O antigo Mercado Modelo de Maceió
Trecho do livro livro Corrupio Memórias 2, de 1992
Ednor Bittencourt
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O prédio do Mercado Velho, chamado, na época, Mercado Modelo, apresentava um belo estilo colonial, com espessas paredes, fortes grades e portões de ferro presos em bonitos portais em arco.
[Foi construído pelo presidente da Província João Capistrano Bandeira de Melo e inaugurado em 1º de novembro de 1848. Em 1902 foi praticamente reconstruído pelo intende José de Barros Wanderley de Mendonça]. Nota da Editoria.
Internamente, o espaço era dividido em várias seções: dos cerealistas, dos verdureiros, dos açougueiros, dos peixeiros, dos marisqueiros, dos masseiros e dos fruteiros. Havia também o setor de miudezas, tabacarias, ferragens e pequenas lojas de tecidos e sapatos.
Todas elas procuravam manter uma seleta freguesia, guardando o que havia de melhor para seus assíduos frequentadores.
Mamãe contava com fornecedores certos, na lida diária de aquisição dos gêneros de primeira necessidade. Nosso açougueiro, seu Oscar, era baixote e gordo. biotipo clássico do brevilíneo e apresentava o fácies luético, com nariz em sela.
O peixeiro, Negro Raimundo, com voz anfórica e tórax em batel, guardava carapeba, tamanho médio, por ser mais gostosa.
Coelhinho, “doublé” de comerciante e respeitável pai de santo, não esquecia de reservar, para a pontual freguesa, os melhores tipos de camarão, pitu, ostra, sururu, siri de coral, boca de uçá e caranguejo.
A magricela d. Maroquinha fornecia goma e massa puba para a dedicada Estefânia fazer deliciosos cuscuz, tapioca, pé-de-moleque e beiju.
As verduras, frutas, legumes, milho, coco, macaxeira, inhame. batata doce, feijão e farinha de mandioca eram comprados aos domingos, pela manhã, na movimentada feira do cais da Boca da Levada.
Durante nossa permanência no mercado, sentíamos o odor característico das seções visitadas, ao contrário do que se observava no Mercado Novo e é visto no atual, o da Produção, onde os frequentadores usam botas por causa da mistura de lixo e lama, com lenço no nariz, para suportar a catinga. Essa cena era observada quando se passava pelo mesmo local. antes da badalada “grande obra”, e o terreno era usado como o maior depósito de lixo da cidade, o célebre lixo da Levada.
As miudezas e perfumarias de uso corriqueiro eram adquiridas no Bazar das Crianças, filial da Casa Síria, de Virgílio Saleme, que também vendia brinquedos.
A feira não terminava no Mercado, e sim na Casa Taveiros, situada defronte, na rua do Alecrim [atual rua Barão de Alagoas]. Lá comprávamos, uma vez por semana, manteiga Cadeado, um bom charque, uma réstia de cebola e alho, especiarias de boa qualidade e bacalhau importado.
Uma parte deste último produto, oriundo da Noruega e acondicionado em pequenas barricas de madeira, era distribuída nas manhãs das sextas-feiras, entre os mendigos que passavam lá por casa.
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O mercado apresentava duas frentes. Uma olhava para um grande pátio, limitado na frente pelo trecho da rua Augusta, compreendido entre o sobrado do dr. Eduardo Porto e a residência do dr. Chaves.
No lado da rua da Floresta [atual rua Fernandes de Barros], ocupado hoje pelo Colégio São José, existia um grande sítio, onde o prof. Higino Belo instalara seu conceituado Colégio 11 de Janeiro, em homenagem ao dia de seu aniversário. E, no lado da rua do Alecrim, a Igreja de São Benedito.
Nele existia o pedestal de um antigo cruzeiro e era o local para a venda de madeira para construção, trazida em carro de boi. Perto da residência do dr. Chaves havia um banco, que era usado para um costumeiro bate-papo dos Chaves, Porto e Montenegro.
Esse pátio se engalanava nos saudosos dias festivos dedicados ao milagroso santo negro. No oitão da igreja guardavam o mastro, que era erigido na festa para hasteamento da bandeira. [Foi conhecido também como Praça São Benedito].
Era, também, o local de plantão de carregadores de Maceió, inclusive carroceiros. Quem precisasse desse tipo de serviço, não perdia o precioso tempo indo até lá. A sua maioria era constituída de negros.
