O Marechal Deodoro de Romeu de Avelar
Deodoro
Romeu de Avelar
Já não é cedo para fazer-se um estudo sincero e definitivo sobre a figura militar e histórica de Deodoro da Fonseca. Nada de falsas comparações, polpudas de estilo retórico que antes ofuscam que agradam o herói. Rui Barbosa, no calor da proclamação da República, comparou-o a Washington. Deodoro e Washington foram, positivamente, dessemelhantes no moral, no intelectual e até no físico.
Tal comparação, por isso, nos parece absurda partida de um homem de tanta responsabilidade e tão familiarizado com os livros ingleses e norte-americanos da época. Por mais que pareça um paradoxo, o antigo agricultor de Mount Vernon nascera parlamentar, e a sua carreira desde oficial de milícias, coronel de voluntários, deputado ao Congresso de Filadélfia, general em chefe dos revolucionários, até Presidente da República americana, não oferece o mais rápido paralelo com a vida guerreira e de sacrifícios do bravo e desambicioso caudilho alagoano.
Deodoro não pode entrar para a História com essa túnica emprestada e complicada, que não lhe cabe. Ele se compara a si mesmo. Foi grande como Caxias, como Osório, e como Floriano, nos diferentes setores de sua vida. Era sobretudo, um gênio republicano, porque o Exército. de que era ídolo, sonhara sempre com um Brasil sem rei e sem escravos.
Benjamin Constant foi, de fato, o preparador teórico do golpe de 15 de novembro, mas o problema da República estava circunscrito à pessoa do seu futuro proclamador, que criou o seu nome, sozinho, nos banhados do Paraguai. Benjamin tinha o apoio dos seus cadetes filosóficos, Deodoro. a fé dos republicanos.
A monarquia caminhava com seus próprios pés para o ocaso. D. Pedro II, diabético e desiludido dos seus áulicos, estava à morte. A ameaça de um terceiro reinado acendia maior chama cívica no coração dos antimonarquistas, e tal excitação enchia de terror até os próprios ministros da Corte.
O indeciso e valetudinário Bragança não tinha descendência por linha varonil e, fatalmente, a coroa do terceiro reinado iria cingir a cabeça de uma mulher que, embora virtuosa e mais ou menos inteligente, era, contudo, casada com o estrangeiro mais impopular da época — o conde d’Eu, “o francês”, como era conhecido.
Dar o cetro aos jovens filhos de D. Isabel e de D. LeopoIdina? Seria outra derrocada, pois todos eram jovens demais e sem qualidades especiais para tão alto posto.
O momento, como se vê, era atordoador, e difícil a equação do trono. O fator, também, da abolição, oscilara muito a coroa na cabeça já trêmula do tímido velhinho. Precipitada como foi, provocou a crise da indústria e injetou ódios surdos nos chefes das famílias patriarcais que contavam com o braço incansável do negro nas suas lavouras.
Deodoro entrara como capitão na guerra do Paraguai e. voltava, depois de cinco anos, como coronel, carregado de medalhas, marcado de cicatrizes e cercado de respeito. Conservava uma admirativa amizade ao Imperador. Achava-o um grande homem, um justo, e mesmo um sábio — coisa que aliás nunca foi.
Essa sua admiração, porém, pelo velho monarca, não queria dizer que o brioso militar fosse monarquista.
Deodoro era um fascinado pela farda e amava o seu Exército acima de tudo.
O povo viu nele um predestinado. Cercou-o, insuflando-lhe sua vontade.
O antimilitarismo de Ouro Preto. Defensor diabólico e intransigente do trono, talvez tenha acordado em Deodoro e nos seus companheiros de farda a reação rápida contra a Monarquia. Dizem que o Exército não estava inteiramente com Deodoro. Não é verdade. Deodoro foi o anjo tutelar de sua classe, porque a defendeu incondicionalmente até os seus últimos dias. A carta escrita a Cotegipe, que redundou na sua demissão de comandante das armas do Rio Grande do Sul, é o mais perfeito atestado do que era para ele a figura sagrada do Exército.
Disputado pelos liberais e conservadores, no momento não havia outro para substituí-lo. Oliveira Viana, servindo-se de uma erudita classificação do biologista Grasset, chamou-lhe “tipo gregário” — isto é, firme e resoluto às vezes, mas que se “laisse très facilement désagreger et influencer par la contagion des voisins“. [“deixa facilmente desagregar e influenciar pelo contágio dos vizinhos“].
