O Natal de “seu” Hermídio

"Os matutos chegavam a rezar, ajoelhando-se diante daquele Presépio"

Ilustração da revista O Cruzeiro para o conto de Breno Accioly

Breno Accioly*

Lembro-me numa memória que me conta o meu Natal de nove anos. Era um Natal possuindo todas as cores do mar bem como todos os brancos das nuvens e não lhe faltavam as vozes da Nau Catarineta cantando adeuses marinhos.

O bairro da Levada possuía a sua manjedoura, os seus três Reis Magos, também não faltavam os cachaceiros, nem os desembargadores tirando o chapéu devido ao calor. O céu rompia-se muito azul. Não se podia dizer se os planetas vistos a olho nu eram somente três. Todas as estrelas lembravam planetas; naquela noite o céu podia ser tudo. A única coisa que não existia: vento.

Por isso os desembargadores mostravam aquelas cores de ossos das carecas. Eles, desembargadores, não podiam suar mais, também não era descente mastigarem cachorro-quente, nem atravessarem os olhos para as mulatas da Lagoa Mundaú.

A poeira levantava nuvens vermelhas, o ar quebrava as vozes cantando, e vinha do navio, cansado de viajar, uma doçura prolongando nos fados.

Aquele navio cheio de música chamava-se: Nau Catarineta.

Em Santana do Ipanema não havia Nau Catarineta, nem Banda de Música.

Roda gigante

Não havia aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Eu estranhava, achava ruim aquele Natal diferente do de minha terra. Ouvia a Nau Catarineta mas gostaria de estar ouvindo os cegos da beira do rio. O Natal de Maceió eram lantejoulas nas blusas das pastoras, era Pastoril dos cordões vermelhos e azul dançando sobre tablados suspensos. Maceió sofisticava, Santana do Ipanema possuía o Natal que Maceió gostaria de possuir. Onde estariam as harmônicas, os realejos dos ceguinhos? A música do bairro da Levada era para mim uma coisa nova. Os instrumentos lembravam cores enzinhavradas de gigantescas corolas, eram mil vezes maiores que os realejos, mas eu acharia os realejos mais música naquela tristeza de sons aguados.

Aquela infância corria nos dez anos. Eu estava conhecendo um Natal novo, mas seria melhor o do ano passado, aquele das velhinhas pedindo esmolas, do baralho se cortando num jogo de cem réis nos fundos da barbearia.

“Seu” Hermídio era o maior homem de Natal. Pe. Bulhões perdia para “seu” Hermídio. A casa de “seu” Hermídio possuia uma sala que podia ser uma nave. Sim, eram mesmo uma nave aquelas paredes brancas, aquele Presépio sugerindo os Santos como se o tempo os tivesse diminuído. “Seu” Hermídio vivia de canivete nas mãos, esburacando palmos de madeira, transformando aqueles pedaços de paus em imagens de Santos pobres, em Santos que também foram Santos mesmo sendo ricos. A matutada gostava de “seu” Hermídio, as crianças aprendendo a falar falavam logo seu nome de “Sê Hemidi”.

“Seu” Hermídio era tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo.

Feira em Santana do Ipanema, terra natal de Breno Accioly

Ninguém sabia porque ele não “arredava” o pé de casa, porque jamais gostara de namorar, mesmo de assistir à missa. O seu mundo era aquela casa de platibanda vermelha, o seu céu aquelas telhas cobertas de bolores. Ninguém sabia de onde ele viera, em que lugar havia nascido. Quando abriram os olhos, era “seu” Hermídio o mais íntimo de toda a cidade, o mais querido das crianças. Parecia que “seu” Hermídio não gostava de dormir. Todas as vezes que o procuravam, encontravam-no ou deslocando os olhos de Santa Luzia, pintando as chagas de S. Roque, ou também podia estar colando um braço de um boneco maneta, calçando um sapato num pé de uma bailarina.

Mas como era suja a casa de “seu” Hermídio! Aranhas bordavam cobertas de prata, lenços que de tão finos nem pesavam uma grama, desciam lentamente pelas paredes, sapos mijavam nos pés de “seu” Hermídio, ratazanas pariam na vista dele. “Seu” Hermídio não se importava com tudo aquilo. O que ele queria era viver esculpindo, fazendo santos. Entregar todas aquelas encomendas todos os sábados. Dos quatro cantos do mundo chegava gente procurando por “seu” Hermídio, trazendo-lhe imagens desbotadas, crucifixos que de tão velhos ficavam pubas. As mãos de “seu” Hermídio davam um jeito, descobriam uma maneira de amenizar aquele Hospital. A Igreja se renovava nos Santos encarnados, também na Igreja existia um Presépio mas o de “seu” Hermídio ganhava longe.

