Quebra dos Terreiros e a queda dos Maltas

Não há como entender estes dois acontecimentos históricos sem conhecer a realidade política alagoana nos primeiros anos após a instauração da República no país, quando ocorreu a transferência de poder para as oligarquias regionais, principalmente a paulista.

A Primeira República, também denominada de República Velha ou República Oligárquica, foi marcada pelo choque de interesses dos grandes proprietários de terra, que estabeleciam as “leis” nas áreas sob o seu controle político.

Palácio dos Martírios em 1902

Em Alagoas, a República nasceu sem ter uma base republicana expressiva. Douglas Apratto, no seu livro, o clássico Metamorfose das Oligarquias, identifica que esse pequeno núcleo republicano recebeu repentinamente “uma torrente de novos adeptos que surgiam eufóricos ou reservados de todos os lados, como se fossem republicanos desde o nascimento, oferecendo apoio incondicional ao novo regime”.

Com a nomeação, por decreto, do coronel Pedro Paulino da Fonseca para governar Alagoas, criou-se a expectativa de que um irmão de Deodoro da Fonseca teria autoridade de sobra para enquadrar os neorrepublicanos ávidos de poder.

Clodoaldo da Fonseca, candidato oposicionista ao governo alagoano em 1912

Pedro Paulino era um alagoano que ficou muito tempo fora de Alagoas e logo que assumiu o governo foi “engolido” pelas artimanhas do jogo político local. Apratto analisa esse início de governo como um “típico período de transição”, marcado por disputas de grupos em busca de hegemonia. O governo de Pedro Paulino durou apenas 10 meses.

Depois de muitas atribulações e disputas, a República elege seu primeiro presidente civil, Prudente de Morais, que assume em 1894. Apratto considera que essa eleição encerra “o ciclo militarista republicano e as oligarquias ascendem ao poder”.

Em Alagoas, os segmentos agrários ligados à produção açucareira iniciam um longo período de domínio, mesmo que num primeiro momento fossem representadas por um sertanejo, Euclides Malta (governador por dois períodos: de 12 de junho de 1900 a 12 de junho de 1903 e 12 de junho de 1906 a 3 de junho de 1909). Em Alagoas, por 12 anos, os Maltas, com Euclides à frente, exerceram o poder.

A partir da campanha civilista de Rui Barbosa, que sacudiu o país em 1910, o Partido Democrático em Alagoas criou ânimo para se contrapor à oligarquia dos Maltas, que já apresentava desgastes.

Outro fato novo foi o crescimento da oposição aos Maltas, que começa a receber os descontentes com o presidente Hermes da Fonseca, recém-eleito em 1910 com apoio dos Maltas.

Com as eleições de 1912 no horizonte, a oposição articula a candidatura de Clodoaldo da Fonseca, filho de Pedro Paulino, parente de Hermes e chefe do Gabinete Militar da Presidência. A situação maltina prepara a candidatura de Natalício Camboim de Vasconcelos.

A oposição continua a se expandir e surgem nos bairros populares núcleos de apoio não partidários, além disso a candidatura de Clodoaldo da Fonseca tem boa repercussão no interior do estado.

Douglas Apratto descreve assim o clima político em Alagoas naquele momento: “Cresce a força dos jornalistas, dos estudantes, dos bacharéis, dos artistas, dos oradores de comícios que, unidos no vigor antigovernamental, cavalgam suas ambições junto com promessas transformadoras. A campanha contra as oligarquias chegava para ficar em Alagoas”.

Euclides Malta

Em Maceió, o clima é de sublevação. As ruas, dominadas pelos partidários de Clodoaldo, são consideradas inseguras e os seguidores dos Maltas são perseguidos a qualquer hora.

Nesse ambiente surgiu, no dia 17 de setembro de 1911, a Liga dos Republicanos Combatentes. Liderada por Manoel Luís da Paz, um oficial do Exército que perdeu os membros inferiores na Campanha de Canudos, iria funcionar como uma organização paramilitar dos oposicionistas.

Seus objetivos eram os seguintes: “1 – Liberdade não se pede, conquista-se; 2 – A força é uma lei, um direito, quando não há união”.

A primeira ação da Liga, dias após a sua criação, foi invadir a casa do intendente da capital, Luís Mascarenhas, que fugiu pelos fundos da casa com a família, pulando o muro. Outra ação da Liga foi a de panfletar a cidade conclamando o povo a não pagar impostos.

