Os violentos Pastoris de Maceió no século XIX
Os Pastoris, antes de terem a conformação que sobrevive há mais de um século, tiveram características que os afastaram dos seus aspectos mais religiosos e se definiram como uma festa profana.
Ao historiar sobre as festas pastoris durante o Natal, José Carlos Barreiro, no seu livro Imaginário e Viajantes do Brasil no Século XIX, identifica que existiam à época os que “apresentavam um tom monótono e solene com o perfume e a chuva de flores que promoviam ao longo da realização conferindo um espírito geral de paz e harmonia”.
Entretanto, continua Barreiro, na comemoração natalina dos escravos o clima era diferente, a começar pela representação dramática: “A violência e o conflito é que darão o tom geral à dança. E essas características de tensão misturam-se à alegria esfuziante e coletiva dos criados, dos homens, das mulheres, das crianças e do padre, que gritam e batem palma”.
Todos rendiam homenagens ao Menino-Deus, e portanto simbolizava um momento de aparente nivelamento social, onde não se podia interpor barreiras.
Os jornais das últimas décadas do século XIX em Maceió registram que os bailes pastoris populares não eram bem-aceitos pela elite local por causa das características acima descritas, indicando que predominavam os do segundo grupo.
Em 10 de setembro de 1877, o jornal O Século, de Maceió, denunciou os “presepes”, como também eram denominados: “Há um no Poço e outro na rua do Imperador. Este é mais notável e concorrido porque tem pastorinhas já casadeiras! Seria bom que a polícia se desse por convidada e assistisse a esses inocentes brinquedos, que tanto recomendam o nosso adiantamento e civilização”.
A associação das “pastoras” às prostitutas também pode ser notada em um comentário sobre a moda feminina da época publicado no jornal O Orbe de 25 de maio de 1881. Ao se referir ao tamanho dos vestidos das mulheres, o crítico avalia que “eles são tão curtos que pouco diferem dos das nossas ‘cantoras de bailes pastoris’”.
Em agosto do mesmo ano, o Orbe cobrava a ação da polícia para proibir os bailes pastoris, que começavam a ensaiar para dezembro. Lembrava o jornal que no ano anterior a polícia já tinha sido acionada para “acabar com um desses bailes na rua do Comércio desta cidade”. O apelo foi feito em nome “da moral e da sociedade que representamos”, para proibir esses “bailes ou divertimentos de especulações ruins, que nos causam nojo e ofendem aos bons costumes”.
O jornal O Pandego não tinha “nojo” dos pastoris, mas não deixava de ter preocupações com a violência, como externou no exemplar de 15 de janeiro de 1883 ao avaliar os que se apresentaram naquele período. Considerando todos tão bons que não tinha nota para lhes dar, o jornalista avaliou um por um: “Principiemos pelo da Cambona. Muita animação, partidários enfichados, discussões, poesias, etc., etc. O magistério público desta vez excedeu-se em importância no desempenho de seus papeis”.
Continuou: “No do Horeste, vivas, algazarras, partido favorável a contramestra, mestra retira-se, depois fotografa-se e a sua fotografia é distribuída pelos partidários. Só o volante do Souto esteve desanimado, funcionou algumas vezes em frente a casa do Leite Virgens, depois de haver funcionado na casa em que funciona a terceira cadeira de instrução pública (!) em Jaraguá, em Bebedouro. Por último funcionou também no quintal da tip. do Liberal e na Cambona”.
Revelando que eram comuns as brigas e as mortes nos pastoris, O Pandego conclui que não aconteceu nenhuma cena de violência naquele Natal: “Felizmente o comendador cacete e a infante d. faca não compareceram a tais funções”.