Pe. Bulhões quisera comprar aquele S. José, aquela N. Senhora, todos os Três Reis Magos chegando ricos de ouro, mirra, incenso.

“Seu” Hermídio enrugava a testa. Não venderia por preço nenhum. O Presépio era sua maior coisa. A imagem do Menino Deus parecia viver. Nada faltava, nada sobrava. Uma exatidão fazia-se em todos os moldes. E somente no dia de Natal “seu” Hermídio varria as picumãs, enxotava os sapos, assustava as caranguejeiras de pernas cabeludas. Ele mesmo arrancava do rosto aquele triste que lhe adormecia os olhos, aquela paciência que, de tão mansa, se assemelhava à calma de um boi. À noitinha escancarava as janelas, abria a porta e quem passasse pela calçada de “seu” Hermídio não deixaria de olhar aquela beleza que as janelas mostravam. De verdade, era uma beleza inocente. Uma beleza de papel crepom correndo pelos cordões — cordões que se reuniam artisticamente, escrevendo estas palavras: SALVE O NATAL DE 1930.

Barcos na festa natalina

Os meus nove anos achavam tudo aquilo uma beleza. Eu mergulhava os olhos naquele mar de cores e eles ficavam cheios de marinhas. Sentia-se como se sentem os velhos marinheiros que voltam do mar.

Os matutos chegavam a rezar, ajoelhando-se diante daquele Presépio. O menino Deus dormia numa manjedoura do tamanho de uma banana-pão. O burrinho de S. José parecia possuir um estômago uivante e não se cansava de mergulhar o focinho dentro das palhas secas. De estrebaria a dentro vinha os Três Reis Magos, e sobre as pedras do morro os cascos das ovelhas não se cansavam de bater. Aquele presépio estava cheio de molas invisíveis. Bastava-se por um dinheiro sobre a salva de papelão, para que o menino Deus acordasse, S. José mostrasse os dentes, Nossa Senhora balançasse a cabeça, agradecendo liturgicamente. Os carneiros abriam o bocão como se quisessem berrar e a cor de prata da Estrela D’Alva inundava-se de luz.

Sentado ao lado do Presépio, “seu” Hermídio vigiava. Cada tostão da gente proporcionava uma alegria. Não havia tostão que chegasse. Aquela salva de papelão possuía um buraco-sorvedouro. Os matutos se acotovelavam, brigavam por um lugar e tome tostão, tome tostão. Nem a missa do Galo respeitavam. Viam Pe. Bulhões se crucificando, abrindo os braços nos “orae pro nobis”, assistiam toda a missa da casa de “seu” Hermídio. O juiz de Direito, o promotor, as mulheres-damas, todo mundo ia dar tostão, ver o sorriso do menino Deus. O calor se danava. Lenços de um metro corriam enfeitados pelas testas de bronze.

O Natal de meus nove anos fora aquele Presépio.

Breno Accioly criança em Santana do Ipanema

Por fim, minha avó deu-me um cocorote. Não tinha mais tostão, havia me dado todos os níqueis. Eu esperneava, berrava, berrando eu queria que me dessem dinheiro.

“Seu” Hermídio era um sabidão. Toda aquela engrenagem parecia suportar todo o peso de todos os tostões do mundo. E que engrenagem inteligente! Se a esmola fosse quatrocentos réis, o menino Deus sorria um sorriso grande. Tudo ali era pesado, medido. Ninguém podia escurecer os dedos tocando naquele Rei Mago de cor preta. O Presépio assemelhava-se a um mundo de fronteiras de arame farpado. Um parapeito impedia de ver-se mais de perto. Somente bem de perto da gente ficava a salva de papelão, engolindo, engolindo.

E mais um dia de sua vida, “seu” Hermídio não queria dormir, gostava de ficar ouvindo o barulho dos tostões tilintando e descendo por um cano de flandres. No ano seguinte eu via o Natal de Maceió. Parecia que não estava vendo nada. Perguntei a minha avó:

— Terá por aqui algum Presépio como o de “seu” Hermídio?

A resposta feriu-me, negou-me.

E como eu poderia gostar de Roda Gigante. Dos carrosséis girando nos lombos dos cavalos de pau, achar gostoso o caldo de cana? Meu pensamento levava-me para perto do Presépio de “seu” Hermídio, minha mão parecia estar esmolando aquela salva de papelão e, de novo, eu estar vendo o Menino Deus sorrir, S. José mostrando os dentes, N. Senhora de manto branco, de saia azul, balançando a cabeça, bem de leve, bem de leve balançando.

*Publicado na revista O Cruzeiro de 18 de dezembro de 1943.

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