de setembro de 1926.
A formosa pintura de Pedro Americo, que representa D. Pedro na colina do Ypiranga, cercado da sua guarda honorária, dos seus gentis-homens, dos seus capitães-mores, montando em fogoso corcel, vestido em luxuosa farda, com a espada desembainhada e bradando furiosamente — Independência ou Morte! — consagra uma mentira histórica.
Os dois primeiros versos do hino oficial da Independência, de Osório Duque Estrada:
Ouviram do Ygiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
incidem no mesmo erro secular, que anda contado e recontado por todos os historiadores, antigos e novos, grandes e pequenos, contra a versão nua e crua dos fatos.
No Ypiranga, é certo houve muitos gritos; furiosos alguns, outros entusiásticos, mas todos inócuos; menos aquele.
O padre Belchior Pinheiro de Oliveira, que acompanhava D. Pedro no famigerado trajeto de Santos a S. Paulo, conta desta maneira os acontecimentos do dia 7, um pouco soezes e ridicularizantes nas suas minúcias:
“O príncipe mandou-me ler alto as cartas trazidas por Paulo Bregaro e Antonio Cordeiro.
Eram elas: uma instrução das Côrtes, uma carta de D. João, outra da princesa, outra de José Bonifácio e ainda outra de Chamberlain, agente secreto do príncipe.
As Côrtes exigiam o regresso imediato do príncipe, a prisão e processo de José Bonifácio; a princesa recomendava prudência e pedia que o príncipe ouvisse os conselhos de seu ministro; José Bonifácio dizia ao príncipe que só havia dois caminhos a seguir: partir para Portugal imediatamente e entregar-se prisioneiro das Côrtes, como estava D. João VI, ou ficar e proclamar a independência do Brasil, ficando seu Imperador ou Rei; Chamberlain informava que o partido de D. Miguel, em Portugal, estava vitorioso e que se falava abertamente na deserdação de D. Pedro em favor de D. Miguel; D. João aconselhava ao filho obediência à lei portuguesa.
Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papeis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva.
Eu os apanhei e guardei.
Depois, abotoando-se e compondo a fardeta (pois vinha de quebrar o corpo à margem do riacho Ypiranga, agoniado por uma disenteria, com dores que apanhara em Santos), virou-se para mim e disse:
— E agora, Padre Belchior?!
E eu respondi prontamente:
— Se V. Alteza não se faz Rei do Brasil, será prisioneiro das Côrtes e talvez deserdado por elas.
Não há outro caminho senão a independência e a separação.
Pedro caminhou alguns passos silenciosamente, acompanhado por mim. Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos nossos animais, que se achavam à beira da estrada.
De repente, estacou, já no meio da estrada, dizendo-me:
— Padre Belchior, eles o querem, terão a sua conta.
As côrtes me perseguem, chamam-me com desprezo de Rapazinho e de Brasileiro.
Pois verão agora quanto vale o Rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal!
Respondemos imediatamente com entusiasmo:
Viva a liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro!
O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e disse:
— Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a independência completa do Brasil.
Estamos separados de Portugal.
O tenente Canto e Mello cavalgou a uma venda, onde se achavam quase todos os dragões da guarda e com ela veio ao encontro do príncipe, dando vivas ao Brasil, a D. Pedro e à Religião!
O príncipe, diante de sua guarda, disse então:
— Amigos, as Côrtes portuguesas querem escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais!
E, arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas Côrtes, como símbolo da nação portuguesa atirou-o ao chão, dizendo:
— Laço fora, soldados! Viva a independência, a liberdade e a separação do Brasil!
Respondemos com um viva ao Brasil independente e separado, e um viva a D. Pedro!
O príncipe desembainhou a espada, no que foi acompanhado pelos militares; os paisanos tiraram os chapéus.
Pedro disse:
— Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.
— Juramos, responderam todos!
Pedro embainhou a espada, no que foi imitado pela guarda. pôs-se à frente da comitiva, e voltou-se, ficando em pé nos estribos:
— Brasileiros, a nossa vida de hoje em diante será Independência ou Morte!
Firmou-se nos arreios, esporeou sua bela besta baia, e galopou, seguido de seu séquito, em direção a S. Paulo…”
Esse episódio foi também descrito por outras testemunhas presenciais, como o Barão de Pindamonhangaba, então coronel comandante da guarda de honra de D. Pedro, e o tenente Canto e Mello, ajudante de ordens do príncipe e irmão da futura marquesa de Santos.
Esses, porém, não são tão verdadeiros quanto o Padre Belchior, cuja narração é fresca e imediata, enquanto eles fizeram o seu raconto quarenta anos mais tarde, valendo-se das próprias recordações e quando certas legendas, como o brado retumbante, já estavam consagradas.
Bem longe estamos de acreditar que a verdade histórica se aquilate “pelo número” das autoridades, não sendo estas, aliás, às vezes, mais que reprodução ou plágio uma das outras; e antes pelo contrário todos sabem que, conforme o mais judicioso critério histórico, casos há em que o depoimento de uma só testemunha presencial, conscienciosa, pode completamente destruir invenções…
Outro relato ainda menos fidedigno é o Dr. Paulo Antonio do Valle, feito vários lustros depois da cena.
Paulo do Valle era contemporâneo do episódio, e metido a historiador; mas a sua crônica é solenemente patética, cenografando os acontecimentos com tonalidades cavalheirescas e melodramáticas, que não eram para a situação personalíssima de D. Pedro, vexado, como estava, por uma estrondosa dor de barriga.
Para ele, D. Pedro era Guilherme Tell, atravessando as montanhas de Astorf para ir libertar a pátria Suíça escrava, ou César, atravessando o Rubicão, que se lhe antepunha ao trono de Roma e à soberania do mundo.
Foi ele o inventor do fogoso corcel zaino de D. Pedro, o qual, por sinal, aparece, assim, no famoso quadro do pintor.
A bem-aventurada cavalgadura do príncipe, que era uma bela besta baia na descrição do Pe. Belchior ou, melhor ainda, uma besta baia gateada, segundo a memória de Pindamonhangaba, está reclamando um pincel corajoso e realista que a restaure, necessariamente, em nome da verdade histórica.
Também o braço heroico de D. Pedro merecera baixado, no quadro célebre, em vista de não ter sido aquele o gesto autêntico que fizera: se houve de desafiar as nuvens indefensas, D. Pedro, com a espada desembainhada, apresentou-a para o chão da terra, em atitude de jura pelo seu sangue, pela sua honra e pelo seu Deus, fazer a liberdade do Brasil.
Parabéns, prezado Ticianeli. Ainda não havia lido nenhuma análise sobre esse assunto.