O Marechal Deodoro de Romeu de Avelar

Quadro Proclamação da República, de 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto

Retrato de Deodoro da Fonseca utilizado na Ilustração Brasileira de setembro de 1946

Deodoro

Romeu de Avelar

Já não é cedo para fazer-se um estudo sincero e definitivo sobre a figura militar e histórica de Deodoro da Fonseca. Nada de falsas comparações, polpudas de estilo retórico que antes ofuscam que agradam o herói. Rui Barbosa, no calor da proclamação da República, comparou-o a Washington. Deodoro e Washington foram, positivamente, dessemelhantes no moral, no intelectual e até no físico.

Tal comparação, por isso, nos parece absurda partida de um homem de tanta responsabilidade e tão familiarizado com os livros ingleses e norte-americanos da época. Por mais que pareça um paradoxo, o antigo agricultor de Mount Vernon nascera parlamentar, e a sua carreira desde oficial de milícias, coronel de voluntários, deputado ao Congresso de Filadélfia, general em chefe dos revolucionários, até Presidente da República americana, não oferece o mais rápido paralelo com a vida guerreira e de sacrifícios do bravo e desambicioso caudilho alagoano.

Deodoro não pode entrar para a História com essa túnica emprestada e complicada, que não lhe cabe. Ele se compara a si mesmo. Foi grande como Caxias, como Osório, e como Floriano, nos diferentes setores de sua vida. Era sobretudo, um gênio republicano, porque o Exército. de que era ídolo, sonhara sempre com um Brasil sem rei e sem escravos.

Marechal Floriano Peixoto

Benjamin Constant foi, de fato, o preparador teórico do golpe de 15 de novembro, mas o problema da República estava circunscrito à pessoa do seu futuro proclamador, que criou o seu nome, sozinho, nos banhados do Paraguai. Benjamin tinha o apoio dos seus cadetes filosóficos, Deodoro. a fé dos republicanos.

A monarquia caminhava com seus próprios pés para o ocaso. D. Pedro II, diabético e desiludido dos seus áulicos, estava à morte. A ameaça de um terceiro reinado acendia maior chama cívica no coração dos antimonarquistas, e tal excitação enchia de terror até os próprios ministros da Corte.

O indeciso e valetudinário Bragança não tinha descendência por linha varonil e, fatalmente, a coroa do terceiro reinado iria cingir a cabeça de uma mulher que, embora virtuosa e mais ou menos inteligente, era, contudo, casada com o estrangeiro mais impopular da época — o conde d’Eu, “o francês”, como era conhecido.

Dar o cetro aos jovens filhos de D. Isabel e de D. LeopoIdina? Seria outra derrocada, pois todos eram jovens demais e sem qualidades especiais para tão alto posto.

O momento, como se vê, era atordoador, e difícil a equação do trono. O fator, também, da abolição, oscilara muito a coroa na cabeça já trêmula do tímido velhinho. Precipitada como foi, provocou a crise da indústria e injetou ódios surdos nos chefes das famílias patriarcais que contavam com o braço incansável do negro nas suas lavouras.

Deodoro entrara como capitão na guerra do Paraguai e. voltava, depois de cinco anos, como coronel, carregado de medalhas, marcado de cicatrizes e cercado de respeito. Conservava uma admirativa amizade ao Imperador. Achava-o um grande homem, um justo, e mesmo um sábio — coisa que aliás nunca foi.

Essa sua admiração, porém, pelo velho monarca, não queria dizer que o brioso militar fosse monarquista.

Deodoro era um fascinado pela farda e amava o seu Exército acima de tudo.

O povo viu nele um predestinado. Cercou-o, insuflando-lhe sua vontade.

Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Preto

O antimilitarismo de Ouro Preto. Defensor diabólico e intransigente do trono, talvez tenha acordado em Deodoro e nos seus companheiros de farda a reação rápida contra a Monarquia. Dizem que o Exército não estava inteiramente com Deodoro. Não é verdade. Deodoro foi o anjo tutelar de sua classe, porque a defendeu incondicionalmente até os seus últimos dias. A carta escrita a Cotegipe, que redundou na sua demissão de comandante das armas do Rio Grande do Sul, é o mais perfeito atestado do que era para ele a figura sagrada do Exército.

Disputado pelos liberais e conservadores, no momento não havia outro para substituí-lo. Oliveira Viana, servindo-se de uma erudita classificação do biologista Grasset, chamou-lhe “tipo gregário” — isto é, firme e resoluto às vezes, mas que se “laisse très facilement désagreger et influencer par la contagion des voisins“. [“deixa facilmente desagregar e influenciar pelo contágio dos vizinhos“].