Euclides Malta tentou reagir e mandou a polícia acabar com as manifestações da oposição, mas esta, com o respaldo de Clodoaldo, enfrentaram violentamente as forças do governo.

A insurreição urbana cresceu e o próprio Palácio dos Martírios foi alvo dos ataques dos oposicionistas. A guarda do Palácio foi dominada, mas o governador conseguiu fugir para Recife. Na troca de tiros morreram dois atacantes. Na mesma noite, os revoltosos atiraram contra a casa do vice intendente da capital.

O povo foi conquistado pelas sedutoras propostas de mudança e a oposição é reforçada pela participação dos mais humildes e ganha adeptos em todas as classes.

Apratto registra que a campanha criou uma situação de “bipolaridade entre uma situação apodrecida, comandada por um tirano que subjugava o heroico povo alagoano, e os ‘salvadores’ que deveriam receber o apoio de seus conterrâneos”.

As elites dominantes, que tinham sido defensoras da monarquia e avidamente aderido à República, agora disputavam o poder e queriam o apoio popular.

O Quebra

Matéria do Jornal de Alagoas, em fevereiro de 2012, acusando Euclides Malta de bruxaria

Euclides Malta era católico, mas como quase todo político, convivia bem com os cultos afros, que tinham milhares de adeptos (eleitores).

Esta boa relação fez com que alguns destes líderes religiosos comentassem que “trabalhavam” para mantê-lo no poder. A oposição, sabedora desta aproximação e dos comentários, passou a divulgar que Euclides Malta frequentava os terreiros e que tinham pedido a Xangô para que fechasse seu corpo contra os inimigos e que a divindade matasse Clodoaldo da Fonseca e Fernandes Lima antes das eleições.

Com estes boatos circulando intensamente, no dia 1º de fevereiro de 1912, a Liga dos Combatentes, motivada claramente por interesse político, promoveu o famoso Quebra dos Xangôs.

Douglas Apratto analisa o episódio assim: “… foi inquestionavelmente um ardiloso plano político. A pretexto de que Euclides Malta e seus correligionários do Partido Republicano Conservador afrontavam a elite branca, protegendo a prática de candomblé, os seus inimigos políticos deram um passo decisivo na sua destituição, silenciando os terreiros, acusando os euclidistas da prática de feitiçaria e jogando contra eles a população, principalmente a poderosa opinião da Igreja e do segmento mais influente da sociedade”.

E continua: “Esse episódio marca a extinção de velhas e tradicionais casa de culto afro-brasileiro em Maceió e nas cidades próximas. Pratica-se, por algum tempo, autêntica perseguição, nos moldes da inquisição medieval”.

Essa prática se deu também com a participação da polícia, após a derrubada dos Maltas e a vitória do Partido Democrata.

Terreiros destruídos

Manoel Luiz da Paz, fundador e líder da Liga dos Republicanos Combatentes em Homenagem a Miguel Omena. Fotografia reproduzida no livro “Legba, A guerra contra o xangô em 1912”, de Fernando Antônio de Andrade, com a indicação de sua fonte como sendo o Professor Andrè Soares (1912).

O Quebra teve início ainda na noite na quinta-feira, dia 1º de fevereiro de 1912. Militantes da Liga dos Republicanos Combatentes partem da Levada, onde ficava a sede da agremiação na Rua do Sopapo, nº 311 (também era a sede do Bloco Carnavalesco dos Morcegos), para percorrerem as ruas da cidade, promovendo protestos em frente aos terreiros.

Entre os manifestantes estavam também alguns soldados que tinha desertado do Batalhão de Polícia do Estado em função dos atrasos dos seus soldos. Muitos se afastaram cumprindo orientações dos membros da Liga e participando de um ritual denominado “rasga farda”

Foi esta palavra de ordem, “Rasga!” que se transformou em “Quebra!” naquela noite em que uma festa pré-carnavalesca acontecia da sede dos Morcegos.

Essa disposição destrutiva era estimulada pelos sons dos atabaques dos terreiros da redondeza que festejavam Oxum, coincidindo com as celebrações da Imaculada Conceição entre os católicos.

Assim, quando o grito de “Quebra!” ecoou pela casa de Manoel Luís da Paz, o grupo de militantes pôs-se em movimento pelas ruas da capital.

Quem primeiro sentiu a fúria dos agressores foi o terreiro de Chico Foguinho, que ficava nas proximidades. A cerimônia foi interrompida pelo grupo da Liga, que agrediu a todos e se apoderou dos instrumentos, vestes, utensílios e adornos, jogando-os na rua, onde foram queimados.