Contrariando O Pandego, dois dias depois (17 de janeiro de 1883) o Orbe informou que houve violência e que “como consequência dos reprovados dramas pastoris foi Elias Nery Santiago ferido com cinco facadas por João Francisco Lopes da Silva. Igualmente houve no Pilar facadas, pancadas que deram lugar a se dispersarem os presépios que para ali tinham ido”. A nota concluiu apelando às autoridades para “suprimir uma folgança de que tem resultado muita prostituição e muitos distúrbios”.
Sete dias depois, o Orbe volta à carga denunciando que o “inocente brinquedo dos presepes, ou bailes pastoris, à rua da Cambona” continuariam a funcionar com a licença da polícia e sob a razão social de Justo & Fonseca.
No dia 31 do mesmo mês, a campanha moralista do jornal O Orbe continuou a combater esse “meio de especulação para seus diretores, e de agradável passatempo para os apologistas das mestras e contramestras”. O jornalista rebatia o texto de um colega de outro jornal que argumentou a impossibilidade da polícia atuar em um evento que era realizado em casas particulares e de portas fechadas.
Uma nota publicada no jornal Gutenberg de 16 de janeiro de 1886, no período considerado ainda de comemorações natalinas do ano anterior, noticia que “Anteontem em uma casa onde funciona uns pastoris, no Poço, deu-se grave conflito, resultando duas mortes, a de Martiniano de tal, e a de Francisco Passos (vulgo Chicó), além de ferimentos em outras pessoas, entre as quais o subdelegado daquela povoação. Um dos feridos, que é um polícia, acha-se em risco de vida”.
O Orbe, em 12 de setembro de 1886, sabendo que naquele mês já começavam os ensaios “do funesto brinquedo denominado bailes pastoris”, lembrava que o bispo diocesano havia proibido “esse escândalo, quando os especuladores o chamavam de presépios, mas a pastoral do digno prelado em vez de ser um freio à paixão desordenada dos que exploram a inocência de donzelas incautas — prostituindo-as, fê-lo redobrar de esforços na inglória faina, mudando apenas o nome do ilícito meio de vida. A polícia prestaria um grande serviço à civilização abolindo esse elemento de desordem. O horroroso assassinato de uma criança em Recife, a carnificina do Poço, nesta capital, e outros fatos, falam bem alto contra tais divertimentos de mau gosto. Providências, snr. dr. Chefe de polícia”.
A 3 de outubro do mesmo ano, o Orbe denunciou os dois endereços onde já estavam acontecendo os ensaios dos bailes pastoris em Maceió — rua Conselheiro Lourenço de Albuquerque e rua Melo Moraes —, destacando que nesses locais já tinham acontecido alguns distúrbios.
No final do século XIX, os jornais já tratavam o festejo como Pastoril, mas continuavam a ser associados à violência, como registrou o Orbe de 27 de outubro de 1899, ao informar que “a polícia anteontem, no bairro da Levada, procedeu as diligências necessárias contra as pessoas que ali transitavam munidos de armas proibidas e que frequentam os Pastoris dos snrs. Orestes e Antônio dos Santos”.
Os citados senhores não gostaram e responderam, em 27 de outubro, ao Gutenberg, que no dia anterior havia expressado as mesmas críticas do Orbe. Oreste Salustiano da Silva e Antônio José dos Santos explicaram que a notícia não era exata e que ela “desabona o divertimento e provoca a atenção das autoridades policiais”. Argumentavam que havia entusiasmo dos espectadores, mas que “tem havido a maior paz e tranquilidade até o presente, com assistência até de autoridades policiais”. Todos eram companheiros e amigos, “aparentando a ideia de partido, para maior calor darem ao brinquedo. Não passa de um convívio de festas”.
Nos primeiros anos do século XX, os pastoris estavam consolidados e aceitos, provavelmente por terem perdido algumas das suas características mais profanas. Uma nota publicada no Gutemberg do dia 6 de janeiro de 1906 anunciava que em Bebedouro haveria “diversas festividades, entre as quais se notam cavalhadas, pastoris, pau de sebo e outras”.