Porque ponderou demais antes de aplicar o golpe de 15 de Novembro? Mas tinha de ser assim. Deodoro era, sobretudo, um emotivo. Possuía uma dívida de gratidão com o Imperador. Vacilou, como era humano, na brutalidade do golpe. A pátria, porém, exigia o intenso sacrifício. E ele então foi mais uma vez a favor da sua pátria, contra os imperativos do seu coração como sempre o fizera na guerra do Paraguai quando tombava um irmão, mas que o dever era avançar.

Não se diga que, sem Glicério, Benjamin e Quintino, a República seria uma tentativa abortícia e que somente a inimizade ferrenha de Deodoro a Silveira Martins o impelira contra a Monarquia. Deodoro não era rancoroso nem vingativo. Como todo temperamento sentimental, sim, impetuoso, desassombrado e capaz de heroísmos sobre-humanos. Mas caminhemos para o tablado dos acontecimentos.

Já governava o Paço o médico do Imperador. O deputado João Penido dizia no Parlamento: “Hoje S. M. reina, mas não governa. Diz-se, e eu tenho a coragem de repetir sob minha responsabilidade, que o Imperador de fato é o sr. Conde do Mota Maia!”

Ou o seu médico ou Ouro Preto — o que é mais provável — era o mentor do romântico e achacado Monarca, que então contava 64 anos de idade.

Conde D’Eu

A Monarquia, como se vê, abria a sua própria sepultura. Deodoro, então, deu-lhe o tiro de misericórdia: mandou garantir e embarcar a família real dentro de 24 horas.

O Imperador, ingenuamente reclamou não era negro fugido para embarcar daquela maneira. Mas embarcou e teve a triste decepção de não ver os seus “ferrenhos monarquistas” no cais à hora amarga do seu último adeus é terra onde nascera e que tanto amava.

Deodoro assumiu a presidência da República sem propósitos de reformador.

Num período como aquele, tumultuário, de ódios, traições e oportunismos, que poderia ele solidificar? Já os descontentes e ambiciosos começavam a derramar filtros venenosos no coração da jovem república. Servem-se de tudo. Procuram atirar Floriano contra o seu patrício. E parece que conseguiram o intento, pois Floriano se torna, mais enigmático, fechando os olhos até à mazorca que eles preparavam contra o governo do ínclito proclamador.

Deodoro, porém. compreende a insidia e, com duas penadas, dissolve as Câmaras, manda prender Ouro Preto que era a alma danada de tudo, e decreta o estado de sitio para o Rio e Niterói. “Contemporizei até agora!” — dizia no enérgico manifesto que lançara ao povo. — “Se na crise em que se encontra a República eu não apelasse para o povo, seria um traidor! Brasileiros! A 15 de novembro, achei-me ao vosso lado para depor a Monarquia. Hoje, aqui estou para depor a anarquia.”

Seu intuito era governar com a Constituição. Mas já era tarde. A casa de Floriano tornara-se ponto de convergência dos inimigos de Deodoro.

Mariana Cecília de Sousa Meirelles da Fonseca, esposa de Deodoro da Fonseca

Custódio de Mello aderira ao movimento e assestava as bocas de fogo dos seus navios contra o palácio do Itamarati, onde então funcionava o governo Provisório.

Deodoro, positivamente, não contava mais com Floriano, mas contava com um forte elemento de reação, e não lhe faltaram coragem e férrea energia para abafar os tumultuosos quando e como o quisesse. Ele, porém, era um efetivo e brioso militar. Qualquer gesto seu de comando redundaria naturalmente numa terrível guerra civil. E ele a venceria. Mas, com surpresa de todos, manda chamar Floriano e, impetuoso como sempre, entrega-lhe o governo, recolhendo-se imediatamente à vida privada.

Ato sublime de abnegação! Este gesto de Deodoro deixou traçado nas páginas da República brasileira o emblema imorredouro da dignidade e do patriotismo do Exército Brasileiro.

*Publicado originalmente na Revista Ilustração Brasileira de setembro de 1946.

1 Comentário on O Marechal Deodoro de Romeu de Avelar

  1. Romeu de Avelar escrevia uma coluna nesta revista, “Ilustração Brasileira”, nos anos 1940?
    Era uma revista carioca? ( Nesta época , Romeu já residia no Rio pois sua filha mais nova nasceu lá em 1941…)
    –Isabela , neta de Romeu de Avelar

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