A biblioteca e a vida estudantil
Ledo Ivo
Quando a velha sineta do casarão da rua do Macena repercute pelas alamedas ensombradas ou pelas garridas salas-de-aula, após as orações ritmadas saídas dos lábios de quinhentos alunos, o pesado portão marrom se abre, deixa que os fardas-caqui tinjam o calçamento. E, sobraçando compêndios, a estudantada vai, aos poucos, deixando o colégio. Agrupa-se na rua. As ruas laterais engolem dezenas de caquis, engolem também pedaços indistintos de gaitadas. Picolé, doce gelado. Baleiro, bala. Puxa-puxa, puxa-puxa, dois a cem réis. De vez em quando um automóvel. Fonfonfon. Fordecando com insistência.
E, aos grupinhos, muitos descem pela Macena afora. Compram o rolete bem redondo que o molecote de cabelo-espeta-mangaba vende na última esquina. Devagarinho, conversando sempre, descem pela praça margeada pelos oitizeiros de galhos se embalando docemente. Rabeando os olhos irrequietos, entreolham a austeridade bélica do barbudo marechal, que, sem querer, proclamou a República. Atravessam (que estudantes conversadores!), a praça larga. Contemplam o colega namorando na janela verde com a menina de preto. detêm-se. Esperam que a limusine pedante passe mansamente, com um sorriso burguês lá dentro.
Entram no edifício amarelado, onde, em gorduchas letras azuis, lê-se o seguinte dístico:
BIBLIOTECA E TEATRO MUNICIPAIS
Por outro lado, os estudantes do Liceu deixam o prédio do Livramento, com uma algazarra sem ritmo nenhum, cepando a calourada displicente, e, juntinhos, dirigem-se para a Biblioteca.
E, de quando em vez, garotas sapecas da Profissional ou Normal, galgam a escadaria da Biblioteca (pise só no tapete), bolem com as bochechas rosadas (não cuspa no chão), endireitam os livros que sobraçam (ofereçam livros à Biblioteca), contam aventuras de namoricos (silêncio!). Os pés mimosos se queixam do esforço feito na escadaria atapetada. Os olhos cansados de banalidade olham para uma revolta cabeleira fulva, mudam de focação, veem um sujeito de nó no nó do pescoço, batendo ferimentos descompassados numa máquina de escrever.
Psiu, psiu, faz favor. Assine aqui. Os livros! não se pode entrar com livros, não. Mãos morenas, com unhas vermelhíssimas e longas, tomam da caneta, escrevem no sisudo livro gordo, em letra bem enfeitada, nomes singelos, nomes de meninas do outro lado.
Entram.
Olhos ledores deixam os livros. (Marina está sorrindo tristemente, aumenta a inquietude de Luiz da Silva, o menino-de-engenho está andando de carneirinho, Tibicuera está fazendo presepada). Interrompida a leitura, os mesmos olhos contemplam as meninas, que, entrando, veem o retrato da parede pendendo mais para um lado do que para outro. O relógio dá uma enigmática e seca badalada. (Marina vai enterrando os sapatos gastos na areia fofa, o carneirinho faz bé, Tibicuera faz palhaçadas. Riso mental do leitor de Tibicuera).
Nas bancas escuras, fardas-caqui leem, tomam nota em caderno avante.
Em frente das estantes envidraçadas, meninas daqui-da-pontinha procuram livros de Delly, onde exista um campônio romântico para se casar com a orgulhosa viscondessa, e beijos que tenham, — atributo essencial, — plácidos à beira de lagos sentimentais.
Pelas janelas escancaradas, entra um ventinho morno, safado. Foca-se imóvel a cor rósea dos telhados, a paisagem cismativa das montanhocas verdes, salpicada de casitas brancas e distantes. Distantes talvez mais distantes do que a ingenuidade romântica das torres de igrejas furando o céu de nuvens ausentes.
***
A falta de livros, até há pouco, constituía o maior obstáculo que se interpunha ao estudante. E isso se justificava. O estudante não tinha dinheiro para dispor com livros.
Agora, com a fundação da Biblioteca, essas lacunas serão aos poucos preenchidas. A novel instituição batalhará em prol das mentalidades que se formam nos bancos das escolas. Surgirão pequeninas falhas, como seja a não metodização, que, decerto, barrará ou obscurecerá os passos dos estudantes. Mas, isso não depende em nada da Biblioteca.
Sua missão está assentada. Dirigirá cérebros em formação, concorrerá para a formação intelectual do estudante pobre, desse futuro da pátria que procura, nos horizontes toldados de uma confusão de sentimentos e de costumes, essa pátria que enche o sebento mapa da América, essa pátria que precisa de bibliotecas, dirigidas por espíritos jovens, que compreendam as ânsias estudantis, suas inquietudes, seu papel não reconhecido, suas idealizações messiânicas, onde quiméricas fantasias profetizam sonhos imensos.
O estudante pobre, que se senta nas calçadas, que entra de bigu no cinema, que é tido como reles anarquista, o estudante sem dinheiro — centralizador de impulsos angustiosos e não adaptados ao tradicionalismo unicamente romântico — agradece com um medo e trêmulo muito obrigado a fundação de um estabelecimento que o guie e o forme.
*Publicado originalmente na revista Alagoas: Mensário Ilustrado, nº 2, setembro de 1938.
Muito grato, prezado Ticianeli, pela publicação de mais uma reportagem sobre Alagoas.