No ano seguinte, no Gutemberg de 30 de outubro, uma nota intitulada “Fandangos e pastoris”, anunciava que “Em diversos pontos da cidade, principalmente nos arrabaldes, estão ensaiando fandangos e pastoris, tradicionais diversões para o Natal”.
Em 17 de dezembro de 1906, o discurso sobre o pastoril era exatamente contrário ao de 25 anos antes. O Gutemberg, ao anunciar as diversões que tinham acontecido no domingo anterior em Bebedouro, destacava que foi uma tarde agradável naquele “bucólico arrabalde da nossa capital, para onde afluem nessa época de festejos, cheganças, pastoris e presépios, tradição ainda viva das épocas coloniais em que floresceram nossos avoengos, as melhores famílias da sociedade maceioense”.
Há registros da permanência dos pastoris profanos no Nordeste do país até meados do século XX.
Pastoril familiar de moças solteiras e honestas
Um texto publicado no jornal Gutenberg de 31 de outubro de 1908 com a assinatura de L. R. expõe como eram os bailes pastoris que provocavam tanta violência.
O Pastoril
Todo respeito é pouco…
O cartaz anuncia que o pastoril é familiar e o diretor da função não cessa de repetir que as pastoras são todas moças solteiras e honestas.
Esperam-se grandes e estupefacientes surpresas: o “velho” Afonso Chochinho promete as melhores pilhérias do seu vasto repertório; a mestra cantará pela milésima vez a sua aplaudida cançoneta “O anel”; a cigana far-se-á ouvir novamente no “Chefe de orquestra”; e, a pedido de diversas famílias, a segunda do azul repetirá ainda o “Mungusá” do “Tim-tim”. É tudo quanto há de mais novo, sem falar em novíssimas “jornadas” que o espalhafatoso programa anuncia.
Vai ser uma noite cheia e o público apreciador desse gênero de diversões baratas e tulmutuosas corresponde aos esforços do diretor, enchendo as cadeiras e as galerias.
***
Já passa de 11 horas.
Um indivíduo de voz esganiçada grita, postado à entrada principal, armado de uma bolsa de onde tira os ingressos e onde recolhe a importância dos mesmos, grita de espaço a espaço:
— Cadeiras a dez tostões, gerais a quinhentos réis!
A função não começa e o público já principia a reclamar:
— Isso não vai hoje?
— Quando é que começa essa “joça”?
— Estou roubado!
— Quero meu “arame”!
— Pastoril de meia-noite, não vou nisso…
Sobe o pano, afinal, apresentando um cenário que pretende passar como vista de bosque.
Afonso Chochinho, um preto com a cara maracajada de goma, farinha de trigo, alvaiade ou coisa que o valha, sai de uma das coxias. Traja calções de belbutina vermelha bastante surrada, um “croisé” velho, dentro do qual caberiam dois corpos do seu, e tem na cabeça, enterrado até as orelhas, um barrete turco.
A entrada deste tipo é acolhida com um sussurro de troça:
— O velho é… gritam alguns espectadores.
E o pobre diabo, a fazer gatimonhas e visagens desenxabidas, dirige-se ao público:
— Meus senhores, a empresa pede desculpa da demora, que foi por “caso” do maestro que agora foi que chegou…
— Muito bem! Bravos do orador! Gritam da plateia.
O orador quer continuar, mas ouve-se fora grande algazarra e muitas vozes protestam:
— Basta! Fora! Venham as ”jornadas”.
A orquestra, composta de uma trompa, um clarineto, um bombardão e um bombo, toma posição no lugar que lhe é destinado à frente do palco e “seu” Juventino assume a regência.
A música infernal ressoa com o estrondo ensurdecedor e as pastoras dão entrada em cena, no meio de aplausos e das chufas dos espectadores.
— Bravos à mestra!
— É sempre ela!
