Cem anos depois: retrospectiva dos acontecimentos de 1919 em Alagoas
Publicada no Diário de Pernambuco de 1º de janeiro de 1920, esta retrospectiva revela os principais fatos do ano anterior

Retrospecto do ano de 1919
Maceió, 30 de dezembro de 1919.
O ano que, dentro de algumas horas, terá encerrado o seu périplo foi cheio de alternativas e contrastes para o Estado de Alagoas.
Surgindo quando a gripe espanhola ainda enchia de consternação os lares alagoanos, 1919 deu-nos à contemplação o espetáculo pavoroso do transbordamento do rio S. Francisco que, violando as leis do ritmo secular de suas enchentes descomunais, tangeu de suas casas milhares de pessoas afeitos a colher as vantagens que lhes supedita [fornece] a grande artéria fluvial.
Foram dolorosas as cenas contempladas nos nove municípios atingidos pela calamidade da inundação a que imediatamente se seguiu, depois dos refluxos das águas, o aparecimento de febres de caráter palustre, terrivelmente dizimadora, as quais somente puderam se subtrair a cidade de Pão de Açúcar, a povoação de Entremontes e a vila de Piranhas.
Ao mesmo tempo que sobre a região são franciscana se desenrolavam dramas tão compungentes, em todo Estado verificava-se uma seca terrível, que destruiu grande parte das plantações feitas e causou enormes prejuízos aos rebanhos, diminuídos posteriormente pelo aparecimento da febre aftosa e de outras epizootias, da mesma forma que as roças foram prejudicadas por diversas pragas, já quando a queda de abundantes chuvas fazia prever justamente o contrário.
Em contraste com esses fatos a que o homem não pode infelizmente subtrair, tivemos a mais completa acalmia política.
Os partidos de desde 1911 se digladiavam com encarniçamento, cessaram, com a vitória dos democratas, as lutas renhidas a que se entregavam, entrando-se num período de concórdia grandemente proveitoso aos mais caros interesses do Estado.
No Congresso foram aventadas algumas ideias úteis, como a reforma constitucional, a da criação do imposto territorial, como sucedâneo das taxas de exportação, votando-se também algumas leis proveitosas e tomando-se medidas de utilidade para o incremento desta circunscrição da República.
O poder executivo, livre de óbices e estorvos que as oposições costumam apresentar ao desdobramento de um programa de governo, iniciou alguns melhoramentos de proveito indiscutível e deu andamento a trabalhos anteriormente empreendidos.
Estradas e pontes foram principalmente objeto da maior solicitude do dr. Fernandes Lima, que sintetiza suas normas administrativas na frase: rumo ao campo.
A instrução primária teve, com a criação de vários grupos escolares postos sob a égide de nomes respeitáveis, um considerável desenvolvimento que não se observou na instrução secundária, de alguns anos a esta parte imprevidente relegada para um plano inferior.
Em determinadas fases as tendências homicidas, secularmente observadas em alguns de nossos municípios, se acentuaram de um modo terrível, parecendo que a longanimidade proverbial do júri favoreceu o surto dos crimes de sangue.
O clamor da opinião pública indignada contribuiu poderosamente para que fossem tomadas severas providências contra os criminosos autores de tantas tragédias, que nos vão roubando existências preciosas.
Também a nossa polícia andou à cata de alguns ideólogos que se entregavam à confabulações de caráter maximalista.
Os agentes da autoridade se houveram nessa missão com uma severidade draconiana, levando ao cárcere um dos mais belos talentos alagoanos, Octávio Brandão.
Transladou-se este para o Rio de Janeiro onde, pela publicação do livro “Canais e Lagoas”, granjeou a admiração e o aplauso do povo fluminense e os estímulos mais envaidecedores partidos de um grupo seleto de intelectuais.
O dr. Moreira e Silva deu-nos também duas monografias muito bem acolhidas pela crítica.
Tem por título a primeira O Homem Sul-americano perante a linguística e é um estudo em que se mostra o parentesco das línguas faladas pelos indígenas da parte meridional deste continente.
Na segunda, intitulada — Fisiografia de Alagoas, estuda o dr. Moreira e Silva a nossa geografia física, constituindo semelhante trabalho uma excelente memória apresentada ao Congresso de Geografia reunido em Belo Horizonte.
O Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, que, a 2 de dezembro, completou cinquenta anos de existência viu terminada a impressão da primeira parte do Livro do Centenário destinado a comemorar a passagem do 16 de setembro de 1917.
Consta a primeira parte deste livro de um longo estudo feito pelo sr. Moreno Brandão sobre o desenvolvimento histórico de Alagoas.
