Crise da meia sola em 1988
Entre os sapateiros, a derrubada começou com a invasão das japonesas

*Publicado na Revista Última Palavra de 22 de junho de 1988
“Na baixa do sapateiro/eu encontrei um dia/a morena mais frajola da Bahia…”. Ao contrário da música de Dorival Caymi, a profissão e o ambiente de trabalho não são mais aqueles dos velhos tempos, onde senhores e senhoras de terno de linho e vestidos coloridos frequentavam as oficinas para consertar seus sapatos de bico fino e saltos tipo Luís XV.
Os tempos são outros. Em Maceió, por exemplo, há casos em que barracas de conserto de sapatos servem até de ponto atravessador de drogas, as famosas “bocas de fumo“.
— “Desde o tempo da construção do Mercado da Produção, até maconha tivemos de guardar, pois ali a polícia não tinha vez, os desordeiros faziam pressão e viviam ameaçando”. Hoje, junto com os sapatos, foram misturados outros produtos e muitos sobrevivem dessa venda ilegal. Mas nem todo mundo quer comprar, pois a venda é escondida.
A revelação é do sapateiro José Tavares Filho, 51 anos de profissão, que ressalta no entanto não mais transar esse tipo de coisa, nem aponta onde são essas prováveis “bocas”. Hoje, Tavares vive no maior sufoco, em sua oficina na rua Ladislau Neto e com 64 anos diz que nunca passou por uma crise igual a esta.
“Na década de 50 a gente passava da meia-noite trabalhando, com a casa cheia de serviço. Agora, principalmente depois do Plano Cruzado, a coisa está preta. Às quatro da tarde não temos mais nada para fazer. O Plano Cruzado arruinou nossa profissão, mas a culpa mesmo é do custo de vida, pois o dinheiro que sobra da população não pode ser gasto à toa”, desabafa.
Pequenos serviços
Meia sola, solado completo, engraxar, pintar, brochar, calçar e principalmente repor salteira de sapatos femininos. Estes pequenos serviços, que variam de Cz$ 200,00 até Cz$ 500, é que ocupam a maior parte do tempo da maioria do mercado de trabalho dos sapateiros.
Eles se concentram em maior parte no Mercado da Produção, na Praça do Pirulito, no Pontal da Barra, no Beco de São José e nos bairros periféricos de Maceió. Quase sempre estabelecidos em barracas comuns, sujeitos a pequenos roubos e às chuvas de inverno.
Outro problema apontado pelos sapateiros é a compra de material. Além de ter um preço caríssimo, existe a completa falta de apoio de comerciantes do setor em Maceió. Tanto a sola, a cola, como outros materiais de grande utilidade são comprados em outras cidades, como Recife e Salvador.
“É a única maneira de fugir da exploração dos lojistas locais, como também repassar para o freguês um preço conveniente”, afirma outro velho sapateiro, Mestre Antônio Juguta, o “Coronel”, que apesar de sua avançada idade, 72 anos, ainda trabalha juntamente com seu filho em uma das mais conhecidas oficinas de conserto na rua São José.
Mestre Juguta, que hoje divide seu tempo entre uma ida à oficina de seu filho e o trago numa “branquinha” no Bar da Nete, diz que já consertou sapatos de gente famosa e políticos como o ex-governador Muniz Falcão e o general de Exército, Mário Lima.
Hoje, aposentado pelas Forças Armadas, ele diz que “apesar da coisa está meio ruim, temos de rebolar para ganhar o pão de cada dia”. Juguta revela também que naqueles tempos a cola era de fabricação caseira, misturando gasolina a crepe soda.
Outro material de alta qualidade que acabou no mercado é o neolito, um tipo de borracha altamente durável fabricado pela Goodyear, até o final dos anos 60. “Não temos mais o neolito, mas de qualquer maneira quando você vai comprar tem de dizer o nome do produto pois os comerciantes até hoje vendem como se fosse o próprio. No entanto, o que usamos é um material de baixa qualidade, uma borra da Petrobrás, que com um mês de uso já está toda acabada no solado”, diz José Tavares Filho.
Invasão Japonesa
A sinceridade do sapateiro José Tavares chega ao ponto de ele aconselhar, a quem puder, a compra de sapato novo, em vez de consertar, pois o preço não está fácil. Para a troca de uma salteira de mulher, ele está cobrando Cz$ 1.200 e um solado inteiro de sapato masculino o preço sobe para Cz$ 2.500.
Desde 1937, quando começou como aprendiz, José Tavares diz que só parou um mês, “pois tudo no sertão estava parado”. Outro fator que para ele contribuiu para o extermínio da profissão foi a invasão do mercado pelas famosas alpercatas havaianas. “O grande mercado dos sapateiros nordestinos era a fabricação de alpargatas de couro, tamancos e sandálias lepe-lepe. Mas, nossa derrubada começou com a entrada das sandálias americanas, chamadas de japonesas“.
Quanto ao mercado ascendente do tênis, Tavares afirma que este não é grande problema, pois existem sapateiros que consertam também qualquer tipo de tênis. Para ele, o tênis acabou foi com os fabricantes e vendedores de sapatos.
Apesar das desilusões com a profissão, Tavares diz que vai continuar resistindo no ramo. “Para começar tenho que dizer que vou morrer trabalhando com sapato, pois a minha leitura não dá nem para ser fiscal da prefeitura”.
Para tentar suprir a falta de mercado e ajudar no pagamento do aluguel da espaçosa casa em que trabalha, o sapateiro José Tavares tem a colaboração de outro profissional que aluga parte de seu local de trabalho, para fazer chaves na hora.
Antes do Plano Cruzado, ele chegava a ganhar 10 mil cruzados por semana e “passava folgado”. Hoje anda aperreado com o novo aumento do aluguel, e a única solução para ele é deixar sua casa no bairro do Jacintinho e morar no mesmo local de trabalho.
Mercado em baixa
Outro local onde o trabalho de recauchutagem de solados está morrendo é no Mercado da Produção. Apesar de ser um local onde transitam geralmente pessoas de baixo poder aquisitivo e que de tanto “bater perna” atrás de empregos que nunca encontram, e terem a sola do sapato sempre furada de tanto andar, o mercado está em baixa, como explica Josué Raimundo da Silva, vivendo numa cadeira de rodas e tomando uma lapada juntamente com outros companheiros de profissão: “O mercado está derrubado, os consertos nunca aparecem, o material está caro. Ninguém conserta sapato, mesmo quando a sola descola, o que fazemos aqui é brochear e calçar, a preços de Cz$ 100”, resume Raimundo, frisando que essa é a situação da maioria dos sapateiros do mercado.
Eraldo, sapateiro e crente da Igreja Pentecostal, que tem uma pequena banca junto do trilho, diz que nada está bem, mas que tem de viver de qualquer maneira. Há dez anos na profissão, ele sustenta uma família com quatro filhos e não pretende abandonar seu trabalho. “Não tem chuva nem concorrência nenhuma que afaste minha disposição de ser sapateiro, pois é uma coisa que sei fazer bem e gosto de fazer”, afirma Eraldo.
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