Alguns poucos objetos forma preservados a serviram de troféus no cortejo, que continuou a destruição de outros terreiros das proximidades, atingindo os de João Aristides Silva, o João Funfun e o de Aurélio Marcelino dos Santos, o Pai Aurélio.

Capacete Adê utilizado em culto afro da Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas

Após destruir os terreiros da Levada, a turba seguiu para o centro da capital tendo à frente Manoel Luiz da Paz, facilmente identificado por suas muletas. Muitos entraram no cortejo pensando tratar-se de um desfile dos Morcegos.

A próxima vítima foi o terreiro, Manoel Coutinho, ao lado do Teatro Deodoro, que já se encontrava fechado.

A comitiva incendiária continuou a sua busca destrutiva pela Rua do Apolo (Trapiche?), onde despedaçou o terreiro de João Catirina. Na Ladeira do Brito foi a vez do terreiro de Manoel Saturnino do Nascimento, Manoel Inglês, o cozinheiro de Euclides Malta e organizador da Marujada Jacutinguense. Depois o cortejo se deslocou até as imediações da Praça Sinimbu e invadiu o terreiro de Tia ­Marcelina, identificada pelos jornais da época como uma negra robusta e com terreiro na Rua da Aroeira, atual Rua Costa Leite. Os poucos frequentadores que ainda estavam no local participando os últimos momentos da cerimônia foram agredidos pelo grupo, que naquele momento já havia sido ampliado para quase 500 componentes.

Novamente a fogueira ardeu na rua para queimar os móveis e utensílios. Tia Marcelina foi a mais agredida, mesmo sendo defendida por alguns poucos filhos de santo.

Pelo adiantado da hora, alguns dos “Combatentes” retornaram à Rua do Sopapo levando os despojos de guerra. Sem contar com o transporte por bondes, que já haviam sido recolhidos, os outros manifestantes se organizaram em grupos para retornarem caminhando as suas casas. No caminho, a quebradeira teve continuidade.

Utensílios levados pelos oposicionistas para a Liga dos Combatentes. O Malho 1912 O Quebra

Os que iam em direção a Bebedouro, destruíram no Mutange o terreiro de Manoel Guleiju. No Flechal de Cima atacaram a casa de Maria da Cruz. No Poço a vítima foi Pai Adolfo, e no Reginaldo, o terreiro de Manoel da Loló. Há registros de que outros terreiros também foram atingidos

A quebradeira continuou por vários dias, se estendo por Atalaia, Santa Luzia do Norte, Marechal Deodoro, Pratagy e Tabuleiro do Pinto.

As peças sequestradas dos terreiros eram levadas até a sede da Liga dos Republicanos e outras para a sede do Jornal de Alagoas, na rua Boa Vista, onde ficaram expostas por vários dias.

Por meses, os atabaques ficaram em silêncio na capital. Até os maracatus desapareceram do carnaval maceioense. Muitos pais e mães de santo deixaram Alagoas. Entretanto, os que permaneceram logo deram sinal de vida religiosa. No dia 4 de agosto de 1912, o Jornal de Alagoas informou sobre a existência de um terreiro no Trapiche da Barra.

*Informações do livro Metamorfose das Oligarquias, de Douglas Apratto Tenório, jornais da época e o estudo Muito barulho por nada ou o “xangô rezado baixo”: uma etnografia do “Quebra de 1912” em Alagoas, Brasil”, de Ulisses Neves Rafael.

5 Comments on Quebra dos Terreiros e a queda dos Maltas

  1. Edro Tenório // 12 de outubro de 2015 em 01:17 //

    Dizem sobre esses escritos do Apratto “bons tempos”. Devemos atentar para a data do ocorrido fato, já que é sabido que o estudioso do Quebra, Ulisses Neves Rafael, em sua obra Xangô Rezado Baixo, informa a data 02/02/1912 e não dia 07 como encontramos no texto do Apratto.

  2. Glauco pereira // 20 de março de 2023 em 20:34 //

    Muito bom
    Conhecendo Alagoas
    👏👏👏👏👏👏

  3. Excelente exposição. Sou alagosno de Maceió. Sou Pastor Evangélico em Vitória/ES. Não sabia dessa história. Valeu! Que novos relatos venham à tona. Parabéns!!!

  4. São coias que os jovens não sabe destas histórias que hoje são contadas e escritas pelo correio do povo os jovens precisa saber como tudo começou o que foi a política é os políticos as religiões.

  5. políticos as religiões.
    Sempre está junta na história desde o tempo do império

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