Porque ponderou demais antes de aplicar o golpe de 15 de Novembro? Mas tinha de ser assim. Deodoro era, sobretudo, um emotivo. Possuía uma dívida de gratidão com o Imperador. Vacilou, como era humano, na brutalidade do golpe. A pátria, porém, exigia o intenso sacrifício. E ele então foi mais uma vez a favor da sua pátria, contra os imperativos do seu coração como sempre o fizera na guerra do Paraguai quando tombava um irmão, mas que o dever era avançar.
Não se diga que, sem Glicério, Benjamin e Quintino, a República seria uma tentativa abortícia e que somente a inimizade ferrenha de Deodoro a Silveira Martins o impelira contra a Monarquia. Deodoro não era rancoroso nem vingativo. Como todo temperamento sentimental, sim, impetuoso, desassombrado e capaz de heroísmos sobre-humanos. Mas caminhemos para o tablado dos acontecimentos.
Já governava o Paço o médico do Imperador. O deputado João Penido dizia no Parlamento: “Hoje S. M. reina, mas não governa. Diz-se, e eu tenho a coragem de repetir sob minha responsabilidade, que o Imperador de fato é o sr. Conde do Mota Maia!”
Ou o seu médico ou Ouro Preto — o que é mais provável — era o mentor do romântico e achacado Monarca, que então contava 64 anos de idade.
A Monarquia, como se vê, abria a sua própria sepultura. Deodoro, então, deu-lhe o tiro de misericórdia: mandou garantir e embarcar a família real dentro de 24 horas.
O Imperador, ingenuamente reclamou não era negro fugido para embarcar daquela maneira. Mas embarcou e teve a triste decepção de não ver os seus “ferrenhos monarquistas” no cais à hora amarga do seu último adeus é terra onde nascera e que tanto amava.
Deodoro assumiu a presidência da República sem propósitos de reformador.
Num período como aquele, tumultuário, de ódios, traições e oportunismos, que poderia ele solidificar? Já os descontentes e ambiciosos começavam a derramar filtros venenosos no coração da jovem república. Servem-se de tudo. Procuram atirar Floriano contra o seu patrício. E parece que conseguiram o intento, pois Floriano se torna, mais enigmático, fechando os olhos até à mazorca que eles preparavam contra o governo do ínclito proclamador.
Deodoro, porém. compreende a insidia e, com duas penadas, dissolve as Câmaras, manda prender Ouro Preto que era a alma danada de tudo, e decreta o estado de sitio para o Rio e Niterói. “Contemporizei até agora!” — dizia no enérgico manifesto que lançara ao povo. — “Se na crise em que se encontra a República eu não apelasse para o povo, seria um traidor! Brasileiros! A 15 de novembro, achei-me ao vosso lado para depor a Monarquia. Hoje, aqui estou para depor a anarquia.”
Seu intuito era governar com a Constituição. Mas já era tarde. A casa de Floriano tornara-se ponto de convergência dos inimigos de Deodoro.
Custódio de Mello aderira ao movimento e assestava as bocas de fogo dos seus navios contra o palácio do Itamarati, onde então funcionava o governo Provisório.
Deodoro, positivamente, não contava mais com Floriano, mas contava com um forte elemento de reação, e não lhe faltaram coragem e férrea energia para abafar os tumultuosos quando e como o quisesse. Ele, porém, era um efetivo e brioso militar. Qualquer gesto seu de comando redundaria naturalmente numa terrível guerra civil. E ele a venceria. Mas, com surpresa de todos, manda chamar Floriano e, impetuoso como sempre, entrega-lhe o governo, recolhendo-se imediatamente à vida privada.
Ato sublime de abnegação! Este gesto de Deodoro deixou traçado nas páginas da República brasileira o emblema imorredouro da dignidade e do patriotismo do Exército Brasileiro.
*Publicado originalmente na Revista Ilustração Brasileira de setembro de 1946.
Romeu de Avelar escrevia uma coluna nesta revista, “Ilustração Brasileira”, nos anos 1940?
Era uma revista carioca? ( Nesta época , Romeu já residia no Rio pois sua filha mais nova nasceu lá em 1941…)
–Isabela , neta de Romeu de Avelar