A vida jornalística, menos movimentada do que em anos anteriores, quando era maior a efervescência política, não deixou de ser animada registrando-se o aparecimento de dois novos órgãos de publicidade: Vespas e A Rua.
É o primeiro uma bem-feita revista quinzenal redigida por cinco rapazes de talento dispostos a comentarem de modo humorístico os sucessos que se forem dando, ou a analisarem as individualidades do dia. A Rua é um vespertino independente que vai cumprindo com exação e fidelidade o programa que traçou.
Também foram criadas associações científicas e literárias de grande valor para o nosso meio, onde predomina o espírito de dissociação a que devemos o atrofiamento de certos grêmios fundados sob os melhores auspícios.
Entre as corporações recém-inauguradas cumpre citar a Academia Alagoana de Letras e o Instituto da Ordem dos Advogados, os quais têm elementos poderosos de vitalidade e poderão seguir para o mais próspero futuro, se conseguirem se libertar das rivalidades habitualmente vistas aqui.
A valorização de nossos produtos agrícolas determinada pela grande guerra, que arruinou tantos países da Europa, fez que avultassem consideravelmente as nossas rendas públicas, estando as arcas do Tesouro Estadual repletas de numerário, com que podemos fazer face às nossas despesas ordinárias e ao ônus que nos acarretou o empréstimo externo.
Dessa operação financeira tem publicado o “Diário Oficial” alguns interessantes documentos, que põem relevo a improbidade com que o dr. Wanderley de Mendonça se houve no desempenho da comissão que lhe foi confiada.
Apesar, porém, do que já é do domínio público, ainda há muito que desvendar nessa operação sobre a qual somente o nosso antigo procurador, já citado Wanderley de Mendonça, poderia dizer tudo, que o zelo e a inteligência de nosso atual representante mal conseguiu vislumbrar no desejo louvável de acautelar nossos interesses.
Em todo caso mr. Alfredo Duclos, dado o “imbróglio” do empréstimo já fez muitíssimo não se lhe podendo regatear os mais francos aplausos.
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Outro texto, também enviado pelo correspondente do Diário de Pernambuco em Maceió no dia 27 de dezembro de 1919 e publicado na mesma edição de 1º de janeiro de 1920 do jornal pernambucano, detalha como foram as festas natalinas daquele fim de ano.
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Têm ocorrido sobremodo animadas as festas do Natal, que, entre nós, tem aspectos puramente locais, bem diversos daqueles que, em outros pontos, são apresentados.
Além dos pastoris, reisados e cheganças, que pertencem ao “folk-lore” brasileiro, o “folk-lore” puramente alagoano está enriquecido por usanças originárias do meio.
Entre essas não podem ser esquecidas as “emboladas”, criação espontânea da musa inculta dos nossos caboclos.
As “emboladas” hoje constituem uma diversão própria da gente do escol que, em “sambas” ferventes, entoa as melopeias de tais cantilenas monótonas e cheia de alusões pessoais e referências aos acontecimentos do dia.
Entretanto, por motivos que não vem a pelo mencionar, Maceió já não é, na quadra festiva do Natal, a cidade dos “cocos” ruidosos dançados em todas as casas, nas praças, nos bondes, em qualquer parte enfim onde se aglomerassem quatro ou cinco rapazes e outras tantas moças.
Hoje as cirandas e outros exercícios coreográficos foram relegados para os subúrbios, onde constituem como que uma preocupação exclusiva, dominadora, absorvente.
No sul do Estado, onde a vida moldada por uma natureza menos cheia de contrastes, apresenta maior cunho de organização do que nesta metrópole e regiões adjacentes banhadas por duas lagoas verdadeiramente labirínticas, também os festejos próprios da quadra de férias que vamos atravessando, exibem peculiaridades encantadoras, secularmente reveladas e ansiosamente contempladas.
Ali as “rifas” sobretudo constituem agradável diversório de que são completo as célebres “cavalhadas”.
Nessas os figurantes revelam a perícia de verdadeiros marialvas e os cavalos que montam patenteiam as excelências das finas raças árabes de que descendem esses corredores.
Em uma e outra regiões há uma paralisação de todas as atividades que se encontram apenas na ideia do prazer, felizmente gozado sem incidentes desagradáveis dignos de registro.
Adoro estas fotos do nosso passado, das nossas cidades, que representam nossa história fotográfica. Essa lembrança que está guardada e nunca se apagará. Parabéns pela publicação. Estou colecionando para mostrar para meus filhos esse passado glorioso.