A mestra já tem idade para ser mãe de família; a cigana também não é criança, e as demais andam por isto mesmo… Nenhuma é positivamente bonita, mas estão todas bem vestidas e enfeitadas, predominando nas “toilettes” de saias curtas e decotes as cores dos dois tradicionais partidos ou cordões — azul e encarnado.
Começam as jornadas.
Oh! Que festa! Oh! Que prazer! Oh! Que prazer sem igual!
Vivam nossas companheiras, viva nosso pessoal!
Uma dança cheia de saracoteamentos voluptuosos e de bamboleios exagerados segue o ritmo das cantigas e arranca da barulhenta plateia os mais calorosos aplausos:
— Bravos à cigana!
— Ahi, ferrinho!
— Bravos à mestra!
— Quebra, mulata!
— Bravos à contramestra!
— Machuca!
***
Mais tarde começam as arrematações. O velho Afonso Chochinho é o leiloeiro:
— Negrada, olha o cravo da mestra… Abram o preço!
— Mil réis para ela mesma, diz um espectador.
— Mil réis, repercute o velho aflautando a voz.
— E duzentos, para a cigana, grita outro espectador.
O partidário da mestra cobre o lanço:
— Mil e quinhentos!
O velho sapateia no tablado, repetindo:
— Mil e quinhentos… mil e quinhentos…
— Pra quem é, meu velho? Indaga uma voz.
— É pra mestra.
— Bem empregado!
— Em quanto está?
— Em mil e quinhentos.
— Quinze tostões para a mesma.
Afonso Chochinho continua a apregoar:
— Mil e quinhentos.
— Dois mil réis… dois mil réis… prossegue o velho. Partidário da mestra, cadê você!
— É chôco! gritam das galerias.
Há um certo reboliço e o Zé Gomes, o inspetor do quarteirão, intervém.
— Aquieta, acomoda…
— Não tem quem dê mais? continua o velho, vou entregar… Dou-lhe uma, dou-lhe duas… e nessa voltinha que eu dou…
Executa um giro num pé só e dirige-se ao homem do bombo:
— Seu mestre…
Este vibra forte pancada com a maceta.
Está terminada a arrematação e a pastora vem à cena receber a importância, dançando antes uma espécie de tango.
Entretanto o Zé Gomes não tinha conseguido apaziguar de todo a rixa começada fora entre o partidário da mestra e o outro espectador que o provocara.
O diretor da função procura por sua vez fazer valer a sua autoridade e é igualmente desatendido.
Fecha-se, então, o tempo. Uns fogem do local do tumulto, outros procuram aproximar-se. Há correria e gritos; cacetadas a esmo, murros, pontapés e pisadelas. As pequenas barracas onde se vendem café e cachaça são viradas e os copos, as garrafas e as xicaras servem de projetis. A polícia, por sua vez, toma parte na sarrafuscada, distribuindo panaços de facão nas pessoas que fogem e que de modo algum têm responsabilidade na perturbação da ordem.
Num dado momento, o diretor sobe ao tablado e berra procurando dominar a algazarra:
— Senhores, calma! Vejam que isso é um pastoril familiar! As pastoras são todas moças solteiras e honestas!
Nessa ocasião a cigana entra em cena fugindo assustada, porque o barulho já se propagou aos bastidores, e está a ponto de precipitar-se no palco, quando uma voz de criança lhe brada:
— Mamãe, não salte; não salte que você cai!
Era um pequeno de 7 ou 8 anos que se apega às saias da assustadiça pastora.
Gostei bastante dessa informação, que era desconhecia para mim. Havia um pastoril profano, de que me falaram, que era o dos estudantes. Mas o das prostitutas, eu ignorava. Cheguei a participar de um no Capuchinhos, em que fui a última pastora do encarnado. Creio que foi em 1957. Abraço.
Desconhecia essa história de pastoril profano pois dancei pastoril da Dona Nair Ribeiro um dos melhores em Alagoas vc nos anos 60 ganhou prêmios em Racife muito lindo era lá no bairro vc do Prado