Os carregadores com a rodilha debaixo do braço e os carroceiros com o relho no ombro, sentavam sobre o mastro deitado; enquanto as burras comiam grama.
Aguardavam o freguês determinado pelo respeitável líder do grupo, o velho conhecido da família. negro Liberato, filho de escravos forros.
Atuava como um verdadeiro presidente de sindicato, coisa que não existia naquela época. Antes. procurava saber, detalhadamente, o tipo de tarefa a ser realizada. escolhendo, a dedo, o elemento capaz de executá-la com eficiência, determinando o preço a ser cobrado.
A limpeza da casa, do quintal e as mudanças da família ficavam a seu encargo. desde o tempo do vovô Pempema. Negro. baixo e sorridente, usava boné, parecendo o Grande Otelo, na cor, físico e atitudes.
Sabia envolver, com maestria, colegas e clientes. O que mais impressionava numa mudança era o carregamento do piano, cuja exigência do proprietário consistia na afinação do precioso instrumento.
E Liberato nisso era doutor. Escolhia seis negros fortes e da mesma altura que o carregavam cuidadosamente. Durante o trajeto. a marcha tinha que ser cadenciada, para não desafiná-lo. Liberato acompanhava, da calçada, o carregamento feito no leito da rua, cantando em voz alta:
— Ói o toco no caminho!
Em coro. os carregadores respondiam:
— Alevanta o pé!
Seguindo esse ritmo, o móvel parecia que continuava em terra firme, isento de qualquer movimento vibratório, e chegava no lugar escolhido com o som do jeito que saiu.
Já velhinho, Liberato fazia questão de carregar até a Estação Central, a bagagem utilizada em minhas viagens para o Recife. Cheio de entusiasmo, sempre externava o desejo de me ver “douto”, o que não conseguiu, pois a inexorável morte o ceifou antes que eu concluísse o curso universitário. Foi uma pena e, se vivo estivesse, o fiel amigo teria sido um dos convidados, para as comemorações programadas pela família.
A outra entrada do mercado ficava ao lado da rua 1º de Março [atual av. Moreira Lima], no trecho compreendido entre a Loja Favorita, do seu Pedro Vieira, e o afamado sobrado da Madalena (esquina da 1º de Março com a rua da Floresta [atual rua Fernandes de Barros]).
Defronte, onde é hoje o Ginásio Estadual [atualmente Restaurante Popular], existia um grande pátio contendo seculares e frondosas tamarineiras.
Neste local e olhando para a rua do Alecrim, estava instalado o badalado quiosque Polo Norte, do seu Zanotti, cujo emblema era um grande urso branco sentado num iceberg.
Pintado de azul claro, seu interior chamava a atenção de adultos e crianças. Parecia um mafuá. Com as paredes revestidas de espelhos, pequenas lâmpadas de várias cores piscavam, iluminando a passagem da gostosa soda através de um longo tubo de vidro, que percorria todo o salão, do depósito até uma bonita torneira existente no balcão de mármore.
Era lá onde minha turminha saboreava a inigualável “gasosa do seu Zanotti”, após as estripulias e a pelada da Praça da Cadeia. A relação dos refrescos abrangia todas as frutas, do tamarindo existente na praça à importada maçã. Os da minha preferência eram os de groselha e anis.
Pouco tempo depois o jeitoso comerciante italiano, que vendia também cigarros, mudou de local, indo para a rua do Livramento, junto ao Ponto Central, do Cupertino, onde continuou explorando o mesmo ramo comercial, tabacaria e venda de refrescos, até a sua morte.
A mudança fora provocada por um incêndio que destruiu, totalmente, o quiosque. E a causa do sinistro constituiu na presença permanente de uma corda pendurada em uma das paredes, com uma das pontas queimando, para acender os cigarros dos fregueses. Zanotti não se emendara, mantendo no novo local o mesmo tipo de acendedor.
O mercado possuía mais duas entradas laterais, uma na Floresta e outra na Alecrim. Os fundos do prolongamento da rua do Livramento (oitão do Teatro Deodoro) davam para esse pátio. Começava na esquina com a rua do Alecrim, onde se encontrava a casa comercial de Fausto Feitosa, rei do anedotário alagoano, e que era seguida de uma fileira de pequenas casas de pasto, terminando no palacete da família Florêncio, hoje Clube Português [atualmente um shopping popular].
