Um marinheiro que desembarcou e venceu
F. de Maya Fernandes
Por volta do ano de 1873, um mercante à vela inglês desembarcou em Jaraguá um marinheiro pequeno, de cabelos e olhos claros, uma guitarra a tiracolo e nada a declarar a não ser o seu próprio nome: Francisco Pereira da Silva, português dos Açores.
Não era um renegado da lei nem devia aos cofres de bordo ou de sua companhia de navegação um pence sequer, não se sabendo até hoje a razão que alegou o capitão do bergantim para deixá-lo assim desamparado na beira da praia, sem uma carta de apresentação nem queixa formal às autoridades do Porto, e ainda com algum dinheirinho na carteira.
Mas, como havia algumas famílias importantes morando entre a Ponta de Jaraguá e a cidade, nas bandas da Rua Santo Amaro (hoje Uruguai), pareceu natural que o forasteiro ficasse na mira da curiosidade pública, depois de saberem que o navio dele vinha com bacalhau da Terra Nova para a Argentina, e que arribara em Maceió apenas para deixá-lo em terra.
— Deve ter sido por alguma coisa que não fosse tão séria, senão seria enforcado, disse um homem comentando o fato.
— Ou levado para responder pelo crime em Liverpool, completou alguém. E, na sua ausência de acusações e na tolerância do alagoano, o rapaz foi assimilado pela sociedade, pois era comunicativo, trabalhador e inteligente, afora outras qualidades ainda mais apreciadas de cantador de fados, amante das serenatas e longas conversas, principalmente com o próprio Capitão do Porto, o Comandante Pontes de Miranda, chegado à vida noturna e aos assuntos do mar: correr mundo, conhecer gente nova, gozar de liberdade na solidão das ondas. E ficaram amigos depois de muitas conversas nas calçadas de Jaraguá.
Aos poucos foi correndo no bairro que ele passara quinze anos no mar, primeiro na Marinha Britânica, depois numa linha de navegação de alto bordo para o Mar das Arábias e da China, naquele comércio de chá e mercancias pelo mundo afora, tendo alcançado a posição de primeiro piloto, depois de mourejar a meio-soldo como simples grumete, marinheiro de convés, taifeiro, etc.
Era sofrido e cheio de destemor, qualidades muito apreciadas por aqui. Souberam também que deixara sua terra ainda menino, nadando com sua trouxinha até um navio inglês, que costumava recrutar grumetes da Ilha das Flores, a mais ao poente do arquipélago.
Depois de alguns anos, Francisco conseguiu a invejável posição de prático do porto (nomeação do Capitão Pontes de Miranda) e de exportador de açúcar, proprietário de cinco saveiros para transbordo e ainda dono de uma loja onde, diziam, vendia fiado e não cobrava.
Era muito bem recebido pelas famílias ricas, os Calazans, os Custódios, os Pontes de Miranda, os Marques e outras, todas residindo na Santo Amaro, logo acima de um estaleiro da praia, depois dos trapiches como quem vai para Maceió. E assim casou-se com a senhorita Maria Marques, com a qual teve quatro filhos varões, José, que foi marítimo como ele, Francisco, o mais parecido, Joaquim e finalmente Ezequiel, o único a fazer fortuna no mesmo ramo dos negócios.
Mas, por que terminara Francisco carregando o apelido de “Chico Pancada“? Não era por ser doido, porque não era. Foi por não suportar desaforo sem ir às vias de fato e revidar a socos, na primeira oportunidade, qualquer ofensa.
Assim ocorreu quando jogou um seu concorrente de cima de uma ponte de embarque nas ondas do mar, um tal de Mendes, em razão de insultos que recebera indevidamente. Logo depois foi processado por sua Majestade Britânica, por ter vertido sangue do seu Cônsul Kenneth Macray, na sede do Consulado em Jaraguá, território inglês. E teve que gastar trinta contos de réis no processo que finalmente não lhe custou cadeia.
O tempo foi passando e Chico Pancada envelhecendo, a provar que o Brasil uma terra maravilhosa, onde o português trabalhador e fiel aos seus compromissos sempre fica rico e importante por aqui.
Pelo apelido de Chico Pancada, agora se pode supor o motivo de seu desembarque, qual seja, uma formidável briga a bordo, em alto-mar. Se tivesse brigado num porto da Terra Nova, teria vencido a vida no Canadá, tristemente como tudo que é gelado.
Publicado originalmente no livro Histórias do velho Jaraguá, Maceió, 1998.
Deixe um comentário