Esses pequenos e sórdidos restaurantes acompanhavam o mesmo estilo do existente num velho coreto, localizado no centro da praça. Todos eles eram conhecidos como frege-moscas, em face da existência do inseto díptero que lhes dera o nome. Era grande o número desse veículo de vários agentes patológicos, um grande e respeitável mosquedo.
E, para combater a temível moscaria, os proprietários colocavam, nas calçadas, o “pega-moscas” vendido pelo seu Taveiros e que consistia de uma folha de jornal ou revista untada com uma mistura de óleo e breu. Os indesejáveis insetos eram por ele atraídos pelo odor desprendido e, quando pousavam, adeus viola. De lá jamais saíam, morrendo aos montes.
No lado da rua da Floresta, o largo se limitava com várias residências ainda hoje lá existentes e de propriedade do lojista e “pão-duro” seu Almeida, pai do não menos sovina Pinguim.
Ficavam localizadas entre a Padaria Capricho e a Refinaria Ideal. Foi na casa 21 que moramos alguns anos da década de 30.
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Em frente a nossa casa, debaixo de uma frondosa tamarineira, nasceu a afamada Feira do Passarinho, que no início era utilizada apenas para o comércio de pássaros, cantores, de briga e de plumagem rara.
Logo depois se transformara no ponto de encontro entre vendedores e compradores de tudo que se podia imaginar: relógios, móveis, roupas, ferramentas, armas, peças de automóveis e bicicletas.
Havia também o comércio de cães, gatos, carneiros, bodes, porcos, cotias, veados, pacas, galinhas, patos, perus, pombos, gansos, pavões e galos de briga. Era realizada aos domingos, pela manhã.
Durante a comercialização, o vozeiro era pra valer, com os componentes gritando: vende-se, compra-se e cambeia-se! A frequência era grande. Plínio Fonseca e Aloísio Calheiros eram “habitues” procurando adquirir peças para os seus badalados calhambeques, Essex e Nash.
Aloísio procurava, também, um bom galo de briga, seu grande “hobby”. Neste setor contava com a companhia de Carlos Lobo e Hidenburgo Lopes, apaixonados pelas rinhas de galo e canário.
A família Leão mantinha urna equipe encarregada da compra de móveis antigos, na sua maioria de jacarandá.
Eram vendidos, ainda, imagens de santos barrocos e estatuetas no estilo rococó, candelabros, belos candeeiros belgas, entre outras peças de inestimável valor artístico.
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Após a lamentável demolição do artístico e secular Mercado Modelo, a badalada, honesta e dominical Feira do Passarinho foi transferida para as margens do Canal da Levada, defronte do malfadado Mercado Novo. [Foi demolido em 1937 no governo de Osman Loureiro para dar lugar ao Instituto de Educação].
Atualmente [1992], funciona nos fundos do Colégio São José e foi transformada em ponto de concentração de arrombadores, descuidistas e intrujões, onde diariamente negociam produtos roubados, desafiando acintosamente as pessoas lesadas, e o que é pior, nas barbas da polícia.
O que era puro transformou-se em um antro de perdição, com mulheres e crianças tomando parte ativa na inaceitável contravenção penal, aliada à promiscuidade e ao lixo.
Sensacional.
Excelente texto de Dr. Ednor, grade amigo de meu pai e médico da família.
Ticianeli
Muito bom seu trabalho de resgate das nossas histórias e memórias. Nossos conterrâneos são carentes desses conhecimentos para terem mais respeito pela nossa terra. Continue a nos brindar com essas maravilhas
Sou Neto do Dr. Chaves. Minha mãe chamava-se Celina, filha mais velha e sempre contou boas recordações da Praça São Benedito.
Que história maravilhosa! Me encanta muito essas lembranças da minha terra, contada com tão ricos detalhes. Uma pena que nossos governos só se preocuparam em destruir tantas coisas lindas, como por exemplo, nossas praças; e até mesmo os nomes das nossas ruas, outrora tão adequadamente românticos.
Que maravilha de conteúdo e detalhes. É como se eu estivesse vivenciando essa época. É muito triste termos um governo desinteressado em coisas tão importantes.